quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Uma Mulher chamada Ovária, Um Homem chamado Destino

Ovária era seu nome. Não sabia bem quando nascera, se bem que nascera e apenas isso lhe importava. Toda a vida correra mundo em busca de emprego, sítio onde repousar o corpo e, quiçá, fama e fortuna. Ovária tinha uma mala, onde guardava todas as suas posses: uma escova de dentes, um desodorizante, uma garrafa de rum, e uma muda de roupa e uma velha fotografia de seus pais. O homem à esquerda tinha longas barbas castanhas, e usava um fato macaco. A mulher à direita tinha um longo vestido e cara de postura de quem ganhava a vida a apanhar cenouras. Assim era. De seus pais, sua única ligação ao passado, Ovária possuia apenas uma leve memória a sopa de cenouras e aquela fotografia amarelada e gasta.

Ovária era arredondada, curvilínea, pode até dizer-se cheia. Não que isso lhe importasse. Teve a sua quota parte de aventuras amorosas. Em Itália, namorou um moço que por ela se apaixonou perdidamente; era poeta, bêbado e de duvidosas ligações com tipos ricos de fato que dominavam os casinos da Sicília. Em Viena, cruzou-se com um homem casado que dela apenas queria a fugaz visita a um corpo diferente; correu com ele. No México, quase foi morta ao atravessar um deserto pelo homem que amava; e quando chegou ao seu destino, com a sua mala com todas as suas posses lá dentro, primeiro bebeu água e depois foi encontrá-lo deitado numa cama com outra mulher. A partir daí decidiu nunca mais sofrer ou correr por homem nenhum, nem deixar-se ser enganada por ninguém.

Pois aqui está ela. Foi cozinheira, ajudante de pedreiro, empregada num Pub inglês, lavou escadas, aprendeu a fiar, aprendeu a matar entretanto, por via da necessidade; mais vivida que Ovária será difícil de encontrar. Senta-se agora tomando um copo, e entre golos de pesado vodka russo, puro o suficiente para corar as bochechas a um lutador de boxe, olha em volta para quem a rodeia naquele bar. São duas da manhã, e Ovária tem a sensação de que por esta altura terá feito 54 anos. Não sabe, não tem como os contar; segue bebendo.

Num canto do bar, um homem de chapéu e fato negro pede outra garrafa, exige que lhe encham o copo outra vez, e mais outra, e o dono do bar grita-lhe para se pôr a andar e por favor não vomitar para cima de nenhum cliente. O homem de negro, magro, esquelético, de porte fácil de rasteirar ou partir com um empurrão certeiro, cambaleia até à porta do bar. Olha em volta, os seus olhos dois berlindes à solta, e quase pisa um cavalheiro mal vestido. O cavalheiro, de feia dentição e ombros largos como a ombreira de uma porta, levanta-se e exige explicações. Ovária bebe vodka. O cavalheiro procura agarrar os pulsos do homem magro, que se afasta com um salto cambaleante e lhe levanta o dedo médio, esquelético e fino. O cavalheiro-ombreira-de-porta sobe para cima dele, querendo parti-lo ao meio. O dono do bar sua pela testa abaixo. Ovária bebe vodka. O homem esquelético deita a língua de fora, cambaleando pelo meio das mesas. O cavalheiro -ombreira-de-porta persegue-o a longa distância, correndo o risco de tropeçar nos próprios músculos e na própria banha. Ovária bebe vodka. O dono do bar chora. O cavalheiro-ombreira-de-porta partiu várias mesas, o homem esquelético saiu porta fora, cai sobre uma poça de água, adormece. Saem bolhinhas de dentro da poça. Ovária termina o vodka. O cavalheiro-ombreira-de-porta vai esmagar o homem esquelético com um punho, mas para subitamente. O homem esquelético levanta a cabeça da poça, procurando ar. Ovária pegar na mala e sai pela porta do bar, passando o cavalheiro-ombreira-de-porta, agarrando na cabeça do homem esquelético e levantando-o pelos cabelos.

- Vamos lá ter calma com isto. O senhor - dirige-se ao cavalheiro-ombreira-de-porta, parado, como uma estátua - vá continuar a sua noitada.

Ele foi, sem perceber bem porquê. O homem esquelético agarra-se a Ovária com ambas as mãos magras e finas e diz-lhe:

- O seu destino é meu - e adormece.

***

A estalagem onde Ovária dorme com o homem esquelético é porca e barata, mas serve. O homem esquelético vomitou três vezes para dentro de um balde, e Ovária limpa-lhe a boca.

- Nem sei como lhe agradecer - disse o homem esquelético.

- Não precisa. Sente-se melhor.

- Oh sim, muito - disse o homem esquelético. Voltou a vomitar, enterrando a cabeça despenteada dentro do balde. Olha para Ovária, longamente.

- Como se chama?

- Ovária.

- Não me pergunta o nome?

- Pouco me importa.

- Chamo-me Destino, e sei o futuro.

- Ora que bom para si.

- Sou o Destino das coisas, sabia?

- Deite lá tudo cá para fora e não diga disparates.

- Queria Ovária, os seu Destino está traçado - e com isto o homem esquelético, que afinal era o Destino, abriu a camisa ao meio e revelou um peito magro e pálido, coberto de pequenos pontos unidos por pequenas e finas linhas, um mapa infinito e complexo tatuado na sua pele com uma tinta lilás. Apontou para um ponto, junto ao mamilo.

- Aqui está.

Ovária observou. Escrito a pequeníssimas letras lilases, estava um nome: Ovária.

- Sei para onde vai, como vai, e quando irá morrer - disse o Homem chamado Destino.

- Não acredito.

- Não lhe devia mostrar isto, é contra as leis.

- As leis?

- As leis que governam o Universo. São várias, complexas, escritas em letra pequenina como os contratos para comprar qualquer coisa. Tive de as ler e decorar, não foi fácil, mas sei-as todas. Não as posso dizer, não me peça. Porém, como forma de agradecimento por ter salvo a minha vida, dir-lhe-ei o que quiser do seu Destino. Pergunte, Ovária.

Ovária olhou para o peito do homem, e o seu futuro escrito em linhas assustou-a. Pareceu-lhe curto. Duas e três linhas e terminava, mesmo antes de chegar ao umbigo.

- Quando vou morrer? - perguntou, segurando o balde.

O Destino seguiu as linhas com um dedo esquelético.

- Espere - disse Ovária de repente. O Destino parou - Não quero saber.

- De certeza?

- De certeza.

- Pois como queira. Passe-me o balde - e o Destino vomitou outra vez. Quando voltou a tirar a cabeça do balde, viu Ovária à sua frente. Estendeu-lho, ela aceitou-o, agarrou-lhe pelas pegas e arremeçou-o com força. O balde embateu na cabeça do Destino com uma força tal que a abriu ao meio, como a uma melancia. O Destino caiu para o lado, tombando sobre a sua cabeça. Ovária respirou fundo, ofegantemente, surpreendida pela facilidade da sua façanha. Desceu ao andar de baixo, pediu emprestada uma faca para cortar um pedaço de pão que trouxera, e regressou ao quarto.

Ovária é seu nome, e com ela leva uma mala com todas as suas posses: uma escova de dentes, um desodorizante, uma garrafa de rum, uma muda de roupa, uma fotografia de seus pais e, ainda quente e ainda sujo de sangue, o mapa do Destino da Humanidade. O que fará com ele ela lá saberá, mas chegará o dia da sua morte antes de se atrever a olhar para as linhas lilases que correm do nome "Ovária" e que marcam o seu destino.

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