domingo, 28 de março de 2010

Espelho | ohlepsE

Se eu colocar um espelho à frente do outro, o que acontecerá?, perguntava-se Alice enquanto acordava. Talvez fosse por causa do teste de filosofia, para o qual não estudara. Esquecera-se. Perdera-se no seu mundo de fantasia e filosofia muito pessoal, sem o qual Kant e Locke não pareciam ter interesse por si só.

Alice entrou para a casa de banho, levando consigo a roupa que iria vestir nesse dia. Escolhera-a a olho, sem preocupações quanto a equilíbrios cromáticos ou decotes equilibrados. Olhou-se ao espelho. O seu cabelo louro estava caótico. Estava com cara de sono. Não queria ir para a escola, muito menos fazer aquele teste. Não lhe apetecia sair de casa. Abriu a torneira, e em pouco tempo as paredes da casa de banho estavam cobertas por uma fina camada de vapor de água. A água estava quente, e Alice sentiu-se tão bem dentro da banheira que lavou o corpo, o cabelo, e deixou-se ficar mais cinco minutos sem saber bem o que pensar ou dizer, comendo tempo debaixo do chuveiro relaxante.

Saiu da banheira, enrolou-se na toalha de banho e limpou o espelho à espera de ver a sua cara molhada e os seus olhos mais acordados a olhar para ela. Não estava lá.

Alice piscou os olhos. Não andava a dormir assim tão mal; mas o espelho estava vazio. O reflexo mostrava o cortinado da banheira atrás de si, a pingar, e a um canto a prateleira onde guardava o gel de banho e o shampô; mas Alice desaparecera.

O sono trouxe a Alice um pensamento irracional: o espelho estava avariado. Sorriu, mas retomou a cara séria ao ver que a Alice do espelho regressava, completamente vestida, e olhava agora para ela.

- Bom dia – disse a Alice do espelho, ajeitando a camisola.

- Bom dia – respondeu a Alice, a verdadeira.

- Desculpa se te assustei.

- Isto vai tudo contra aquilo que é… normal – disse a Alice verdadeira. A Alice no espelho deu uma gargalhada, igual à gargalhada que a Alice verdadeira dava quando estava divertida.

- Bem, não conheces muito do mundo, pois não?

- Estou a ter uma alucinação – disse a Alice verdadeira.

- O teu creme está a acabar. O hidratante. Toma – disse a Alice no espelho, procurando por entre o pequeno cestinho com cremes do seu lado do espelho, cesto igual ao que a verdadeira Alice tinha na sua verdadeira casa de banho. A Alice do espelho encontrou o creme, e estendeu-o através do espelho. Alice, a verdadeira, aceitou-o. Tinha agora dois cremes, um no cestinho à sua frente, no lavatório, e outro na sua mão.

- Não queres fazer o teste, pois não? – perguntou a Alice do espelho, cruzando os braços.

- Desculpa? – perguntou a Alice verdadeira.

- O teste. O que achas de ser eu a fazê-lo por ti?

- Tu?

- Sim.

- Tu és o meu reflexo.

- Sou.

- Então tu és eu.

- Não lês muita ficção científica, pois não?

- Isto é a coisa mais estranha que me aconteceu…

- Estou a ver que não. Queres vir aqui? – perguntou a Alice do espelho, estendendo-lhe a mão. A Alice verdadeira estendeu a mão, e sentiu-a atravessar o espelho. Meteu o pé em cima do lavatório, içou-se com a ajuda da Alice do espelho, e atravessou-o para o outro lado. A casa de banho do espelho era absolutamente igual à sua, mas o chão não estava frio nem o aquecedor produzia qualquer calor.

- Bem vinda ao reflexo – disse a Alice do reflexo, que agora era apenas uma Alice uma vez que ambas estavam ali, dentro do reflexo.

- Explica-me como chegar à tua escola – pediu a Alice do reflexo, e a Alice verdadeira explicou-lhe brevemente o caminho. A Alice do reflexo empoleirou-se no lavatório e atirou-se para o outro lado. A Alice do reflexo era agora a Alice real, e a Alice que era real estava agora no espelho, dentro do reflexo, ela era reflexo. Confusa, perguntou:

- Espera. Onde estou? Que lugar é este?

- É o reflexo da tua casa de banho. O que achas?

