sexta-feira, 28 de maio de 2010

Segunda oportunidade

Odeio esta história (a sério), mas encontrei-a por aqui no baú e pode ser que alguém goste. Ou não. Cá está.

Ele tinha estado a chorar. Tinha os olhos esbugalhados, a roupa amarrotada. Estava deitado na cama, de braços abertos, a engolir golfadas de ar. O pequeno quarto onde vivia, e a pequena casa de banho, e a pequena porta para o pequeno corredor lá fora, estavam frios. Ele não podia pagar um aquecedor. Não podia. Da mesma forma que não podia chorar mais. Chorar mais não lhe ia trazer o emprego e a namorada de volta, pois não? Não; e isto fê-lo chorar ainda mais.

O vizinho de cima puxou o autoclismo, o que significava que todos os canos atrás das suas paredes começaram a chiar ao mesmo tempo. Gotas de água caíram do tecto empapado em bolor para dentro de um alguidar com água até meio, colocado em cima de um banquinho num dos cantos da sala. O papel de parede começava a descolar-se por causa da humidade. Lá fora, o comboio da uma e cinquenta e dois passou, fazendo o candeeiro e as louças tilintarem como moedas a cair ao chão.

Ele sentia-se miseravelmente mal. A sua situação preocupava-o, mas nada o preocupada mais do que ver-se ao espelho, e ver aquilo em que se tornara. Pensara durante horas a fio porque é que a sua namorada fizera as malas e desaparecera, deixando um bilhete curto e seco e as chaves do apartamento. Podia pensar durante toda a noite, se fosse preciso, e iria sempre encontrar outra desculpa; mas sabia perfeitamente que a culpa de tudo aquilo era dele.

A culpa de viver naquele apartamento incrível também era dele. Não podia pagar melhor; especialmente agora que perdera o emprego, o que também fora culpa sua. Não podia pagar nem o aquecimento, nem o canalizador, nem um fogão como deve ser, nem daqueles sabonetes hidratantes de fruta exótica que a sua namorada tanto gostava. “Tenho problemas de pele seca nas mãos, seu idiota”, dizia ela. “Se não as lavar com um sabonete daqueles começo a largar pele como uma cobra”. Ele pedira muitas desculpas, justificava-se apresentando-lhe o extracto de conta e o seu saldo negativo, mas ela mesmo assim não queria aceitar.

Agora já não tinha extracto bancário com que se assustar, graças a Deus. O banco fechara-lhe a conta.

Já era de madrugada e ele continuava a inventar justificações, chegando sempre à mesma conclusão: eram desculpas disparatadas. O mérito da sua situação era todo ele. Parabéns. O comboio das duas e cinco da manhã passou, agitou as loiças e os vidros, mas ele entretanto já adormecera.

Esta escuro quando ele acordou, e a primeira coisa em que reparou foi no silêncio. Não havia um único ruído à sua volta, e tudo era quente e confortável. Enrolado sobre si próprio como um pequeno bicho de conta, esticou a cabeça e tentou abrir os olhos. Não via nada. Sentia-se numa daquelas salas com gravidade zero, a flutuar levemente e sem preocupações. Tacteou com as mãos, e chegou à própria barriga.

Do seu umbigo saía um tudo grosso e enrugado, como um chouriço comprido e flácido. Tentou abrir os olhos outra vez e não conseguiu ver nada. Tentou virar-se, mas acotovelou-se contra uma superfície quente invisível que o parecia segurar, e não conseguiu mudar de posição.

Sentiu dois dedos, depois três, depois cinco, a agarrarem-lhe no alto da cabeça. Tentou olhar para cima, mas não conseguiu. Tentou contrariar o movimento, mas a mão que o agarrava virou-o com toda a calma e exactidão para uma posição diferente, e voltou a desaparecer.

Luz.

Uma porta abriu-se à sua frente, e um raio de luz fê-lo fechar os olhos. Ouviu sons abafados, vozes, sentiu-se a sair do canto quente e confortável onde estava e a sair para um lugar mais frio mas mais luminoso. A cabeça passara pela porta, agora eram os ombros. Sentiu-se completamente encharcado num líquido estranhíssimo. Máscaras azuis com olhos por cima olhavam pare ele, enquanto mãos feitas de látex o agarravam, rodavam, puxavam e amparavam.

Passaram os ombros, e o resto do corpo saiu pela porta como se tivesse sido cuspido para fora. Engasgou-se. Fez uma careta, viu a sala a rodar e sentiu ser deitado numa superfície de papel. Alguém lhe deu uma palmadinha nas costas, depois outra, depois outra, e aquilo que estava na sua garganta pareceu desaparecer. Gritou a plenos pulmões, e os olhos por cima das máscaras pareceram satisfeitíssimos.

Sentiu-se a ser transportado como um cesto de fruta, amparado por dois braços azuis fortes e seguros. Foi aterrar numa superfície carnal, e uma cara suada e despenteada olhou para ele com uns olhos castanhos enormes, cansados mas vivos e cheios de amor.

“Mãezinha”, pensou ele; e continuou a chorar.

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