quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O Cereal Killer (4 de 12)

Jovial Trestonho aterrou com o seu papagaio à porta do hospital, na esperança de receber tratamento. Sentia uma estranha comichão na mão, e o sangue jorrava-lhe para cima da bata acabada de sair da lavandaria, o que lhe causava grande transtorno, visto que a lavandaria não era barata. Entrou pela porta do serviço de urgência e gritou:

- Socorro, por favor, caiu-me um polegar! - o que provocou uma onda de riso na sala de espera; um idoso caiu da cadeira a rir, e uma senhora volumosa e com uma batedeira presa num dos ouvidos soluçou de tanta gargalhada. Jovial não achou piada nenhuma, e correu para dentro de uma das salas de tratamento, deixando atrás de si toda a sala de espera a rir com gosto. Lá dentro, estava uma maca com um homem deitado, e uma série de médicos, enfermeiras e até um cozinheiro italiano, que se enganara no comboio, rodeavam-no.

- Por favor, ajudem-me! - guinchava o paciente, com visível desconforto.

- Não se preocupe, estamos a tratar de si - disse um dos médicos, enquanto comia uma sandes mista e fazia malabarismo com dois bisturis, para grande alegria do pessoal médico.

- Por favor, estou com dores horríveis! - disse o homem, e olhou para Jovial - Amigo! Também está a sangrar?

- Sim, veja-me só isto! - disse Jovial, aproximando-se da maca e mostrando ao paciente a sua mão ensanguentada.

- Realmente é uma chatice - disse o paciente - Eu estou aqui cheio de dores desde as sete e meia e ainda ninguém me atendeu. Ia na rua a descascar uma banana quando a matreira me escapou das mãos, saltou para o meio da rua e começou a despir-se em frente a duas meninas que por ali andavam. Ao tentar travá-la, atravessei a correr a rua e um carro apanhou-me em cheio no cotovelo. Veja! - o paciente mostrou o cotovelo, que chorava com dores e sangrava abundantemente, comovido - E você?

- Acertaram-me com um pepino.- disse Jovial.

- Ah, que aborrecimento...

Entretanto, o medico juntou mais dois bisturis ao malabarismo, e o pessoal hospitalar aplaudiu; o cozinheiro italiano, compreendendo que se enganara na porta, saiu do hospital para ir apanhar o comboio de volta ao restaurante, enquanto gritava algumas indecências em italiano. Jovial decidiu tentar a sua sorte numa outra sala de tratamento, e por isso despediu-se do paciente com o cotovelo comovido e, aplaudindo o malabarismo do médico, entrou para outra sala.

Outra maca, com outro doente, que ria em alto e bom som. Os médicos, todos eles perto da reforma, enviava-lhe tubos pela guela, e resmungavam qualquer coisa.

- Por favor, preciso que me faça um curativo... - disse Jovial, a sujar o chão com sangue.

- Vai ter de esperar, temos um traumatizado muito grave!- disse um dos médicos, de todos o mais barbudo. O paciente contorcia-se com gosto, como se tivesse cócegas, e vomitou um polvo amarelado, que caiu da maca a seu lado.

- Conseguimos! - disse o médico mais cabeludo, e toda a equipa bateu palmas. O polvo vez uma vénia e pediu uma aspirina, porque estava com dores de cabeça, e foi colocado por duas enfermeiras dentro de uma incubadora para observação.

- E agora, já me podem tratar do dedo? - implorou Jovial, sentido. Um médico, de todos o mais perneta, pois não tinha uma perna, pé-coxinhou até Jovial, e observou o buraco deixado pelo dedo.

- Como é que fez isto?- perguntou o médico.

- Atiraram-me com um pepino.

- Um pepino?

- Sim, senhor doutor.

- Doutor? Não, doutora! - o médico tirou a barba postiça e revelou as feições de uma mulher idosa, mas sem dúvida uma mulher. Jovial exclamou “Ah!”, e a doutora voltou a colocar a barba postiça.

- Um pepino é raro... trouxe o dedo consigo?

- Bem, achei que não precisaria mais dele...

- Então teremos de encontrar um dedo para si. Venha cá - a doutora guiou Jovial até um a outra sala, onde lhe estendeu um grande livro de capa preta.

- Esse é o nosso catálogo de Inverno. Escolha o que mais lhe agradar, enquanto eu lhe faço um curativo.

Jovial abriu catálogo e maravilhou-se com os vários modelos disponíveis, mas um chamou-lhe a atenção.

- Doutora... acho que vou escolher este aqui...- era um maravilhoso modelo canivete-suíço, com tesoura, alicate, corta-unhas, saca-roulhas e isqueiro.

- Fantástica escolha, é o nosso modelo mais pedido - disse a doutora, a pé-coxinhar até uma mesa de onde trouxe um pano de cozinha - Acabaram-se os adesivos, por isso enrole isto na mão e vá á recepção pagar o dedo.

Jovial enrolou o pano na mão. Era um pano alegre, com galinhas e bordados de uma quinta.

- É muito caro?

- Sim, um pouco. Repare, é um dedo/canivete-suíço último modelo...

- É que hoje mesmo fui despedido e não me ia nada em conta...

- A não ser que queria ficar com esse papel de cozinha enrolado na mão durante o resto da vida... - disse a doutora, a piscar-lhe o olho por detrás da barba postiça.

- Não me dava muito jeito, mas se for muito caro...

- Sim, é.

- Então fico-me pelo pano de cozinha. Posso levá-lo para casa?

- Bem, pode, mas terá de o devolver. Tem panos de cozinha em casa?

- Sim, sou coleccionador.

- Ainda bem. Quando chegar a casa, troque de pano e quando puder traga-me esse de volta, pode ser?

- Vou andar um quanto ocupado, mas pronto.

- Boa sorte a encontrar emprego! - disse a doutora, a pé-coxinhar até à porta da sala de tratamento para se despedir de Jovial.

Ao chegar ao parque de estacionamento do hospital, Jovial reparou que se esquecera de estacionar devidamente o papagaio-de-papel, e por isso tinha uma multa bem grande numa das asas.

- Ora bolas! - exclamou. Subiu para cima do papagaio e levantou voou, constrangido.

(continua)

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