quinta-feira, 11 de março de 2010

Lee Strobel e o Assaltante

Aviso desde já que este post é sobre religião, por isso se não quiserem perder tempo ou não estiverem interessados não precisam de ler.

Lee Strobel, um dos apologistas americanos mais famosos e, se me é possível o juízo de valor, idiotas de sempre, faz-se passar por “céptico” ao analisar as questões de fé e da religião; no entanto, a sua posição é clara, bem como a forma como escolhe sempre pessoas que concordam com ele para incluir nos seus livros. Tem, como qualquer comunicador dos dias de hoje, uma série de vídeos disponíveis na Internet, e é sobre um destes vídeos que quero falar (cliquem aqui para o ver, tem apenas um minuto de duração e se não o virem não vão perceber nada do que vem a seguir).

Neste vídeo, Strobel “responde” a uma pergunta pertinente: Como pode um Deus benevolente enviar pessoas para o Inferno? Ao que parece, e segundo Strobel e a opinião generalizada de muitos cristãos, Deus não manda as pessoas para o Inferno; somos nós que nos mandamos a nós próprios, porque nós é que escolhemos acreditar ou não em Deus. Strobel, no entanto, vai mais longe que isto: para ele, não acreditar em Deus parece ser sinónimo de “negar” a sua existência, e sinónimo até de o desafiar! Ao que parece, segundo esta linha de pensamento, uma criação finita que não acredite no seu criador infinito é uma rebelde, e uma ameaça para esse mesmo criador, que ficaria “reduzido” perante tamanha rebelião. Pergunta Strobel: “O que poderá Deus fazer?”

A resposta parece ser clara: torturar a criação até à eternidade; tal como qualquer bom e eficiente ditador faria, quando confrontado com uma revolta no seio da plebe que o rodeia e deveria adorar. Que outra possibilidade teria um Deus omnipotente? Vou desafiar a omnisciência divina ao anunciar uma possibilidade que, ao que parece, não ocorreu nem a Strobel nem a Deus: Perdoar os “pecados” dos ateus rebeldes seria uma opção; ou, ainda, dar a todos evidências mínimas da existência de tal criador, para que todos pudéssemos tomar decisões informadas sobre o nosso futuro na eternidade. Segundo Strobel, nenhuma destas opções parece ser mais eficiente ou benigna do que a tortura eterna.

Por outro lado, esta “rebelião” de que fala Strobel é muito duvidosa. Como pode uma rebelião existir quando o rebelde nem sequer acredita naquilo que está a desafiar? Por outras palavras: eu tenho um dragão invisível. A sério. Não acreditam? Porquê? Porquê estarem a “negar” o meu dragão? Têm alguma coisa contra ele? Rebelarem-se contra o meu dragão invisível traz-vos algum prazer? Já sei; dizem que não acreditam nele, mas o que vocês querem no fundo é ser o “centro do universo”! (palavras de Strobel)

Não; eu não me rebelo contra Deus, porque não acredito que ele exista. Isto não significa que não possa ser contra ou discutir o conceito de Deus, da mesma forma que, ao ver um filme, estou do lado do protagonista bonzinho e contra o vilão. Não gostar ou julgar as acções do Darth Vader não significa que acredite que tal personagem existe, porque o que está em discussão são as acções em si, e não a existência da personagem (e, no caso de Deus, está também em causa o que fazem os fiéis com a fé que têm, mas isso é outra história). Assim, não preciso de acreditar em Deus para poder dizer que, segundo a minha ideia de moral, Deus fez muitos disparates. Porque não “rebelar-me” contra as decisões que, segundo o Cristianismo, Deus tomou? Porque não “desafiar” a sua noção de moralidade, ou as suas regras? Eu sei, eu sei; parte de ser um bom cristão é aceitar Deus tal como ele é, como quem aceita uma pessoa gorda ou deficiente sem a julgar por causa das suas incoerências ou dificuldades; e isso é bom. No entanto, aceitar cegamente as regras impostas que definem consequências eternas para erros graves como “não acreditar” não faz parte da minha forma de ser, e mesmo que Deus me surgisse à frente neste momento e me garantisse a sua existência, ia continuar a achar todo o seu sistema corrupto e mal organizado.

Voltemos, portanto, à questão da escolha. Então não fará sentido que a “escolha” seja nossa? Afinal, somos nós que acreditamos ou não em Deus e, por consequência, marcamos o nosso lugar na eterna tortura ou benevolência divina! Sendo assim, poderemos escolher aquilo em que acreditamos? Lanço o desafio: caros leitores, escolham algo para o qual não encontram provas definitivas; pode ser unicórnios, duendes, Zeus, karma, qualquer coisa. Agora parem de ler por momentos e façam tudo o que estiver ao vosso alcance para COMEÇAR a acreditar naquilo que escolheram. Vá, força!

