terça-feira, 8 de junho de 2010

Barbaridades

O rei bárbaro e os seus conselheiros estavam a comer frango com as mãos, limpando a gordura nos trajes dos criados ou nos braços das cadeiras. Como bons bárbaros que eram, arrotavam aberta e ruidosamente, mastigavam de boca aberta e apalpavam as nádegas das mulheres que lhes traziam o vinho. O interior da tenda onde comiam estava coberto por grossas peles castanhas e pretas, como uma loja de tapetes.

O rei bárbaro elevou-se com dificuldade, apoiando o seu cúbico porte na mesa à sua frente e levantando o copo de madeira ao ar.

- Caros amigos! Brindem comigo à vitória que se avizinha!

Os seus conselheiros gritaram uns quantos vivas e empurraram o vinho guela abaixo, sujando-se como bebés grandes. Um dos criados aproximou-se do rei e fez uma vénia respeitosa.

- Senhor, está lá fora alguém que o deseja ver.

- Estou a jantar.

- É um soldado que diz ter notícias do mensageiro, senhor.

O rei elevou-se outra vez, mastigando pedaços de ossos enquanto gritava:

- O mensageiro regressou! Vitória!

Os conselheiros levantaram-se outra vez, enquanto um soldado entrou com um saco de pano atrás.

- Meu rei, se me permite…

- Trazes notícias do mensageiro, não é assim?

O soldado fez “mais ou menos” com a cabeça, abriu o saco em cima da mesa e de dentro dele rolou a cabeça ressequida e bafienta do mensageiro. A cabeça foi mesa abaixo, derrubando uns copos, e aterrou em cima de uma molheira. Os olhos esbugalhados do mensageiro pareciam fitar o rei. Fez-se um silêncio constrangedor.

- Ora desta é que não estavas à espera com certeza, meu rei… - disse um dos conselheiros.

- Que significa isto? – disse o Rei.

Todos olharam para o soldado, e o soldado encolheu os ombros e apontou para a cabeça.

- Os nossos inimigos são ainda mais nojentos do que imaginávamos! – resmungou um dos conselheiros, enfiando os dedos sujos num prato com batatas assadas e chupando a gordura dos dedos da outra mão.

- Não se matam os mensageiros – reflectiu outro conselheiro, olhando para o prato que tinha à frente – É uma espécie de regra de boa educação. Nunca se matam os mensageiros.

- Estes selvagens querem guerra! – rosnou o rei – recusam-se a aceitar um tratado justo e perfeitamente viável!

- Meu rei, permita-me relembrar-lhe que lhes destruímos a capital.

- E isso que importa?

- Importa na medida em que não é nada cordial.

- Nada cordial é decapitarem-nos o mensageiro. Ele falava pelo menos sete línguas, era uma mais valia. Senhor meu rei, penso que não estará nada fora de questão irmos queimar mais uma aldeia inimiga.

- Assim o faremos, mas primeiro que tudo tenho uma coisa ou outra a dizer aos nossos selvagens inimigos – disse o Rei - Soldado! Mande chamar outro mensageiro.

O soldado olhou em volta:

- Meu rei, duvido que alguém queira ocupar o lugar do falecido…

- Soldado, tens uma família à tua espera na nossa longínqua terra?

- Tenho pois, meu Rei, uma mulher a quem amo e dois filhos pequenos.

- Gostarias de rever os teus filhos, de preferência com tudo o que tens no corpo no devido lugar?

- Se não fosse pedir muito…

- Estás voluntariado para ser o próximo mensageiro. Dirás aos selvagens dos nossos inimigos que da próxima vez que matarem um mensageiro bárbaro, entraremos nas suas casas e faremos das suas peles tapetes para os nossos salões; e que a minha benevolente oferta para terminar esta guerra se mantém: eles que entreguem o assassino de meu irmão, ao qual dão abrigo, e tudo ficará bem entre os dois povos.

- Meu rei, talvez não se importará que diga a mesma coisa mas por outras palavras quiçá mais controladas…?

- Vai-te embora e repete as minhas palavras tal como te as disse.

O soldado fez uma vénia e saiu, constrangido.

***

- E o que dissestes que fariam com as nossas peles? – perguntou a Rainha.

- Tapetes – disse o soldado, encolhido – para os salões.

- Que ignóbil criatura é esse teu rei bárbaro! - disse a Rainha, agitando a saia para se refrescar.

- Soldado, considero-te de grande bravura para teres vindo aqui trazer-me essa mensagem – declarou o Rei do alto do seu trono – considerando o que sucedeu ao outro mensageiro. Foi um acidente infeliz que não se repetirá contigo. Leva ao teu Rei esta minha mensagem: que sou misericordioso ao ponto de não decapitar um segundo mensageiro, e todos os mensageiros que a ele se seguirem; e que se ele tanto quer o homem que lhe matou o seu desprezível irmão, que o venha buscar pelo seu próprio pé. E deverás fazer este gesto ao teu Rei.

O Rei ergueu a palma da mão esquerda para cima, unindo as pontas dos cinco dedos esticados num só ponto. O soldado olhou para a mão do Rei, e o Rei soltou os dedos e abriu a mão.

- Nhéques.

O soldado não se mexeu.

- Deverás fazer isto ao teu Rei. Compreendido? Repete.

O soldado murmurou – Er, nhéques…

- Agora ide.

** *

- Nhéques – disse o soldado. O rei bárbaro passou-se completamente.

- Como se atreverá?! – exclamou, largando um pedaço de carne.

- E pediu-me para lhe dizer, meu Rei, que se quiser o assassino de seu irmão deverá ir buscá-lo pelo próprio pé.

