quinta-feira, 4 de março de 2010

Vingança metafísica

Houve um dia em que o meu marido me matou, e eu vi logo porquê. Assim que dei de caras com a Morte pedi-lhe imediatamente umas horas, mais um dia se possível. Disse-me que isso era com a Administração, que ela só trazia a má notícia. Agradeci, foi bem educada.

Na Administração disseram-me que podia pedir um Prolongamento Metafísico, que diferia do Prolongamento Fisico-Espacial pela qualidade da minha presença no mundo dos vivos. Decidi-me pelo metafísico, conhecido normalmente como assombração. Era o mais escolhido, dizia-me um poster pendurado na sala de espera da Administração. Muita gente o pedia, mesmo pagando a prazo. Fui na conversa. Assinei onde tinha de assinar, informando-me primeiro sobre as vantagens e funcionamento do serviço.

Quando regressei ao mundo dos vivos não tinha o meu corpo de volta, e ninguém me via. Era um pedaço de vestígio incorpóreo, o que me assustou a princípio. Experimentei as coisas típicas, como atravessar paredes e ver se os cães me podiam ver. Podiam. Fui perseguida por um Chiwawa durante alguns metros.

O meu marido estava a tratar da herança, como era de esperar. Como escapou à polícia não sei; podia até ter-lhe servido de vantagem o facto de ser um bom mentiroso, e agora, com a minha herança, um mentiroso rico. A um canto os meus irmãos choravam, sem saber o que fazer. Quis dar-lhes a mão, dizer-lhes que ia ficar tudo bem, mas não podia tocar-lhes. Pela primeira vez fiquei frustrada por estar morta.

O meu marido saiu do escritório do advogado com a papelada da herança e um sorriso na cara, e lá em baixo uma mulher de pernas longas esperava-o calmamente dentro do carro. Beijaram-se, um beijo porco de língua e saliva. Ela era muito mais nova que ele, e percebi imediatamente que mal chegassem a casa iam fazer coisas com as quais não precisava de encher a minha incorpórea cabeça. Por isso sentei-me no banco de trás do carro e fiz força. A mulher de pernas longas soltou um grito histérico, e o meu marido empalideceu. Via-o a perder a cor através do espelho retrovisor.

Cumprimentei-o, congratulei-o pela nova namorada e pelo óbvio cuidado que tivera a respeitar o meu luto, e de seguida relembrei-lhe onde estava o frasco de Viagra. A mulher tentou sair do carro, desesperada, a gritar que estava uma morta dentro do carro. Terminei o que viera fazer dizendo-lhe que, mesmo sabendo que não podia cumprir a promessa, o vigiaria todos os dias da sua vida, até ao dia da sua morte. O meu ex-marido mal se mexia, céptico como era não podia acreditar nos seus próprios olhos. Disse-lhe adeus, e desapareci.

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