Alice, a que era real e agora era a do espelho, olhou para a porta da casa de banho.

- Posso sair?

- Da casa de banho? Claro, mas por favor não te metas dentro de outro espelho. Se a tua mãe te descobre dentro do espelho enquanto se penteia ainda se assusta.

- A minha mãe não é tua também? – perguntou a Alice real.

A Alice do espelho riu-se.

- Tem um bom dia. Quando chegar aviso-te. Obrigado por esta oportunidade. Sempre tive curiosidade para saber como era viver no mundo do outro lado do espelho!

A Alice real ia perguntar o que significava isso do “outro” lado do espelho, mas a Alice, a que fora reflexo e agora era real, saiu da casa de banho a correr, a caminho da escola.

Alice ficou parada por alguns momentos. A luz da casa de banho fora desligada, e agora a única fonte de luz era a pequena lâmpada do esquentador, cor de laranja, que indicava que estava ligado. Alice prendeu melhor a toalha à volta do corpo e abriu a porta da casa de banho. Saiu.

Uma réplica perfeita do seu hall de entrada, com as diversas portas para os quartos e cozinha, estava à sua frente. Uma mulher, igual à sua mãe, estava à frente do espelho que a sua família tinha ao lado da porta de casa.

- Alice, pelo amor de Deus. Estás atrasada para a escola! – disse a Mãe real, do outro lado do espelho; ou seria do lado de fora?

- Alice, pelo amor de Deus. Estás atrasada para a escola! – disse a Mãe deste lado do espelho, exactemnte ao mesmo tempo.

- Eu sei! – disse uma voz, que Alice reconheceu como a sua. Uma porta abriu-se, e a voz que era a sua voltou a dizer:

- Adeus, mãe!

A porta fechou-se.

- Adeus, filha –disse a Mãe do lado de lá do espelho.

- Adeus, filha – disse a Mãe do lado de cá do espelho, imitando cada movimento calculado da outra Mãe. A Mãe real desapareceu de frente do espelho em direcção à cozinha, e a Mãe deste lado acompanhou-a, saindo de frente do espelho exactamente pelo mesmo lado. Alguns passos depois, descontraiu e sentou-se numa pequena cadeira a um canto do hall de entrada. Abriu uma garrafa de água, bebeu um gole ou dois, e olhou para Alice.

- Então? Tudo bem?

- Vai-se andando – disse Alice.

A Mãe olhou para a garrafa que estava a beber, e voltou a olhar para Alice com os olhos mais abertos.

- Porque estás de toalha? A Alice saiu de casa vestida!

- Eu… - disse Alice, procurando justificar-se.

- Oh, não acredito. Tu não és a Alice.

- Sou sim – disse Alice.

- Não, não és. Ou pelo menos não és a Alice que deverias ser. Trocaste de lugar com a Alice, não foi? Com a outra Alice. A verdadeira.

- Eu sou a verdadeira. A outra Alice é que é o reflexo meu. Do espelho. Sem eu não haveria ela.

- Essa é boa.

- É a verdade.

- Deixaste-a trocar assim de lugares contigo?

- Porquê?

- Não sei, parece-me confuso e despropositado.

- Apenas fiquei curiosa para saber o que aconteceria deste lado.

- Mas se já tens a tua vida do outro lado, para quê vir para este?

- Queria fugir a um teste.

- Ah, bom. Honestidade.

- A outra Alice ofereceu-se.

- Queres dizer a verdadeira Alice?

Alice não sabia. A sua Mãe sorriu.

- Estava-me a meter contigo.

O seu sorriso desapareceu, largou a garrafa de água e correu para a frente do espelho. Assim que se aproximou dele, e de um segundo para o outro, passou a ter vestido um enorme casaco de pele e uma mala empoleirada no ombro. A Mãe do outro lado do espelho estava igualzinha; ou melhor, esta Mãe é que estava igualzinha à outra. A Mãe de cá imitou a Mãe de lá, milimetricamente, até que aquela saiu da frente do espelho. A porta de casa abriu-se e voltou a fechar-se. A Mãe de cá voltou a afastar-se do espelho, e a sentar-se na cadeira.

- Então é esta a vossa vida? – perguntou Alice.

- Mais ou menos. Vamos saltando de cenário. Agora tenho de ir para o carro, por causa do espelho retrovisor.

