domingo, 13 de dezembro de 2009

Hic Sunt Dracones

O último dragão do mundo acordou, desenrolou as asas e espreguiçou-se.

Tinha os músculos completamente entrevados. Tentou esticar as pernas, mas entretanto bateu com a cabeça no tecto da caverna e voltou a deitar-se. As asas pareciam completamente adormecidas, como se milhares de agulhas minúsculas as estivessem a picar.

Dali conseguia ver um pontinho de luz mínimo. A entrada da caverna. Já lá iria, pensou. Tinha de retomar forças e relembrar como se mexia cada músculo. Quatrocentos anos de hibernação não são brincadeira nenhuma.

Tentou esticar a cauda, mas a caverna não era profunda o suficiente. As pernas ganhavam força. As asas também. Abriu a boca e experimentou cuspir. Uma labareda pequena mas eficiente projectou luzes vermelhas e laranjas nas paredes da caverna, antes de se extinguir. Não estava mal. Para tanto tempo quieto, não estava nada mal.

A caverna era desconfortável e precisava de esticar as asas. Rastejou, com o pescoço comprido colado ao chão da caverna e as asas encolhidas como as de um pássaro. O ponto de luz foi aumentando até o envolver completamente.

Depois de habituar os olhos à luz do Sol, o dragão percebeu imediatamente que o mundo tinha mudado. Havia um cheiro no ar que não existia. Era um cheio a metais pesados e a combustão mal resolvida. As árvores à volta da caverna pareciam as mesmas de quando ali entrara, mas podia estar enganado. Havia insectos, e nuvens no céu. Mas aquele cheiro… Aquele cheiro trazia algo novo.

Abriu as asas, esticando-as até ao máximo. Um coelho que por ali passava, aterrorizado, correu para trás de um arbusto. O dragão viu-o, e sentiu um enorme ronco dentro do estômago. Tinha de se alimentar o mais rapidamente possível. Estava fraco. Poderia voar?

Agitou as asas uma vez, depois outra. Todas as árvores à sua volta se inclinaram na direcção oposta, como que assustadas. O seu corpo de lagarto levantou-se lentamente do chão, ganhando altura a cada batida de asas. Estava no ar.

O vento continuava o mesmo, as nuvens e o sol também. Tinha saudades de voar. Sentiu-se o dono do céu. O seu corpo comprido fazia pequenas ondas verticais, como um golfinho a sair e entrar na água do mar. As asas afastavam insectos e pássaros enormes à sua passagem. Rei do céu. Ele era o rei do céu.

Olhou para baixo. A floresta lá em baixo era uma mancha indistinta de verdes escuros e claros, pedaços castanhos de terra ou elevações repletas de flores coloridas. Tudo na mesma. O mundo continuava verde. O dragão voava, e olhava para baixo. Foi então que a viu.

Era uma risca grossa e escura, que atravessava a floresta como uma ferida profunda. Os seus dois extremos desapareciam no meio das árvores, como se continuassem infinitamente para lá do horizonte. O dragão tinha a certeza que aquilo não estava ali. Dobrou as asas. Desceu.

Vista de perto a risca era preta e áspera. Tinha uma risca branca, mais pequena, a correr pelo centro como se a dividisse ao meio. O dragão afincou as garras ao solo estranho e não o reconheceu. Olhou para os dois lados. À direita, uma colina onde a risca desaparecia, à esquerda uma planície enorme onde a risca de perdia ao longe. Seria infinita? Começou a preocupar-se. Aquilo não estava ali antes, o que a fizera aparecer entretanto?

Ainda tinha os ouvidos meio adormecidos por ter estado tanto tempo a hibernar na caverna; provavelmente foi por isso que não ouviu o camião. Ele apareceu detrás da colina e começou a descê-la a uma velocidade acelerada. O condutor parecia ir distraído com a música, que estava altíssima. O dragão contemplava placidamente a risca infinita, enquanto descansava as asas. Recuperara as forças. Ia levantar voo.

Virou a cabeça para o outro lado, o enorme pescoço de lagarto a oscilar sobre a risca branca no chão. Abriu os olhos e tentou focar o que lá vinha. Um enorme monstro, com olhos de vidro, testa de cristal e correndo sobre rodas, aproximava-se rapidamente. O dragão abriu a boca furiosamente, e rosnou. O monstro oscilou momentaneamente, mas sem perder velocidade. Um enorme rosno saiu da boca do monstro, que corria descontroladamente na direcção do dragão. Ele abriu as asas, e recomeçou a rosnar enquanto tentava levantar voo. O monstro começou a abrandar, chiando como um demónio dos infernos, deixando marcas negras e fumo por onde passava. O dragão levantou as patas do chão, sentiu-se a flutuar; mas o monstro foi mais rápido.

A cabeça do dragão foi atingida pela testa de cristal do monstro sobre rodas, que se quebrou em milhares de pedaços. O pescoço do dragão entrou pela cabeça do monstro adentro, como se estivesse a espreitar para dentro de uma janela. As patas do dragão perderam as forças, e as asas caíram como gigantescos toldos ao vento. O monstro sobre rodas parou finalmente, com fumo a sair-lhe da boca. Havia sangue verde de dragão no chão, nas rodas, na cabeça do monstro.

Nenhuma das criaturas se mexeu. O último dragão do mundo perdera esta batalha.

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