quinta-feira, 15 de abril de 2010

O Harry Potter é mais moral que o Cristianismo


É possível traçar um paralelismo entre a mensagem de ambas as histórias; é só que Harry Potter tem mais "boas ideias" para ensinar às crianças.


Tenho na minha mesa de cabeceira o quinto livro do Harry Potter, A ordem da Fénix, e ultimamente tenho aproveitado as minhas insónias para reler alguns capítulos e cenas memoráveis. Lembrei-me, enquanto lia, de uma série de artigos que vira há uns tempos, num site chamado Portal Evangélico, onde uma série de autores avisa os outros fiéis dos mortais perigos que Harry Potter apresenta para as suas crianças.
Deixem-me desde já tirar a subjectividade do caminho: Sou ateu, crítico da religião quando mal utilizada e fundamentada, e cresci a ler os livros do Harry Potter; aliás, pertenço à primeira geração que cresceu com estes livros. Li o primeiro quando tinha uns 11 anos, e o último quando saiu há um par deles. É sem dúvida a série da minha infância, que guardarei com carinho e com vontade de dar a ler aos meus filhos e netos. Fora isso, tudo o que disser aqui hoje será fundamentado minimamente, restando a quem lê tirar as suas conclusões.
Acredito plenamente que o Harry Potter e as suas histórias são vastamente superiores em termos literários e criativos que qualquer conto Bíblico, e que a sua “moral” e as mensagens que transmite voluntariamente ou não são muitíssimo mais úteis e, diria, morais por si só, que a maioria dos dogmas religiosos. Explico porquê.
Há uma coisa que serve de ponte entre Harry Potter e o Cristianismo, que é o amor. Ambos têm o amor, o sentimento abstracto (e no caso do Cristianismo como algo mais, mas pronto), no centro do seu discurso. É o Amor de Deus pelos Homens que o leva a sacrificar o seu filho por nós, salvando-nos do pecado e dando-nos a oportunidade de alcançar a Salvação; curiosamente, é também através do sacrifício da sua mãe, e do poderoso amor que sente por Harry, que o pequeno feiticeiro sobrevive à investida de Voldemort, o feiticeiro das trevas mais poderoso de sempre.
Ambas as situações são as premissas principais. Harry sobrevive pelo amor que a mãe sentia por ele, e é esse amor e esse laço entre eles que o protege em muitas das situações; é também o amor, nos livros de Harry Potter, o sentimento mais puro e “mágico” que a própria magia, sendo ele o único capaz de derrotar até as mais negras forças das trevas. A batalha entre o Bem e o Mal não é mais do que a batalha entre Harry e o seu grupo de amigos, ligados por fortes laços de amizade e de sangue, que se unem e protegem mutuamente contra o “Mal”, Voldemort, o feiticeiro das trevas que coloca a sua imortalidade e poder pessoal à frente de qualquer coisa. Decide sobre o futuro das suas vítimas com desleixo, e aproveita-se dos seus súbditos prometendo-lhes poder em troca de lhes dar o privilégio de trabalharem para ele na esperança de alcançar uma recompensa que virá apenas quando Voldemort dominar o mundo mágico.
A figura de Voldemort não é apenas o típico mauzão com uma varinha e cara feia; muito menos é mau APENAS por ser “o feiticeiro das trevas”. Voldemort é o mau da fita PORQUE faz coisas más. É o símbolo não da magia negra, do qual é mestre, mas da ganância, da corrupção, do assassínio, da raiva, da frieza e da desumanidade.
Em contraste absoluto, Harry é um rapaz inteligente e bom aluno, com um grupo de amigos que o ajudam e apoiam apesar das adversidades e que, em diversas ocasiões, se sacrificam por ele; não só por ele, Harry, mas sim por AQUILO que defendem e procuram: a justiça e a paz no mundo mágico.