- Então esta é uma espécie de dimensão à parte? Com todos os outros lados dos espelhos?

A Mãe olhou para ela com cara séria.

- Não. O outro lado do espelho é que é o outro lado. Nós estamos neste lado, não no outro.

- Isso parece-me incrivelmente subjectivo e parcial.

- Pois a mim que me importa? Tenho de ir, vemo-nos mais logo.

A Mãe caminhou até à porta de casa, abriu-a, saiu e fechou a porta atrás de si. Alice conseguiu ver, de relance e do outro lado da porta, o interior do carro da sua Mãe; o que não fazia sentido, porque a sua porta de casa dava para o terceiro andar do seu prédio, não para o carro que estava estacionado a um quarteirão de distância de casa.

Alice sentou-se na cadeira. A casa estava silenciosa. Esperou durante alguns minutos. Não sabia o que fazer. A vida neste lado do espelho parecia aborrecida.

- Hei! – ouviu, uma espécie de voz omnipresente. Era sua, a voz. Estava a chamar-se a si própria.

- Onde raio estás? – perguntou a voz que era a sua.

- Aqui – respondeu Alice, estupidamente; apesar de, depois daquela manhã, já não saber bem o que significava estar “ali”.

- Abre a porta da rua! Rápido! – pediu a voz. Alice levantou-se da cadeira, atravessou o hall da sua casa e abriu a porta. Do outro lado, à sua frente, estava a casa de banho das raparigas da sua escola. Uma parede coberta de espelhos estava à sua esquerda, por cima dos lavatórios. Alice, de camisa e mala a tiracolo, olhava para este lado do espelho, impacientemente. Quando a viu respirou fundo.

- Onde estavas? Anda cá!

Alice entrou pela casa de banho e colocou-se de frente para a outra Alice; a Alice que, supunha agora, era a Alice real.

- Tens de me seguir para onde quer que eu vá e haja espelhos, sua totó. Não podes deixar que seja apanhada sem reflexo!

- Não sabia como funcionava, desculpa.

- Vou para o teste agora. Em que sala é?

- 26.

- Óptimo. Há espelhos nas escadas? Ou na sala?

- Não.

- Muito bem. Fica aqui e espera por mim. Quando regressar tens de me imitar. Todos os movimentos, todas as nuances; isto se estiver mais alguém na casa de banho. Ok?

- Ok – respondeu Alice.

- Até já.

A Alice, a outra que agora era a Alice, saiu da casa de banho. Alice olhou para si própria, e viu-se de camisa, calças de ganga e mala a tiracolo, igualzinha à Alice que ainda há segundos estava a falar consigo. Percebeu que era a forma que esta estranha dimensão tinha de actualizar os dados, e poder apresentar um reflexo actualizado a toda a hora. Não podia deixar de se sentir tonta com tamanha descoberta. Era a coisa mais estranha que vira na sua vida, e com toda a certeza, a partir de agora, a sua vida seria diferente. A sua maneira de encarar o mundo, depois desta experiência, seria muitíssimo diferente. Escondeu-se debaixo dos lavatórios, e esperou que a Alice, a outra Alice, regressasse.

Passada uma hora e meia a campainha tocou, e Alice entrou na casa de banho.

- Alo? – perguntou.

Alice levantou-se de debaixo dos lavatórios e olhou para a outra Alice.

- Como correu?

- Não muito bem. Quem é esse tal de Platão?

- Filósofo grego.

- Ah. Confundi com o outro.

- O outro?

- O planeta. Ouve, preciso de te perguntar uma coisa. Aquele rapaz. Um de cabelos encaracolados. Ele gosta de ti, não gosta?

Alice ganhou alguma cor nas bochechas.

- Sim, penso que sim, mas…

- Óptimo. É que pela forma como ele olhou para mim na sala também achei. Dei-lhe o teu número de telefone. Aliás, o meu.

- Porquê? Não me perguntaste nada, não acho nada boa ideia…

- Oh Alice, por favor. O rapaz é giríssimo e está muito interessado em mim. Aliás, em ti.

- Mesmo assim. Não te dei autorização para fazeres tal coisa e…

A porta da casa de banho abriu-se; a da casa de banho real, e a do lado de cá do espelho. Duas raparigas, colegas de Alice, entraram a conversar; e neste lado do espelho, os seus dois reflexos entraram na casa de banho a conversar também, imitando os seus movimentos na perfeição.

