segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

(um post gigantesco sobre) A crença na ciência

Em resposta ao desafio de um dos leitores deste blog, com quem tenho elucidativas e interessantes discussões sobre religião, vou aqui tentar mostrar como uma das proposições religiosas mais famosas e utilizadas é fundamentalmente errada. Trata-se do argumento "Ateísmo e ciência são crenças, tal como a crença em Deus"; é, de certa maneira, uma variante de "Ateísmo baseia-se tanto em fé como acreditar em Deus".
Vamos primeiro definir conceitos, de forma a afastar qualquer obscuridade sobre as palavras utilizadas; não só para percebermos bem o que quer dizer crença ou ateísmo quando utilizamos estas palavras, mas também porque o peso das palavras será importante para esclarecer alguns pontos.
O meu dicionário (Dicionário Universal da Língua Portuguesa, Texto Editora, 1995) define crença como fé religiosa; convicção. A minha enciclopédia (Grande Enciclopédia Universal, edição Correio da Manhã, 2004) diz-nos que crença é o "acto de crer; opinião forte, adoptada com fé e convicção; crédito que se dá a um facto ou acontecimento como seguro ou certo; fé religiosa; sinónimo de fé, credo, convicção". Por outro lado, e uma vez que vem à baila, o mesmo dicionário e enciclopédia definem fé como "crença religiosa; crença, convicção em alguém ou alguma coisa, firmeza na execução de compromissos; virtude teologal", e "crença que se dá às coisas por autoridade de quem as diz ou por fama pública; crença religiosa".

Encontramos aqui uma relação de semelhança entre ambos os conceitos, "crença" e "fé". Passemos as outros dois conceitos importantes, ciência e ateísmo.

Ciência (segundo o mesmo dicionário e enciclopédia) trata-se de um "conhecimento rigoroso e racional de qualquer assunto; corpo e conhecimentos, sobre determinado tema, obtido mediante um método próprio; conjunto organizado de conhecimentos baseados em relações objectivas verificáveis e dotados de valor universal; "conhecimento de certo das coisas, dos seus princípios e causas; investigação metódica das leis dos fenómenos". E ser ateu, o que significa? "Pessoa que não acredita na existência de Deus". Cá está. Vejamos, então.


"Para ser ateu é preciso ter fé; acreditar em Deus e não acreditar são ambas posições de fé!"

Há uma diferença enorme entre acreditar em Deus e não acreditar. A fé, vocábulo muito utilizado pelos religiosos, está intrinsecamente ligada à religião mas não ao ateísmo. Sendo a negação de uma crença, o ateísmo não só não precisa de nenhuma fé como não se baseia nela. A posição de não acreditar em Deus até que alguma prova conclusiva seja apresentada não requer fé, requer apenas o bom senso de olhar para o mundo de uma forma analítica e imparcial.

Um exemplo pode ajudar a ilustrar o que estou a dizer. Alguém concordará que é preciso tanta fé para acreditar em fadas como para não acreditar? Como em qualquer afirmação, o ónus da prova está em quem a faz; é por isso que qualquer arguido num processo judicial é considerado inocente até ser provada a sua culpa. A polícia deve construir um caso e apresentar as suas provas de forma a comprovar que um assassino matou determinada pessoa; a acusação não é tomada como facto inviolável. Se a polícia não apresentar qualquer prova relevante contra o arguido, o juiz não precisa de outra razão para o declarar inocente daquele crime, sem ser preciso que a defesa sequer se pronuncie.

Não há razões para acreditar em fadas, e é por isso que ninguém acredita na sua existência; não por ter fé que elas não existem, mas porque não há razões para levar a sua existência a sério. Eu posso acreditar plenamente que tenho um dragão debaixo da cama, mas essa afirmação será irrelevante e ignorada por toda a gente se não conseguir comprovar que o dragão existe na realidade. Neste caso, tal como no exemplo referente à defesa e acusação, quem tem de provar alguma coisa sou eu, que acredito no dragão, e não o resto do planeta, procurando provar que o dragão não existe. Da mesma forma, todas as outras pessoas não acreditarão no dragão debaixo da minha cama baseando-se em fé, apenas na falta de informações.