Um dos conselheiros estava frustrado – Porque não invadimos a cidade desse idiota de uma vez por todas?

- Meu rei, decapitar um mensageiro eu até compreendo – disse outro conselheiro – mas mandar-lhe um nhéques parece-me demais.

- Como seu conselheiro mais calmo e calculista – disse um dos conselheiros mais sábios – sugiro, depois de analisada a situação ao maior detalhe, que esventre esse Rei com as suas próprias mãos como se de um frango se tratasse.

- E assim o farei – rosnou o rei bárbaro, vermelho como um tomate gordo e nervoso – Alinhas as tropas! Atacaremos pela calada da noite! Soldado, enviarás a seguinte mensagem ao Rei!

- Meu rei, não chegará já de mensagens?

- Não. Dirás ao Rei que a sua amabilidade em não me decapitar o mensageiro é muito agradecida, mas que se o quiser fazer estará à vontade porque da mesma forma que tenho setecentos mil bárbaros furiosos sob o meu comando conto também com uma equipa de mensageiros disponível.

- Meu rei, se calhar era melhor dizer isso de outra maneira, porque dizer-lhe que “está à vontade” é assim um bocado…

- Ouve-me até ao fim! E dirás a esse Rei que terei todo o gosto em lhe abrir a barriga com os dentes e trazer a sua Rainha, que por acaso é bem boa, para os meus aposentos reais, para lhe mostrar o que é um homem a sério. Dirás isto pelas minhas palavras, compreendido?

O soldado corou.

***

- O que me chamou ele? – perguntou a Rainha.

- De boa – disse o soldado de voz apagada. Estava absolutamente constrangido.

- “Mostrar-me o que é um homem a sério”… Que monstro! – resmungou a Rainha. Tinha ficado ofendida, dava para ver.

- Dirás ao teu Rei o seguinte… – começou o Rei, do alto do seu trono.

***

O soldado virou-se de costas para o rei bárbaro e seguiu as ordens do outro Rei: dobrou-se para a frente, e imitou algumas pancadinhas no próprio rabo.

- E acrescentou – disse ele, enquanto açoitava as próprias nádegas - que se o quiser ir esventrar está à sua espera e que se ainda não o fez é porque é um mariquinhas.

- Um mariquinhas! – exclamou um dos conselheiros, largando um pedaço de peixe frito em desespero – Isto é demais!

- Meu rei, ele está a pedi-las – acrescentou o conselheiro mais sábio.

- Soldado – disse o rei bárbaro – Farás como te digo.

***

Assim que o soldado mostrou o dedo do meio o Rei saltou do trono e a Rainha quase desmaiou.

- Como é possível tamanha falta de respeito? – exclamou o Rei, agarrado ao ceptro.

- Responde nas mesma moeda a esse animal… – dizia a Rainha, procurando ar.

***

O soldado agarrou a própria virilha, agitou-a para cima e para baixo, corado, e explicou que o outro Rei lhe tinha dito para o rei bárbaro “os ir buscar”.

- Nunca pensei! – exclamou um dos conselheiros, o que se ofendia sempre primeiro e largava a comida que tinha nas mãos.

- Isto está a descer a um nível inacreditável – comentou outro conselheiro, com um sorriso – Soldado, repete lá a mensagem!

O soldado voltou a agitar a virilha para cima e para baixo, e de seguida encolheu-se humilhado.

- Meu rei, se me permite? – pediu o conselheiro que se estava a rir. O rei estava vermelho. Permitiu mesmo. O conselheiro virou-se para o soldado – Levarás esta taça de feijão e farás como te digo.

***

Assim que o soldado disse que tinha outra mensagem do rei bárbaro e se quedou em silêncio por alguns momentos o Rei e a Rainha perceberam logo que havia coisa, mas só passados alguns segundos é que sentiram o estranho aroma que lhes invadia as narinas delicadas. O soldado desfez-se em lágrimas, não acreditando na sua sorte.

- Soldado, tendes família à tua espera.

- Não, vivo sozinho – mentiu ele.

- Tendes a certeza? Pensai bem.

- Depende.

- O que achas de vós e sua família inexistente se mudarem para um enorme palácio onde terão cem homens como vós para vos servir?

***

O soldado pousou o pequeno baú junto do frango e de um jarrão de vinho. Todos se levantaram e aproximaram do baú. Era uma caixa de madeira fina com uma armação de ouro.

- Está a cabeça do assassino de seu irmão, meu senhor. O outro rei pede que te retires das suas terras – disse o soldado. Estava a suar outra vez.

- Será uma armadilha, meu rei – disse um dos conselheiros.

- Abre a caixa, soldado! – disse um dos conselheiros.

- Não, eu fá-lo-ei – disse o rei, chupando os dedos, sem tirar os olhos do baú. Agarrou no baú, puxou-o para si e rodou o mecanismo da abertura – Quero ver a cara de quem matou o meu irmão…

O rei rodou a caixa, que passou a ficar de frente para o soldado, e puxou-lhe a tampa para cima. Um dardo metálico zumbiu atravessando a tenda, e cortando a garganta do soldado de um dos lados. O homem levou as mãos ao pescoço e caiu para trás, absolutamente roxo.

- Mecanismo impressionante! – comentou um dos conselheiros.

- Eu avisei – disse outra voz atrás do rei. O soldado esperneava desesperadamente.

- Atacaremos esta noite, mas primeiro – disse o rei – terminaremos a nossa ceia.

O soldado perdera as forças e parara de se mexer quando veio a sobremesa.

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