terça-feira, 8 de dezembro de 2009

De onde vêm as ideias?

Estava sem ideias nenhumas, absolutamente nenhumas. Sem inspiração, como se costuma dizer. Andava pela casa a comer bolachas, a beber água fresquinha, procurando pelos canais ou pelas estantes algum divertimento. Encontrei algumas coisas, desisti rapidamente. Não tinha ideias.

Isto não estava bem, nada bem mesmo. Fui à minha gaveta dos documentos, peguei num enorme dossier e vasculhei pelas micas repletas de documentos importantes. Encontrei um cor de rosa, retirei-o da mica, reli o seu conteúdo. Sim, estava lá o número de telefone. Peguei no telemóvel. Marquei o número.

- Estou sim muito boa tarde?

Uma voz feminina respondeu-me do outro lado:

- Inspiração, boa tarde. Em que posso ajudá-lo?

- O meu nome é Renato Rocha, e sou vosso cliente há já largos anos. Tenho tido alguns problemas criativos, e gostaria de saber o que se está a passar.

- Pode dizer-me em que área criativa, por favor?

- Escrita.

- Tem aí o seu número de inscrição?

Repeti-lhe o número, que estava no papel cor de rosa.

- Muito obrigado, aguarde só um pouco.

A voz feminina desapareceu, e foi substituída por uma música dos Beatles tocada em flauta de pan. Olhei para o relógio, passaram-se dois minutos, a voz regressou:

- Sr. Renato Rocha?

- Estou aqui.

- Eu lamento muito, mas a sua inspiração foi cortada.

- Desculpe?

- A sua inspiração foi cortada, não há nada que lhe possa fazer.

- Mas eu tenho pago as mensalidades a tempo e horas, deve haver algum engano.

- Ouça, o registo que aqui tenho é que não paga a mensalidade desde Setembro, e que desde Outubro lhe foi cortada a inspiração.

- Quero contactar com uma musa, sendo assim.

- Sr. Renato Rocha, eu lamento mas isso não vai ser possível, se não paga a mensalidade…

- Mas eu pago, tenho aqui as facturas, posso mostrar-lhe.

A voz feminina afastou-se do telefone, pareceu trocar algumas palavras com o seu superior.

- Sr. Renato Rocha, vou passá-lo a uma colega, está bem?

- Passe lá, então.

- Cólicença.

Houve um clique, os Beatles em flauta de pan regressaram por momentos.

- Estou? – disse uma voz, outra feminina – Sr. Renato Rocha?

- O próprio.

- Bom dia, como vai? Olhe, realmente as informações que temos aqui é que não pagou as mensalidades.

- Isso não é possível. Escrevo regularmente para um blog pessoal, para além de levar a cabo alguns projectos íntimos e pessoais na área da escrita. Deve haver um engano.

- A última ideia sua registada com sucesso foi em Setembro, e depois não há mais registos…

- Ouça, estou a ligar de um telemóvel e não quero gastar o saldo todo com esta conversa. Se me pudesse enviar uma assistente técnica em agradeceria imenso.

- Sr. Renato Rocha, só poderemos enviar uma musa se tiver as mensalidades em dia.

- Quando a musa cá chegar eu mostro-lhe as facturas. Tenho-as aqui, à minha frente.

Houve uma pausa, em que a voz feminina pareceu falar com alguém.

- Diga-me a sua morada, então.

Eu disse-lhe a minha morada.

- Muito bem, vamos enviar uma musa. Muito bom dia.

E nesse momento tocaram à campainha. Larguei o telemóvel, fui até lá, espreitei pelo óculo, abri a porta. Uma mulher lindíssima, morena, de longos e ondulados cabelos acastanhados, olhava para mim. Tinha um vestido simples mas colorido, e calçava duas pequenas botas castanhas que lhe subiam até meio das canelas. Além disso, trazia uma mala de couro na mão, como aquelas que os médicos à antiga costumavam transportar.

- Renato Rocha? – perguntou a musa.

- O próprio.

- Posso entrar?

Abri-lhe a porta, a musa entrou.

- Bela casa – disse-me ela.

- Será que pode ajudar-me? Tenho tido imensos problemas de inspiração…

Sentámo-nos no sofá, e a musa colocou descontraidamente a mala de couro no meio do tapete da sala.

- Fale-me do que se passa.

- Nada de mais, apenas que não tenho ideias para histórias novas ou, pior, tenho-as mas não as consigo executar.

- Tem andado a dormir mal?

- Às vezes.

- Come bem?

- Com regularidade.

- Tem algum problema de maior na sua vida que o possa estar a preocupar?

- Nada, apenas esta falta de inspiração…

- Ora vamos lá ver isso.

A musa estendeu o braço, agarrou na mala, arrastou-a para os seus pés e abriu-a. De lá puxou um estetoscópio colorido. Colocou-o nas orelhas, e ligou a outra extremidade, fria e platinada, à minha testa. Silêncio. A musa fechou os olhos em concentração.

- De certeza que tem andado a dormir bem? – disse ela baixinho. Olhou-me de lado, com os olhos brilhantes, uma espécie de desafio para descobrir se eu lhe estava a mentir ou não.

- Sim, bastante bem.

A musa voltou a fechar os olhos, mudou o disco metálico do estetoscópio de sítio, apalpando a minha testa. Finalmente terminou o exame, e guardou o estetoscópio.

- Sabe, ás vezes acontece. São coisas destas. Aborrecidas, mas assim mesmo. Faz parte. Talvez alguma pequena falha no sistema informático, poderemos ver isso. Consigo está tudo bem, é uma questão de ver na central se a sua ligação está com um sinal forte e activo… Mas… Há formas de apressar estas burocracias… - disse-me a musa, agarrando-me a mão, puxando-a para junto de si. Cruzou as pernas, e colocou a minha mão sobre o seu joelho. Olhei para ela, e ela sorriu-me como quem olha para um gelado de que gosta imenso.

- Você está louca. Está a tentar seduzir-me? – perguntei-lhe.

- Não… Porquê? Sente-se seduzido?

A musa inclinou-se, tentando desesperadamente aproximar os seus lábios dos meus. Eu dei-lhe um ligeiro empurrão, levantei-me do sofá.

- Muito obrigado, mas não. Faça lá o que puder fazer, quando lhe der jeito. E assim.

A musa pareceu pessoalmente ofendida, quase. Levantou-se, fechou a mala, olhou para mim com uma cara desafiante de “tu é que perdes” e saiu de minha casa, agitando as ancas como em sinal de despedida.

Esperei mais alguns dias, não muitos. Depois voltei a escrever.

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