sábado, 10 de outubro de 2009

A minha hora

A minha hora há-de chegar.

Ainda há muitas como eu à minha frente, mas há-de chegar. Aliás, já consigo ver a luz lá ao fundo, por entre as frinchas. Uma a uma elas separam-se de nós, das que ficam, e avançam para a luz. Uma sai, a luz entra. É a troca.

Cada vez há menos peso em cima de mim, porque elas se vão. Uma a uma, numa lentidão que nos tortura, num tique taque constante que nos conta os segundos de vida e os rouba. Eu sou a penúltima de todas, e graças a Deus. Pior seria se já lá estivesse em cima, a ir-me neste momento para aquela luz. Pior seria ser a última, porque essa sem dúvida terá a morte mais triste. Quando chegar a sua vez morrerá sozinha, e não há nada mais triste do que isso. As que estão por cima ainda têm sorte, porque apesar de irem primeiro vão com um coro de choros e despedidas que lhes lembra que neste tempo todo nunca estiveram sozinhas. Nenhuma de nós teve. Aqui neste sítio tão pequeno e apertado criam-se laços. Formam-se amizades, amores, relações platónicas, discussões, traições, novelas inteiras; mas no fim todas sairemos dali, e todas somos iguais. As que vão para a luz, ao menos, têm as debaixo para as conformar. "Força!" dizemos nós à que está em cima. "Não tenhas medo!", "Nós adoramos-te!", "Nós estamos aqui, não te preocupes", "Tudo vai ficar bem", “Tu vais mas nós também não demoramos, e quando lá chegarmos tudo será mais belo!", "Anda, coragem, não chores!", "A luz, não tenhas medo da luz!", "Eles vêem aí!", "Aguenta-te, nós adoramos-te!", "Nós adoramos-te!", "É agora!", "Adeus".
A minha hora irá chegar.

Por esta altura já não demora muito. É engraçado como quando temos medo as coisas parecem levar horas a acontecer, mas eu sei que está quase. Sinto o peso por cima de mim a levantar-se. Ainda restam algumas. Lá pelo meio uma delas chora, outra tenta reconfortá-la. Algumas rezam, duas falam de banalidades e levantam a voz bem alto para não ouvirem os choros das outras à sua volta. Se isso resulta para elas, perfeito; mas para mim não. Não digo uma única palavra. Para quê? O que dizer quando sabemos que as palavras que dissermos serão as últimas? Deverei expressar os meus verdadeiros sentimentos? Chorar em pânico? Gritar? Acotovelar-me? Esmago a que está por baixo e ainda empurro as que estão em cima para mais perto da fatalidade? E o que há afinal atrás daquela luz?

A luz volta a descer sobre nós e a que está em cima é arrastada para longe. Gritos. Choros. Rezas. Menos uma.

Agora percebo. Agora percebo as histórias que ouvia quando era ainda pequena, recém nascida, e vivia num lugar melhor. Sei que não somos as únicas. Sei que como nós há milhares a irem-se desta maneira brusca, arrastadas para aquela luz. Será a luz que as puxa a mesma luz que me puxará a mim?

Sei que iremos todas. Normalmente poderia haver a ilusão de que algumas sobreviveriam, e de certeza que todas elas que estão aqui comigo chegaram a pensar que talvez aquela luz se fosse embora e não voltasse, nunca mais; mas isso não acontece. Sonhos. Não grito nem choro, mas também não sonho. Sou realista. Todas iremos, é sempre assim que acontece. E olhem, aí vem a luz.

Mais uma. Aliás. Menos uma.

A minha hora vai chegar.

Somos três. Eu. Uma que chora atrás de mim. Outra que como eu está calada, à minha frente. Que, como eu, percebeu que é inútil. Que, como eu, espera; mas a espera dela vai ser mais curta do que a minha. Ela está mesmo aqui, em cima de mim, colada a mim. Somos mais que vizinhas, mas agora apercebo-me que nunca simpatizei muito com ela. Nunca falámos muito. Nunca fomos de grandes conversas mas agora, nos minutos que nos restam, dou por mim a perguntar-lhe se ela está bem, e ela responde que naquela situação em particular é uma pergunta um bocado ridícula. Que não esta nada bem porque ela é a seguir, mas que supõe que eu esteja a pensar "antes ela do que eu". Eu respondo-lhe que não. Não lhe digo que todas iremos mais tarde ou mais cedo porque a última, aquela atrás de mim, chora em silêncio e eu bem sei que está a passar um mau bocado. Mas respondo-lhe que não, não penso nada disso. Para quê, afinal? Digo-lhe que só me resta deseja-lhe boa sorte e esperar que nos vejamos do outro lado da luz, no tal sítio que segundo o que dizem é um lugar melhor. Ela não diz nada. Eu sei que é de personalidade e que ela é até bastante reservada, mas naquele momento não diz nada porque está a chorar. Ela agradece, funga, agradece outra vez; e eu ia dizer-lhe mais algumas palavras reconfortantes quando a luz regressou e a levou de ao pé de mim.

A minha hora está a chegar.

Fico a olhar para cima, para o buraco rectangular por onde entra a luz. É brilhante. É bonita. É quente. De certa forma até é reconfortante. Não tenho um coro de desesperos e gritos de pânico em cima de mim, só o silêncio da que chora para si mesma e que de certeza está a pensar "antes ela do que eu". Ou então "antes ela e depois eu", o que dentro das circunstâncias faz muito mais sentido. Não estou a chorar. Não estou a gritar. Espero. As outras bolachas foram todas aos gritos mas eu vou em paz. Comigo mesma, com as que foram antes de mim, com a que irá depois. Digo-lhe que lamento muito que se vá sozinha, que gostaria muito de aqui ficar com ela até ao fim, e ela agradece. Diz que lamenta não ir já comigo, que ao menos assim íamos as duas. Ela pergunta-me se tenho medo. Eu ainda penso em mentir mas não tenho coragem, e por isso respondo que sim, tenho muito medo. Ela diz que ainda bem, que assim não se sente tão humilhada, e eu dou por mim a sorrir. Ela está atrás de mim; não a vejo, mas acho que sorri também. Eu digo-lhe adeus, ela diz-me também, eu digo-lhe boa sorte e ela deseja-me o mesmo.

A luz regressa, a minha hora chegou.

É a minha vez.

Lá vou eu.

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