A mesma coisa funciona para a existência de Deus. Os ateus não acreditam em Deus pela mesma razão que não acreditam em unicórnios ou fadas (aliás, pela mesma razão que qualquer religioso é ateu em relação a todos os Deuses existentes, menos o seu): porque não há razões para acreditar. No entanto, os religiosos argumentam que Deus existe e que isso é um facto, e que por issto têm fé; na sua prespectiva, não acreditar em Deus é igualmente uma posição de fé. A sua prespectiva está errada. O ateísmo não é uma posição dogmática e inflexível. Se amanhã houver razões suficientes para acreditar que qualquer entidade sobrenatural existe, eu acreditarei sem problemas; no entanto, até lá, não precisarei de fé para não acreditar em algo para o qual não há razões satisfatórias para acreditar.
Como nota final, é de sublinhar que é possível haver religião sem ateísmo, mas não ateísmo sem religião; ateísmo é a resposta a uma afirmação baseada numa crença, e não uma crença por si só.

"Ter fé em Deus é tal e qual como ter fé na Ciência: é acreditar em algo e pensar que temos razão."

Não.
A ciência é o processo pelo qual conhecemos o mundo natural, e podemos reunir conhecimento e informação e utilizar certos dados para fazer previsões correctas. Utilizamos o método científico como forma de analisar os dados que recolhemos do mundo e organizá-los. Não se trata, portanto, de uma fé. Trata-se de compreender o mundo ao analisar os dados recolhidos de forma objectiva.
Um exemplo. A teoria da evolução por selecção natural foi proposta por Darwin há 150 anos atrás, altura em que a discussão sobre a validade da teoria foi bastante acesa. Darwin podia estar enganado. Tinha alguns exemplos e argumentos favoráveis à sua ideia, e por isso, mesmo na altura, foram muitos os que o apoiaram; no entanto, 150 anos depois, todos os conhecimentos na área da biologia, biologia molecular, genética, paleontologia ou geologia ajudam a perceber o processo pelo qual todos os seres vivos evoluíram. A descoberta do DNA, e especificamente a descoberta do seu papel único e importantíssimo na hereditariedade, veio corroborar a ideia de Darwin: todos os seres vivos têm um ancestral em comum. Estranhamente ou não, hoje temos exemplos incontáveis de fósseis que demonstram uma passagem progressiva de um ser vivo para o outro, mais especificamente a evolução lenta e adaptativa que os seres vivos sofreram ao longo de milhões de anos. Por outro lado, podemos hoje comparar o DNA dos seres vivos e descobrir que dois seres vivos têm informação genética comum, quaisquer animais que sejam, e que quanto mais próximos se encontram na árvore da vida, mais idêntico é o seu DNA.



O Archaeopteryx, um ser vivo que viveu no Jurássico (há 150 milhões de anos) e que apresenta características de réptil e ave, pelo que se pensa tratar de um exemplo bastante visual da passagem progressiva dos répteis do tempo dos dinossauros para as nossas aves actuais

Não há uma conspiração secreta a liderar estas descobertas; muito menos podemos achar que todas as ciências da vida estariam erradas na precisa proporção necessária para nos dar uma gaçsa ideia de unidade e coerência. A verdade é que olhar para o mundo natural com olhos de ver e retirar dele alguns dados, aliado à nossa capacidade de raciocínio, pode fazer maravilhas. Nada em ciência é opinião ou crença, porque nenhuma ideia sobrevive sem ser fundamentada. Um cientista que apresente uma ideia, qualquer que ela seja, e reinvidique razão, é rapidamente ignorado pelo resto da comunidade científica se não tiver provas, dados ou informações que demonstrem que a sua hipótese pode sequer ser levada a sério. Sem isto, a ciência seria uma colecção de propostas e proposições infundadas. Tudo é medido, observado, testado e repedito, ou tudo se enquadra num modelo que procura explicar qualquer fenómeno; e, por não ser dogmática, a ciência já esteve errada (e continua, e continuará a estar em algumas questões).


"Levas a ciência a sério? Seu burro. Não sabes que eles antigamente achavam que a Terra era plana? Como podes confiar no que te dizem, se estão sempre a mudar de opinião?"