- O teste era impossível, desculpa lá… - dizia uma das amigas, vestida de vermelho.

- O teste era impossível, desculpa lá… - disse a rapariga de vermelho à esquerda de Alice, do lado de cá do espelho.

- Também achei – comentou a rapariga que vinha com ela, de azul.

- Também achei – comentou, no mesmo tom, a rapariga de azul que era o reflexo da rapariga de azul.

A Alice real, do outro lado do espelho, parou de se mexer. A Alice deste lado do espelho parou na mesma posição, rezando para que a outra Alice se mexesse o menos e mais devagar possível.

- Alice, estás bem? – perguntou a rapariga de vermelho.

- Alice, estás bem? – perguntou o reflexo da rapariga de vermelho.

- Estou pois – respondeu Alice, piscando os olhos.

- Estou pois – disse a Alice deste lado do espelho, imitando a outra o mais rápido que pôde.

- Não pareces nada – disse a rapariga de azul.

- Não pareces nada – disse o respectivo reflexo.

- Não, a sério. Obrigada pela atenção.

- Não, a sério. Obrigada pela atenção.

- Lava a cara, pode ser que ajude – sugeriu a rapariga de vermelho e o seu reflexo ao mesmo tempo.

- Oh, claro, sim – disse Alice. Dobrou-se muito devagar sobre o lavatório, abriu a torneira muito devagar, enrolou as mãos numa concha e encheu-a de água. Esta Alice, deste lado do espelho e que para a Alice que agora era a real era o outro lado do espelho, tentou acompanhar-lhe os movimentos. Conseguiu-o com bastante cuidado e atenção até à parte em que a Alice real mergulhou a cara nas mãos molhadas. Alice teve de a imitar, mas sem saber quando podia levantar a cabeça acabou por fazê-lo mais cedo do que era suposto. O reflexo no espelho, portanto, levantou a cabeça mais cedo do que a Alice real. A Alice real levantou finalmente a cabeça, viu que a outra Alice já estava com a cabeça levantada e abriu os olhos preocupadamente.

- Bem, vamos andando – disse a rapariga de vermelho.

- Bem, vamos andando – disse o seu reflexo.

As duas raparigas saíram da casa de banho, assim como os seus reflexos, cada par pela sua porta.

- Oh meu Deus – disse Alice, a real.

- Enganei-me. Desculpa. Será que me viram? – perguntou Alice.

- Acho que não. Espero que não.

A porta da casa de banho deste lado do espelho, ou seja, o reflexo da porta real, abriu-se novamente; mas não a porta real. O reflexo das duas raparigas entraram na casa de banho.

- O que raio se passou aqui? – perguntou o reflexo da rapariga de vermelho.

- Porque te enganaste?

- Calma, ela só começou hoje – disse a Alice real.

- Como assim, hoje? – perguntou o reflexo da rapariga de azul.

- Espera. Vocês trocaram de lugares? – perguntou o reflexo da rapariga vermelha.

- O que é que tem? – perguntou a Alice real.

- Tu és doida. Iam sendo apanhadas!

- Não quero arranjar problemas – disse a Alice deste lado do espelho.

- Não arranjas problemas nenhuns – disse a Alice real. O seu telemóvel tocou, e o telemóvel da Alice deste lado do espelho também. Ambas procuraram o telemóvel e o encontraram ao mesmo tempo, como a imagem espelhada uma da outra.

A mensagem recebida dizia “Encontramo-nos no bar?”. Estava assinada pelo rapaz do cabelo encaracolado.

- Bem… vou andando! – disse a Alice real, sorrindo ligeiramente e apressando-se a sair.

- Hei! – disse a Alice deste lado do espelho, vendo a outra Alice desaparecer pela porta da casa de banho – Volta aqui! Eu não te autorizei a fazeres isso!

- Vocês as duas são loucas – disse o reflexo da rapariga de vermelho, saindo atrás do reflexo da rapariga de azul pelo reflexo da porta da casa de banho. Alice estava agora sozinha. A outra Alice, aliás, ela própria, andava pela escola a arranjar namoros mal fundamentados. Aquilo não podia estar a acontecer. Aquela Alice não era ela. Aliás, até podia ser, mas não era ela. Certo?