Exemplos, além da “luta” central: Hagrid, a personagem enorme e barbuda, é constantemente vítima de “racismo” por parte dos outros feiticeiros que se acham mais “puros”. Os elfos domésticos trabalham incansavelmente pelo bem estar dos humanos, como escravos, voluntariamente; e Hermione, uma das personagens centrais, passa grande parte de um dos livros a lutar pela liberdade dos pobres elfos domésticos (no final, percebemos que são bem tratados e respeitados por todos). Sirius Black, padrinho de Potter, é erradamente acusado de um crime terrível; Harry e os amigos passam parte do terceiro livro a tentar provar a sua inocência e, quando vêem que é impossível, ajudam-no a fugir de uma pena injusta e cruel. Podia continuar, se quisesse.
É por isso importante perceber que a “luta” nos livros do Harry Potter não é entre um Bem (a magia branca e cristalina) e um Mal (a magia negra); é, sim, uma “luta” de ideais e de princípios. É o combate entre um grupo de pessoas que defende um mundo justo e sem dor para todos, e um indivíduo que procura apenas possuir o poder sobre tudo e todos, magoando pelo caminho. A história do Harry Potter podia, talvez com sérias alterações funcionais, ter a mesma moral e a mesma mensagem sem necessitar da magia que traz consigo. A “magia” é apenas um mecanismo, uma “personagem” que torna os livros mais interessantes, divertidos e apelativos.
O que nos ensina, portanto, Harry Potter? Os evangélicos que li escreverem sobre isto partem do princípio que J.K. Rowling, a autora, procura claramente ensinar às crianças os segredos do ocultismo, do esoterismo e da magia satânica. Devo repetir que cresci a ler estes livros. Lembro-me de, na minha inocência, achar que fazer poções seria o máximo. Lembro-me até de uma dolorosa tristeza, sabendo que nunca poderia voar numa vassora ou usar um manto invisível; mas nunca a leitura dos livros me levou a envolver-me na magia negra nem a tentar conjugar feitiços e chamar demónios à meia noite.
Aliás, a geração que hoje em dia tem 18, 19 e 20 anos cresceu toda a ler o Harry Potter, bem como as gerações que lhe seguiram. Onde estão os grupos de ocultismo rezando a Harry Potter? Onde estão as galinha sacrificadas? Onde está uma geração inteira a financiar um Culto Negro, ou a estudar e colocar em prática os ensinamentos de bruxaria ensinados nos livros?
A resposta parece-me clara: as crianças da minha geração são mais inteligentes que os evangélicos, pois todas elas sabem que a magia não existe. Que não há Hogwarts, nem Petrificus Totalus, nem varinhas, nem unicórnios. Elas SABEM, mas nada disso as impede de apreciar os livros e vibrar com as aventuras.
Harry Potter não nos ensina a cultivar o ocultismo nem a fazer poções. A sua mensagem, coluna vertebral dos sete livros e moral estruturante das aventuras, é a de que um mundo justo e onde todos se respeitam é muito melhor do que um em que se vive sob medo e vigilância constantes, sob proibições e violências extremas levadas a cabo por uma autoridade malévola e auto-instituida.
Os leitores mais atentos devem estar a perguntar-se se acabei de descrever Voldemort ou o Deus bíblico, e a resposta é: ambos.
Não é difícil traçar o paralelismo entre Voldemort e Deus. Ambos são figuras de enorme poder. Ambos o usam naquilo que lhes convém, decidindo sobre as vidas dos outros com parcialidade. Ambos procuram que o resto do mundo lhes obedeça e respeite. Ambos coleccionam seguidores cuja função é proliferar a sua mensagem, com a promessa de uma recompensa quando tudo terminar.
No caso de Harry Potter, não é a mera presença ou ameaça de Voldemort que assusta e choca os feiticeiros; são as suas acções, demoníacas e objectivamente cruéis. Todos temem Voldemort por aquilo que ele FAZ e impõe, não por aquilo que ele É; e todos temem Voldemort SABENDO tudo sobre ele. Sabendo que fez isto e aquilo, que esteve aqui e ali, ameaçando aquele e aqueloutro. Voldemort passa grande parte dos livros a assustar os outros feiticeiros com provas inequívocas da sua presença e poder (a Marca da Morte no 4 livro, o ataque ao Ministério da Magia no 5, o ataque sobre os Muggles no 6 livro e os variados tipos de controle sobre a sociedade mágica no 7 livro são apenas alguns exemplos).