Como muitos religiosos gostam de referir, muitos cientistas antigos fizeram proposições ridículas. Isaac Newton, por exemplo, acreditava na alquimia (e, a propósito, em Deus); não por Newton ser burro, mas porque na altura em que viveu a ciência evoluíra até certo ponto, e só até aí. A sua teoria corpuscular da luz, por exemplo, explicava com eficácia todos os fenómenos da luz (reflexão, refracção e decomposição da luz branca) conhecidos na altura; no entanto, alguns anos depois, a teoria corpuscular foi substituída pela teoria ondulatória, pois apenas esta explicava as mais recentes descobertas no campo dos fenómenos da luz. Actualmente, o modelo aceite é o da dualidade onda-partícula, muito diferente de qualquer outra proposição com a qual Newton alguma vez sonhara. A ciência evoluíra, e procurara explicar o mundo à medida que o mundo se ia tornando menos misterioso.

Entretanto, muitos dos erros que os antigos tomavam como factos foram e estão a ser corrigidos, e é provável que ainda mais concepções que hoje tomamos como certas sejam destruídas amanhã. Isto não invalida todo o trabalho e descobertas feitas por esses cientistas. Newton não deixa de ser um dos mais importantes cientistas da História só porque a sua teoria corpuscular da luz e as suas suposições sobre a gravidade podem estar erradas ou ultrapassadas; foi graças ao seu trabalho que as gerações seguintes, munidas desses conhecimentos, puderam fazer investigações mais abrangentes e precisas, descobrindo as falhas nos modelos sobre os quais tinham sido ensinados na escola e podendo, assim, corrigi-los para o bem do conhecimento humano.

Isto porque a ciência, ao contrário da religião, não crê. Vê, mede, analisa, e retira conclusões; e, mais importante, corrige-se a si própria. É o método científico que nos permite corrigir os modelos que, entretanto, descobrimos serem errados; em nada a crença ou o apego a determinada ideia ou teoria tem peso na busca pela verdade. A convicção pessoal de um cientista nunca pesará tanto como um dado objectivo mas contraditório.


A ciência pode ser repetida

A ciência contém outra característica importante, e que não só nos dá razões para aceitar as conclusões científicas como nos permite fazer previsões acertadas sobre o mundo: a ciência pode ser repetida. As medidas podem ser feitas várias vezes, de forma a diminuir os erros de leitura; as mesmas experiências podem ser repetidas por diferentes cientistas em diferentes lugares do mundo, com os mesmos resultados. Ao datar uma rocha, por exemplo, os cientistas utilizam diversos processos de datação. Se um cientista chinês, um australiano e um inglês chegam, por processos diferentes ou até iguais, à mesma idade aproximada da rocha em questão, é difícil acusá-los de "crer" que a idade da rocha é X; todos os dados, dentro da nossa capacidade actual de entender a realidade, apontam para a idade X. Não há razões para duvidarmos de sistemas de datação que são usados todos os dias, e que apesar de distintos e de se basearem em diferentes formas de calcular a idade de um objecto ou substância, apresentam resultados incrivelmente aproximados e de forma sistemática. Não seria de esperar que se tudo não se tratasse de uma crença selectiva ou de um erro de cálculo, os vários processos de datação chegassem a conclusões distintas?

Assim é com a evolução, já aqui referida; podia ser que os milhares de fósseis descobertos entre os dias de Darwin e a actualidade, bem como todas as informações recolhidas sobre o funcionamento da hereditariedade e dos genes, fossem contra a ideia da selecção natural. No entanto, isso não acontece. Não se trata dos cientistas escolherem acreditar na teoria da evolução; enquanto ela funcionar como modelo que explica os fenómenos biológicos e a origem da diversidade dos seres vivos, e até novas informações destruírem os seus fundamentos, a evolução por selecção natural continuará a ser o modelo utilizado. Não por crença ou fé cega e parcial, mas porque funciona mesmo quando tentamos explicar o que observamos no mundo e obter previsões sobre o que vai acontecer.