Correu bem? Eu já experimentei, e não consegui. Não consigo acreditar por um momento que me seja possível “”escolher” aquilo em que acredito ou não. Aquilo em que acredito é por ter razões para isso: Acredito que existo, que a Terra é redonda, que tenho uma família, que tenho dois braços, que amanhã tenho aulas, e que dois mais dois são quatro. Não porque escolhi; não porque alguém importante ou da minha confiança mo disse; não porque me traz algum tipo de benefício; mas porque ao olhar para o mundo à minha volta, a informação que consegui reter levou-me a estas conclusões. O mesmo não acontece com qualquer afirmação sobrenatural que, por definição, está acima da natureza. Não consigo começar a acreditar em algo só porque me dá jeito.

A não ser, claro, que ignoremos as histórias de aparições e visões proféticas que proliferam pela Bíblia e pelos tempos modernos. Tanta gente afirma ter tido sinais inequívocos da presença e existência de Deus na sua vida; o que, por si só, dependendo da forma como Deus se apresentasse, faria sentido para mim. Se Deus se revelasse à minha pessoa, não teria qualquer tipo de problemas em acreditar nele. Resta saber porque é que Deus se revela a uns e não a outros; e resta saber se a “escolha” em acreditar em Deus é igualmente justa quando comparamos uma pessoa que viu e sentiu Deus directamente e outra que não tem razões para acreditar em tal entidade.

Então, como pode ser justo que Strobel me diga que, se eu for parar ao Inferno, é porque eu quis? No fundo, faz todo o sentido. Deus fez estas regras todas. Se eu não acreditar nele, vou para o Inferno; não porque Deus quer, mas porque eu não acreditei. Imaginemos, portanto, a seguinte situação. Estou na rua, e sou abordado por um assaltante. O assaltante aponta-me uma arma ao peito, e assegura-me que me ama mais do que a qualquer coisa no mundo; mas, infelizmente, terá de me dar um tiro se eu não lhe der a minha carteira. Ele ama-me, e só quer o melhor para mim, mas não tem MESMO outra hipótese senão roubar-me a carteira. Imaginem que uma pessoa confrontada com esta situação se recusa a aceitar as exigências do assaltante, e o assaltante cumpre o prometido e dá um tiro no peito do desgraçado.

Pergunta: de quem foi a culpa? Segundo a mesma lógica que os Cristãos usam para defender Deus, o assaltante não teve qualquer tipo de responsabilidade na morte da vítima. Ele criou todas as regras, e definiu-as segundo os seus próprios critérios; transmitiu as suas exigências à vítima e, depois de esta se recusar a dar-lhe a carteira, o assaltante matou-a. Tecnicamente, a vítima teve uma escolha; e tomou-a! A culpa deve, portanto, recair na vítima e não no assaltante. Da mesma forma que, se um marido se virar para a mulher e disser “Querida, eu amo-te imenso e és a coisa que mais adoro no mundo, mas se me traíres ou deixares de me amar eu torturo-te”. Claramente o amor expresso pelo marido é suficiente para culpar a esposa, mas nunca o marido, por qualquer consequência negativa que aquela relação trouxer!

Nenhum júri ou juiz em nenhum tribunal seria capaz de, de consciência tranquila, libertar o assaltante; muito menos o marido ameaçador. E duvido que muitos dos cristãos que defendem Deus nesta questão fossem capazes de defender também o assaltante, apesar de ambas as situações se basearem na mesma premissa: A vítima teve a possibilidade de escolher, dentro de certos pressupostos e regras importas previamente por Deus/Assaltante.

No entanto, a minha analogia falha num ponto óbvio: Para traduzir a nossa “escolha” em relação à existência de Deus, o assaltante da minha analogia tinha de ser invisível e impossível de detectar por qualquer processo. Para que a minha analogia fosse realmente precisa, em vez de ser o assaltante a abordar a sua vítima, tinha de ser um seguidor do assaltante, informando a vítima de que algures, um assaltante invisível e indetectável estava à espera da sua carteira; que este assaltante lhe daria um tiro se a vítima não lhe desse a carteira; e que este assaltante, amando a vítima de uma forma inimaginável, lhe deu a OPÇÃO de escolher entre dar ou não a carteira!

Strobel pergunta no fim do vídeo: “Para mim isto fez muito sentido; e para si?”.

Não mesmo.

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