No entanto, Deus é pior. Segundo o Cristianismo e outras formas de crença em Deus, ele existe mas não sente a necessidade de se mostrar. Ele tem poder sobre todos nós, e perante ele deveremos responder um dia pelas ofensas às suas regras; mas não se revela a todos de igual maneira. Ao invés disso, temos o testemunho de milhares de diferentes denominações de cristãos (já para não falar de outras religiões), mas nunca o testemunho de Deus em si. E, talvez seja este o cúmulo da sua crueldade, vê-se no direito de nos castigar infinitamente se utilizarmos o livre arbítrio e o cérebro que ele próprio nos forneceu para analisar criticamente as provas da sua existência, que ele não fornece. Ao lado de Deus, Voldemort é um puto violento de recreio a bater nos mais pequenos.
Em Harry Potter, a figua de Voldemort é combatida não por ser Voldemort, mas por aquilo que ele FAZ: coisas más. É essa a base de toda a moralidade. Analisar as acções tomadas e decretá-las imorais se forem cruéis ou negativas para o bem-estar de alguém ou da sociedade. No entanto, o mesmo não pode ser feito com Deus. Voldemort pode ser criticado ou até vencido, mas Deus não. Se Voldemort tenta fazer algo terrível a alguém, Harry Potter e os amigos procuram impedi-lo; mas com Deus não dá para reagir da mesma forma, porque a decisão que Deus toma é, por definição, A decisão correcta.
Mas estou a desviar-me. De que forma pode, então, ser o cristianismo menos moral que Harry Potter? O cristianismo e as mensagens que Jesus transmitiu têm a sua quota parte de moralidade. Acho que a “regra de ouro” (não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti) e o respeito por todos de forma igual são duas das mais valiosas lições que podemos tirar de Jesus; e, como foi dito, de Harry Potter. O amor pelo próximo, incondicional e independente da situação do outro, é outra mensagem presente em ambos os lados.
O que podemos encontrar no cristianismo de totalmente diferente? A ideia de a presença de Jesus na Terra é culpa NOSSA. Jesus morre e é torturado porque nós pecámos, e porque Deus nos perdoa dos pecados que ele próprio definiu como imperdoáveis. Uma criança que leia a doutrina cristã ver-se-á como a culpada da morte de Cristo, um homem inocente e aparentemente inofensivo. Essa criança ver-se-á também nascida no centro de uma imensa piada cósmica: Há seis mil anos atrás Adão pecou, e por ele pagarás tu e pagarão os teus filhos e netos e gerações futuras; mas para vos salvar de este mal que o próprio Deus instituiu, este Deus dá-vos a oportunidade de admitirem que são pecadores inconsoláveis, e aceitar que o derramamento de sangue e uma cruel crucificação pagam todos os pecados do mundo.
Não me parece que haja nada mais violento e emocionalmente doentio para ensinar a uma criança pequena.
Por outro lado, Jesus e Deus são bons por definição. Tudo o que disserem ou fizerem deve ser levado em conta; isto contrasta com um Harry Potter furioso, que grita, faz disparates, tem más notas às vezes e se engana; coisas que acontecem com alguma regularidade e que nos levam a concluir que, no contexto do livro, o nosso herói não é assim tão perfeito.
Não há nada de perfeito em Harry Potter: ele é um rapaz normal, que erra umas vezes e sai vitorioso quase sempre quando luta pelas coisas em que acredita e quando defende o que é correcto; muito ao contrário da crença em Deus, que nos dá razão automática e na qual muitas pessoas crescem a culpar o Demónio quando algo corre bem e Deus quando elas próprias atingem bons resultados por mérito próprio.
Tudo recai, no final, à definição de "moral", e aquilo que cada um acha ser importante ensinar às novas gerações. Que mensagens transmitir, que valores incentivar, e porquê? Escusado será dizer qual destas duas obras de ficção acho mais aconselhável dar a ler aos meus filhos e netos, quando os tiver. Pode ser que virem bruxos e satânicos e me venha a arrepender.

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