Alice tirou o telemóvel da mala e enviou uma mensagem dizendo “Não posso, tenho de ir para casa. Não esperes por mim”. Enviou a mensagem ao rapaz. Esperou, decidindo o que ia fazer. Ficou à escuta; nada. Já tocara, e toda a gente tinha ido para as aulas. Alice trepou pelo lavatório acima, empoleirando-se sobre ele com os pés, e atravessou o espelho para o outro lado. Voltou a descer, desta vez sentando-se no lavatório cujo reflexo a ajudara a subir. Atravessou a casa de banho, enfiou-se num cubículo, esperou. Recebeu uma mensagem, do rapaz, que dizia, “Azar, fica para outro dia”.

Minutos depois a outra Alice entrou pela casa de banho.

- Onde estás? Onde estavas com a cabeça? Ele estava à minha espera!

A Alice olhou para o espelho, mas não viu o seu reflexo.

- Alice? – perguntou Alice. A porta do cubículo atrás de si abriu-se de rompante, e Alice caiu-lhe em cima. Agarrou-a pelos cabelos, e arrastou-a para dentro do cubículo. A outra Alice gritou, e tentou debater-se. Alce puxou-lhe os cabelos, agarrou-lhe os braços de maneira a imobilizá-la, mas não conseguiu. A outra Alice soltou-se, puxou-a contra os lavatórios, empurrou-a contra o espelho e deu-lhe um estalo. Alice desequilibrou-se, escorregou na superfície molhada do lavatório e bateu com a nuca na torneira, perdendo os sentidos.

Quando voltou a si, estava deitada no chão da casa de banho mas não sabia de qual. Supunha que era a casa de banho real, a não ser que a outra Alice tivesse tido força para a içar até à altura do espelhoe a tirado para o outro lado. Levou a mão à cabeça, e sentiu os cabelos despenteados. Sangrara um pouco, e estava tonta. Meteu-se de joelhos no chão da casa de banho, e à medida que retomava os seus sentidos reparou que o chão não estava frio como era costume. Estava do lado de cá do espelho, do lado de dentro. Olhou em volta, procurando o espelho, mas viu que não havia nenhum. A parede onde antes estivera pendurado o espelho estava agora vazia, e apenas um pedaço de espelho partido parecia ter sobrevivido, a um canto, preso por um suporte metálico. Alguém partira o espelho, pensou Alice.

O seu telemóvel apitou. Alice procurou-o, e leu a mensagem recebida. “Ok, então encontramo-nos no café. Até já”. Era o rapaz do cabelo encaracolado encaracolado.

Levantou-se. Não podia regressar de onde viera através do espelho; o resto de espelho que sobrara não era suficiente para conseguir passar. Tinha de arranjar outra solução. Abriu a porta da casa de banho, esperando encontrar o próximo cenário, o que quer que fosse, mas em vez disso um ruído ensurdecedor rodou-a e por momentos deu por si no centro de uma enorme tempestade de neve. Da porta aberta para a frente não estava um cenário, mas sim uma espessa parede de neve cinzenta que esvoaçava a uma velocidade violentíssima. Alice não conseguia ouvir ou ver nada do que se passava dentro da tempestade. Lutando contra o vento forte, fechou a porta atrás de si e deixou-se deslizar para o chão.

Minutos depois, a porta abriu-se e a sua Mãe entrou.

- Hei, andava à tua procura. Onde estiveste?

- Ainda bem que apareceu, Mãe.

- Eu não sou a tua Mãe. Não tecnicamente.

- Seja. Preciso da sua ajuda. A Alice está descontrolada.

- A Alice?

- Sim.

- Ou seja, tu?

- Sim. A outra eu. Preciso de a encontrar. Preciso de regressar à normalidade.

- A última vez que a vi ela estava a entrar em casa com um rapaz. Mas parece-me que estão ocupados.

- Oh Deus. Posso ir até casa?

- Claro, passa, passa – disse-lhe a Mãe, abrindo-lhe a porta.

- Há pouco tentei fazer isso e só me apareceu uma tempestade de neve à frente.

- Oh, é natural – disse-lhe a Mãe – acontece quando a outra pessoa, do outro lado do espelho, não está em nenhum lugar onde possa ser reflectida. Só podes saltar de cenário em cenário em que essa pessoa tenha um espelho à frente. Eu sei, é limitante, mas vais habituar-te.