A religião, pelo contrádio, justifica a divindade dos seus Deuses e profetas com acontecimentos antigos, mal fundamentados e longe de poderem ser testados ou repetidos sob condições controladas, ou sob a observação directa de qualquer ser humano. A vida de Jesus, sobre a qual há pouquíssimas e nebulosas referências fora da Bíblia, está repleta de milagres que desafiam as leis naturais. O próprio nascimento de Jesus (e de outras figuras centrais de outras religiões mais antigas, já que não é difícil encontrar semelhanças entre as histórias mitológicas de muitas das religiões de há uns quantos milhares de anos), bem como o seu caminhar sobre a água e a sua ressurreição, sem a qual a divindade do personagem seria duvidosa, são milagres incríveis, mas nunca repetidos. Jesus investiu tempo e energia em provar a torto e a direito a sua divindade a qualquer pessoa que encontrasse pela rua, mas hoje em dia é incapaz ou recusa-se a repetir a façanha.

A crença nestes acontecimentos baseia-se na crença de um livro traduzido e copiado de língua em língua, século em século, mão em mão e motivações em motivações. Acreditar num método de datação por carbono, baseado em fenómenos conhecidos e observados da física e da química, que hoje em dia é feito diariamente sob condições controladas, e acreditar que um homem chamado Jesus voltou dos mortos há dois mil anos atrás porque uma colecção de livros contraditórios entre si nos referem tal acontecimento; são duas "crenças" ao mesmo nível? Tenham dó.

Crer na ciência é a mesma coisa que crer em Deus?


Em ciência não há certezas absolutas nem dogmáticas, mas na religião sim. Em ciência, há razões para acreditar nas coisas, e essas razões podem ser comprovadas por outras pessoas várias vezes ao dia, e sem nenhum tipo de crença prévia nos resultados. Não "acreditamos" nos antibióticos, eles funcionam mesmo. Não acreditamos nos fenómenos ópticos ou no funcionamento dos electrões; é graças a eles que temos comunicações ou satélites. Por explicar convincentemente o mundo que nos rodeia, por obter resultados práticos e em concordância com a realidade, e por se corrigir a si própria à medida que nova informação é descoberta, a ciência é e continuará a ser a única forma válida de obter algum tipo de conhecimento sobre o mundo natural.

A religião, por seu lado, mantém-se inalterada, mudando aqui e ali os seus dogmas e as suas desculpas para melhor se justificar à luz das descobertas dos últimos séculos. Basta reparar como, ao longo dos tempos, a figura de Deus serviu para explicar a origem do planeta e do Homem muito antes de estes processos serem compreendidos como sendo mecanismos puramente naturais, sem a necessidade de uma explicação divina. A explicação "Deus" é mantida para tentar justificar tudo o que, no contexto do conhecimento humano, ainda não foi explicado de outra maneira. Esta posição é uma falácia, e uma óbvia desonestidade; e à medida que nos movemos para uma sociedade que cada vez mais compreende o mundo e se compreende a si própria sem necessitar de uma justificação sobrenatural, é mais do que natural a necessidade da religião de tornar o seu Deus uma nebulosa criatura infinita e fora das leis comuns da nossa realidade. Afastando Deus do domínio do natural e do real, e por definição do investigável, colocamo-lo numa prateleira tão alta que ninguém lhe pode chegar; e assim, o religioso sente-se justificado em acreditar, porque a "crença" na ciência ainda não chegou ao seu Deus. Não há uma crença cega na ciência; e se houvesse, haveria muito mais justificações para acreditar na ciência do que em Deus. No entanto, não é a fé o combustível da ciência; é a vontade de obter conhecimento e verdade, ao invés de aceitar o que nos é dito por um livro.

O ateísmo e ciência são normalmente colocados lado a lado, porque ambos têm em comum o horror à crendice gratuita e a vontade de "acreditar", e levar em conta apenas aquilo em que há razões para ser levado em conta. A ciência é, portanto, diferente da religião. Não garante ser possuidora da verdade absoluta, muito menos afirma que aquilo que "sente" ou "acredita" são factos inegáveis; e, principalmente, a ciência não tem problemas em admitir que está errada quando está errada, procurando imediatamente corrigir esses erros sem vergonhas ou receios de perder credibilidade.

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