domingo, 14 de fevereiro de 2010

Espinafres nos dentes e um copo cheio de sumo: demasiadas coincidências?

Dois acontecimentos recentes fizeram-me pensar na aleatoriedade da vida, e na forma como o acaso pode por vezes parecer ensaiado.

Explico: há dias estava em casa dos meus avós a espremer laranjas. Era enormes. Usei uma daquelas maquinetas para espremer as laranjas. Fiz sumo, somei cascas de laranja espremidas, fui buscar um copo. E qual não foi a minha surpresa quando reparei que o sumo espremido enchia o copo que trouxera do armário até ao topo, e meticulosamente até ao topo, sem deixar espaço para mais ou transbordar. Pensei imediatamente que um observador de outro planeta veria naquilo um espectáculo da natureza. Se um amigo meu marciano estivesse a almoçar lá em casa até poderia convencê-lo que aquilo tinha algum tipo de significado. Que as laranjas tinham sido feitas para aquele copo, ou que o copo tinha sido calibrado para receber aquela quantidade exacta de sumo. Poderia até vender-lhe a ideia que as laranjas foram, na verdade, evoluindo em paralelo com a humanidade de forma a encaixarem nos nossos copos na perfeição.

Hoje, uma situação semelhante. Num filme na televisão, a horrífica actriz Eva Longoria fazia um papel de uma agente do FBI; e numa das poucas cenas que vi do filme, só de passagem, ela dizia a um dos outros agentes "Tem espinafres nos dentes". Qual não foi a minha surpresa quando, apenas seis horas depois, ao pesquisar por entre vídeos do Youtube e ir parar a um vídeo de um músico satírico que gosto particularmente, ouvi outra vez a expressão "Tens espinafres nos dentes"; não só a mesma expressão, mas dita na mesma língua! Com certeza pode tratar-se de sinais escondidos, de uma poderosa conspiração que secretamente procura controlar a televisão e a Internet e cujos padrões de comunicações secretas acabei de descobrir.

Estas duas situações fizeram-me pensar na forma como lidamos com a aleatoriedade nas nossas vidas, e como lhe damos significado quando toma formas reconhecíveis ou surpreendentes. Por exemplo, alguém que faça torradas todos os dias saberá que o padrão de queimadura das torradas é diferente todos os dias; mas se um dia esse padrão, aleatório, se parecer com um cão ou com uma face humana, o que era aleatório passa a ter um "significado" (Pesquisem "Jesus+toast" no Google e vão perceber o que quero dizer).

Das torradas passamos para outros exemplos. Encontrar a mesma pessoa, ou referências à mesma pessoa, duas vezes no mesmo dia, há-de ter algum significado. Ligar para alguém quando essa pessoa nos ia ligar também mostra uma "forte ligação espiritual", ou qualquer coisa do género. Se o meu horórcopo me diz que vou ter dores de barriga ou que o dia me vai correr bem e tenho dores de barriga ou o dia me corre bem, é porque os horóscopos lá terão as suas façanhas adivinhatórias. Ou quando dois canais passam dois filmes com o mesmo actor, terão combinado?

A verdade é que damos muita importância àquilo que nos é reconhecível, e que, dentro da aleatoriedade, reconhecemos e conseguimos compreender. Já vi uma analogia sobre isto ser feita com um baralho de cartas. Se, ao jogarmos póker, tivermos a sorte de obter um full house, dependendo do full house, poderemos até ganhar (Estou a dizer isto como se percebesse muito de póker, mas é irrelevante para a analogia); no entanto, o mesmo conjunto de cartas não terá qualquer significado para alguém que não sabe jogar póker. Pode até reconhecer o padrão entre algumas das cartas (por exemplo, três seis); pode, até, ser o meu amigo marciano, que nem sabe o que são ouros ou paus, e por isso não consegue sequer compreender o conceito de baralho de cartas, muito mais o conceito de full house e assim atribuir o mesmo valor que eu àquele grupo de cartas. Para ele, é um conjunto de cores e números; para mim, trata-se de uma sequência específica que me permite vencer o jogo.

Por outras palavras, somos muito bons a atribuir significados ou explicações ao que é sobrenatural, ou ao que é tão aleatório que parece impossível; no entanto, não estamos necessariamente a descobrir nada novo. Obviamente as laranjas não foram feitas para, ao serem espremidas, o seu sumo caber perfeitamente no meu copo; no entanto, as probabilidades de tal acontecer são tão enormes que deve haver algum significado escondido atrás de tal acontecimento! Certo?

No entanto, a probabilidade de a quantidade de sumo ser a exacta necessária para encher o copo até ao topo é, de certa forma, a mesma probabilidade de obter qualquer outra quantidade de sumo; claro que isto é limitado a algumas variáveis. Com duas laranjas, o sumo obtido nunca será 0,00003 litros, muito menos 70; mas dentro de certos limites, a probabilidade para cada quantidade é a mesma. Ao lançar um dado, as possibilidades de obter 1, 2, 3, 4, 5 ou 6 são as mesmas; mas se eu já estiver à espera de um 5, esse 5 obtido irá totalmente ao encontro das minhas expectativas e desejos. Deverei agradecer à sorte, ao dado, a um ser sobrenatural? E se tivesse saído 4, e estivesse num casino, e tivesse perdido todas as minhas poupanças?

O poder da aleatoriedade é grande, e atribuimos facilmente qualquer aleatoriedade esperada ou desejada a um plano universal, a uma entidade, ou a outra coisa qualquer; no entanto, não nos podemos deixar enganar. Se conseguir encher, com duas laranjas, um copo até ao topo todos os dias durante alguns meses (partindo do princípio que troco de copo, espremedor e marcas de laranja, de maneira a tentar eliminar todas as variáveis), então aí o Poder das Laranjas terá algum significado, e o meu amigo marciano (caramba, até eu próprio) teremos razões para acreditar que algo sobrenatural se passa no meu espremedor e na cozinha da minha avó. Até lá, nada me indica que o Universo se curvou à minha necessidade; mas também não é o fim do mundo, pois não?

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