Do outro lado da abertura estava agora a sua casa de banho; ou melhor, sabia-o Alice, o reflexo da sua casa de banho. Entrou, fechou a porta, empoleirou-se no lavatório, e tentou passar através do espelho. Conseguiu, desceu pelo seu lavatório do outro lado e abriu a porta da casa de banho. À sua frente estava a sua mãe.

- Então, encontraste-a?

- Mãe?

- Já te expliquei que não sou a tua mãe, não tecnicamente.

- Não estou no lado de fora do espelho?

- Não me parece, minha querida. Já experimentaste atravessar o espelho? – perguntou a mãe, apontando para o espelho.

- Acabei de vir de lá – expicou Alice, frustrada.

- Oh, aqui está o problema – disse a Mãe, semicerrando os olhos e apontando para o espelho outra vez. Alice olhou para onde a Mãe apontava. Reparou agora que o reflexo no espelho tinha uma pequena moldura à volta, de madeira.

- Alguém pôs um espelho à frente do outro lado do espelho – explicou a Mãe.

- O quê?

- Foi inteligente, por acaso. Assim o reflexo que vês neste espelho é, na verdade, o reflexo de ti própria. O outro lado do espelho é este lado do espelho.

Alice olhava para o reflexo do espelho, e pode finalmente reconhecer a moldura de madeira como sendo a moldura do espelho que estava no quarto da sua mãe, perto da cama.

- Não sei se percebeste bem, desculpa se não me sei explicar melhor – disse a Mãe – Ups, a tua mãe está a chegar – a Mãe deu meia volta e saiu da casa de banho. Do hall de entrada vinha o som das chaves a abrirem a porta e uma voz a dizer “Alice? Já estás em casa?”

Alice olhou para o reflexo do espelho outra vez, sem querer acreditar.

- Alice? Onde está o espelho do meu quarto? Alice? – perguntava a sua mãe. Alice saiu da casa de banho e entrou no hall de entrada, exactamente na altura em que o reflexo da sua mãe se metia em frente ao espelho, imitando a sua mãe verdadeira a tirar o casaco e a deixar a mala em cima da cómoda.

- Alice, não me ouves? – perguntava a sua mãe, do outro lado do espelho.

- Alice, não me ouves? – perguntava o reflexo da sua mãe, imitando a original.

- Mãe! – chamou Alice, deste lado do espelho, colocando-se à frente do espelho.

- Alice?

- Alice? – repetiu o reflexo da sua mãe.

- Mãe, estou aqui! Dentro do espelho!

O reflexo da sua mãe imitava a mãe original com toda a precisão, enquando a mãe original se aproximava do espelho e semicerrava os olhos, icrédula. Olhou para trás, mas atrás de si não estava ninguém. Voltou a olhar para o espelho.

- Estou dentro do espelho, Mãe! – gritou Alice.

A outra Alice, a Alice real e quem em tempos fora reflexo, apareceu vinda do seu quarto. Vinha enraivecida.

- Alice, não estou a perceber… O que se passa aqui? – perguntou a sua mãe, olhando para dentro do espelho e depois para a Alice real.

- Ela não é a Alice! Eu sou! – gritou Alice. Empurrou o reflexo da sua mãe para o lado, agarrou-se às bordas do espelho e preparava-se para o atravessar quando a outra Alice agarrou num candeeiro que estava em cima de uma cómoda e o atirou contra o espelho. O candeeiro atravessou o hall e foi embater na cabeça da sua mãe, que caiu para frente e bateu com o queijo no espelho. O reflexo da sua mãe fez o mesmo, atirando-se de forma ridícula para frente e batendo com o queijo no lado de cá do espelho. Houve um som assustador, saído do pescoço da mãe, e o espelho partiu-lhe em pedaços que caiam pela parede como gotas de água.

Alice gritou; uma das Alices, pelo menos. A outra Alice, a real, aproximou-se de um dos bocados de espelhos e sorriu para Alice, o seu reflexo. Depois disto, desapareceu. Alice podia ver, através de um pequeno estilhaço, a porta da rua a ser aberta e depois fechada. Levantou-se do chão, correu pelos estilhaços caídos e abriu a porta. A tempestade de neve cuspiu-lhe uma golfada de vento para a cara. Alice chegou a abrir a boca, mas o som da tempestade engoliu-lhe o grito.

Horas depois, Alice estava a chorar, a um canto do hall. Podia ver, através de um pequeno estilhaço que tinha aos seus pés, uma equipa de polícias a tapar o corpo da sua mãe com um plástico branco e um homem vestido com um fato impermeável a tirar fotografias ao candeeiro.

- Já encontraram a filha da vítima? – perguntou um homem de fato, que parecia detective.

- Infelizmente não. Vamos fazer correr a sua fotografia pelas patrulhas, não pode ter ido muito longe.

- E o rapaz?

- Já ligámos para a família, vão reconhecer o corpo mais logo na morgue.

Alice viu através do estilhaço um flash de luz, enquanto o homem de impermeável tirava uma fotografia ao espelho partido. Ao fundo do hall, para lá do reflexo quieto do cadáver da sua mãe, a porta aberta continuava a mostrar uma densa tempestade de neve.

- Não fiques assim – disse o reflexo da sua mãe, deitado numa posição estranha, com o pescoço dobrado a noventa graus. A sua boca estava coberta por pequenos vidros.

- Como posso regressar ao outro lado? – perguntou Alice, por entre os olhos gordos e vermelhos do choro.

- Acho que as possibilidades são bastante diminutas, minha querida. Não quero ser desmancha prazeres, mas a Alice sabe bem o que faz e com certeza nunca mais voltará a entrar numa sala com espelhos. Ela sabe que a queres apanhar. Ou melhor, que tu te queres apanhar a ti própria. Sabes, até tu chegares nunca tinha pensado sobre o paradoxo inerente a toda esta situação – disse o cadáver, de vidros na boca.

Alice continuou a chorar, inconsolável, até adormecer.

Quando acordou, olhou para a porta aberta e reparou que a tempestade desaparecera. Levantou-se de um salto. Através da porta aberta conseguia agora ver uma sala de interrogatórios rectangular e acinzentada. Alice estava sentada a uma mesa, em frente a um espelho. Alice, levantou-se do canto onde estivera a dormir, atravessou o hall pisando os estilhaços de vidro e despediu-se do reflexo da sua mãe.

- Vou ficar por aqui. Duvido que a tua mãe volte a estar de frente a um espelho – comentou o cadáver torto – Mas desejo-te felicidades.

Alice, sem saber bem o que dizer, atravessou a porta aberta e fechou-a atrás de si. Saltou para o outro lado do espelho, indo cair na sala de interrogatórios.

- Foste apanhada – disse ela. A Alice real, ou melhor, uma das Alices reais, pois agora havia duas, olhou para ela impavidamente.

- Tu foste apanhada, por outras palavras.

- Não tinhas o direito de estragar assim a minha vida.

- Eu não estraguei a tua vida, estraguei a minha. Certo? – esta Alice real sorriu sarcasticamente, e com isto deu um salto na cadeira de plástico, atirando-a para o chão. Subiu para a mesa com toda a agilidade e atirou-se para a frente, para a parede da sala coberta por um enorme vidro espelhado. A outra Alice real deu um grito, agarrou na cadeira, arremessou-a, tentando desesperadamente acertar na outra Alice que fugia. A cadeira era estranhamente leve e frágil, mas voou com força suficiente. Assim que a outra Alice atravessou o vidro espelhado e caiu no outro lado, no reflexo da sala dos interrogatórios, a cadeira embateu no vidro e despedaçou-o eficientemente.

Choveram estilhaços. Alice gritou, e dois polícias entraram de rompante pela porta. Um terceiro homem entrou na sala, enquanto os dois polícias tentavam agarrar em Alice, a Alice real, a única Alice na sala. Esta Alice reconheceu o homem; era o detective. Esta Alice procurou os estilhaços do espelho, procurando um reflexo fugaz da sua cara, um reflexo fugaz da outra Alice que agora deixava de ser real, mas não a encontrou. O espelho partido estava espalhado pelo chão e pela superfície da mesa, reflectindo um tecto falso com nódoas de tabaco e os esforços de dois polícias gordos a esbracejar sozinhos desesperadamente, como se tentassem agarrar uma criatura invisível.

.

Sem comentários: