terça-feira, 8 de junho de 2010

A definição de privacidade

Jorge olhou para a pequenina peça de metal.

- Em que ouvido prefere? – perguntou a médica.

- Tanto me faz, um qualquer – respondeu Jorge, colocando a peça no ouvido direito. Tinha um confortável revestimento de silicone.

- A transmissão será feita a partir das nove horas, não é assim? Não se esqueça de ligar o aparelho cinco minutos antes e de o colocar no ouvido. Assine aqui o termo de responsabilidade enquanto lhe dou algumas instruções.

Jorge puxou a folha para si, limpou a gordura da testa com a parte de trás da mão e assinou o seu nome na folha de papel. A médica ia falando.

- O nosso técnico estará à sua espera na hora marcada. Cinco minutos antes das nove ligue o aparelho para o testarmos, e para iniciar o contacto com o seu técnico designado. Será… - a médica consultou um ecrã – Ken 6.

- É bom? – perguntou Jorge. O seu rabo gordo mal cabia na cadeira, pelo que mudava constante e nervosamente de posição. Sabia que estava a suar. A médica soltou um sorriso profissional.

- Todos aqui somos bons, Jorge. Nada tema. Essa rapariga de que nos fala irá cair-lhe aos pés.

***

Jorge vestiu uma das suas camisas mais largas. As sucessivas camadas de banha não eram tão visíveis quando usava roupa daquela; e melhor pareceria se pudesse usar preto, mas como o champô anti-caspa não parecia estar a resultar não podia usar cores escuras. Foi-se por uma larguíssima camisa alaranjada, que a sua mãe lhe tinha oferecido nos anos.

Olhou-se ao espelho, apertando os colarinhos da camisa. O botão das calças de ganga aguentava com esforço a sua barriga flácida. Estaria bem? O cabelo? Deveria pôr gel? Limpou a gordura na testa outra vez com uma toalhita higiénica, e assim que a deitou no lixo sentiu-se imediatamente a suar outra vez. A sua condição de gorduroso era inevitável desde a adolescência. Espremeria aquela borbulha no pescoço ou não? Tinha medo de libertar uma onda incontrolável de pus. Sentiu alguma aversão à sua própria pele, ao seu próprio corpo como aliás era habitual. Recompôs-se, e olhou para o relógio. Eram oito e meia. Agarrou na pequena caixinha onde ia enfiada a pecinha de metal e silicone e saiu do apartamento.

Às oito e cinquenta enfiou a peça pelo ouvido adentro, tendo o cuidado de se certificar que não tinha cera ressequida a espreitar pela orelha. Um pequeno zumbido do outro lado da linha parecia indicar que o sistema estava a funcionar e a ser ligado na central. Esperou.

- Teste 1, 2, 3, daqui Ken 6 a transmitir para… Ora bem… Jorge, será? Jorge, consegue ouvir-me?

Jorge conseguia, uma pequena voz saída da pecinha metálica e que se enroscava confortavelmente no seu ouvido como se tivesse uma pequeníssima pessoa a viver junto ao seu tímpano, sussurrando-lhe palavras com uma espectacular dicção.

- Alô?

- Jorge?

- É o próprio.

- Boa noite, Jorge! Hoje parece que seremos companheiros de noitada. Está a sentir-se bem?

- Um pouco nervoso, talvez…

- É o seu primeiro encontro?

- …

- Não tenha vergonha, tem de ser sincero comigo se quer que o ajude!

O homem chamado Ken 6 tinha uma voz grave, agradável, de um carisma que explicava a sua posição como Técnico Ajudante de Encontros e Sessões Amorosas. A sua voz inspirava uma confiança que Jorge não conseguia bem explicar.

- É o meu primeiro encontro, sim.

- Dê-me lá alguns dados sobre esta rapariga, então. Como se chama ela?

- Sónia.

- Idade?

- Vinte e dois.

- Fale-me mais sobre ela.

Jorge estava a suar outra vez, enfiado num dos cubículos da casa de banho dos homens. Procurou não encostar-se à sanita.

- Bem, ela é amiga de um amigo comum… É solteira, e…

- É bonita?

Jorge engasgou-se.

- Imagino que sim, para o Jorge se sentir atraído por ela deve ser uma pequena bem formosa! Ouça, não tem de se preocupar. Conseguirei ouvir tudo o que se passar, e vou-lhe dando dicas à medida que avançamos. Faça absolutamente tudo como eu lhe disser e conquistará a nossa amiga Sónia até ao fim da noite. Há mais alguma coisa que eu precise de saber? Sobre si, sobre ela?

- Eu estou a suar imenso – disse Jorge, fechando e abrindo os olhos nervosamente.

- Pôs desodorizante?

- Algumas vezes.

- Sente-se numa mesa pouco iluminada.

- E tenho borbulhas.

- Jorge, as borbulhas não falam por si. Falo eu. Agora recomponha-se e repita comigo. Eu…

- Eu…

- Vou conseguir.

- Vou conseguir.

- Assim é que é. Siga. Estou aqui consigo, Jorge.

***

A beleza de Sónia fez Jorge suar de forma descontrolada. Era assim que lidava com situações de stress. Por momentos pensou que a gordura na sua testa podia reflectir a luz dos candeeiros do restaurante.

- Escolha uma mesa agradável e sem muita gente à volta – disse Ken 6 ao seu ouvido.

- E que tal aquela? – disse Jorge, engolindo em seco. Sónia seguiu-lhe a indicação.

- Óptima – ela sentando-se. Era uma rapariga magra, de cabelos compridos e longos, e com dois olhos que pareciam em constante colapso nervoso. Jorge sentou-se à frente dela.

- Agarre numa dos Menus e estenda-lho – disse Ken 6.

Jorge agarrou num dos Menus e estendeu-o a Sónia.

- Oh, obrigada – ela sorriu, revelando um aparelho azul encaixado nos dentes.

- Se ela tiver um decote pronunciado, tussa – disse Ken 6.

Jorge tossiu imediatamente.

- Faça o que quiser, não a apanhe a olhar para o seu decote – disse Ken 6.

Jorge olhou para o decote de Sónia, agitou a cabeça e atirou os olhos para o candeeiro à sua frente.

Meta conversa com ela. Pergunte-lhe o que ela faz.

- O que fazes? – perguntou Jorge.

Sónia olhou para ele de trás do Menu.

- Trabalho numa livraria, mas é só temporário. Estou a tirar um curso. Quero ser veterinária.

Veternária, óptimo! Pergunte-lhe se tem animais. Diga-lhe que teve um cão quando era pequeno, que morreu atropelado e que o marcou para toda a vida.

- Tens algum animal de estimação? Eu tive. Era um cão que morreu atropelado e me marcou para toda a vida – disse Jorge com uma naturalidade forçada. Sónia olhou para ele com toda a solidariedade.

- Oh… Lamento muito ouvir isso… Todos tivemos animais que nos marcaram imensamente, acho eu…

Tu tiveste algum animal que te marcou?

- Tu tiveste algum animal que te marcou?

- Um gato. O meu pai vendeu-o para algumas experiências científicas com radiação nuclear e nunca mais o vi.

Mostre interesse sobre o curso dela, Jorge.

- O que fazes no teu curso?

- Não ias querer ouvir…

Ia pois.

- Ia pois.

- Ainda hoje tivemos de fazer um exame à próstata de um cavalo. Basicamente metemos uma luva até ao ombro e enfiamos o braço todo no recto do animal, para proceder à palpação.

Sónia pareceu dar um pequeno salto, e retomou a leitura do Menu escondendo a cabeça.

Sublinha como isso é absolutamente interessante.

- Isso é absolutamente interessante – disse Jorge com um sorriso fingido.

- E tu, o que fazes? – perguntou ela detrás da lista de Saladas.

Diz a verdade. Procura parecer interessado.

- Sou técnico de análises clínicas – disse Jorge. Parou por momentos.

Diz alguma coisa entusiasmante. Já alguma vez salvaste a vida de um rapazinho a morrer? Qualquer coisa.

- Eu… Trabalho maioritariamente com a urina das outras pessoas, e com sangue. Mas faço análises importantes.

Uma vez salvei um rapazinho. Diz!

- Uma vez salvei a vida a um rapazinho.

Sónia saltou do Menu.

- A sério? És uma espécie de herói?

Mostra modéstia. Diz que não, não.

-Ora, um herói… Eu não diria isso… É o meu trabalho…

Boa, boa. Sorri-lhe!

Jorge sorriu, Sónia sorriu também.

***

A coisa está a correr bem. Agora é importante que não estejas nervoso. Trouxeste preservativos?

Jorge murmurou:

- Ac… Acho que sim, tenho no bolso um…

Óptimo. É natural que a coisa possa acontecer. Segue com naturalidade. Se sentires que estão perto um do outro, há um momento de silêncio em que se olham nos olhos, dás-lhe um beijo. Depois a coisa vai acontecendo. Vou dando dicas à medida que avanças, pode ser? Não vais fazer isto sozinho, não te preocupes.

- Mas… Oh, ela vem aí… - murmurou Jorge. Ajeitou-se no sofá e sorriu. A porta sa casa de banho abriu-se e Sónia saiu de lá.

Tens uma casa agradável.

- Tens, er, uma casa agradável.

Sónia sorriu-lhe e veio sentar-se ao seu lado.

- Origado. Hum, ah. Queres que apague esta luz? Se calhar está forte demais…

Ela quer baixar a luz! Diz que sim, sim!

- Sim, sim, claro – disse Jorge, e Sónia rodou um interruptor e tudo ficou mais escuro.

É agora. Boa sorte grandalhão.

***

Jorge estava a suar, mas pelas melhores razões. O que sentia era uma espécie de gloriosa experiência religiosa, mas num lugar do corpo onde nunca pensou ser capaz de sentir experiências religiosas. Ao seu lado, o corpo magricela e despido de Sónia respirava fundo também.

Descansa um pouco. Deixa a coisa assentar. Uau, pelo que ouvi acho que foi fantástico, Jorge! Conseguiste!

Jorge sorriu com todos os dentes que tinha.

- Foi bom? – perguntou-lhe Sónia.

Foi fantástico, e para ti?

- Fantástico, e para ti?

Diz-lhe que foi maravilhoso, e que nunca ninguém te tinha feito sentir assim, disse uma voz feminina dentro do ouvido de Jorge.

- Foi maravilhoso – disse Sónia – Nunca ninguém me tinha feito sentir assim…

Jorge, É o Ken 6, consegues ouvir-me? Estão a haver algumas interferências…

Quem está aí?, perguntou a voz feminina.

Sónia olhou para Jorge com uma cara de pânico. Jorge não sabia o que dizer. A voz feminina voltou.

Não acredito que estou a trabalhar noutra frequência. Ken 6, és tu?

Barbie 9?

Sónia, aguarda um pouco. Estou só aqui com um problema de transmissão.

Sónia tremeu ligeiramente, procurando uma naturalidade sensual que não tinha.

Ken 6 outra vez: Jorge, consegues ouvir-me? Central? Daqui Ken 6, penso que a Barbie 9 está a trabalhar na minha frequência…

Central? A voz feminina. Central, daqui Barbie 9 pedindo uma nova frequência, acho que entrei no transmissor do Ken 6 sem querer.

Jorge e Sónia olharam um para o outro sem saber o que dizer.

Daqui central, disse uma terceira voz. Sim, está a haver uma interferência porque um dos transmissores mecânicos teve uma avaria mas estamos a resolver a situação. Barbie 9, tem de aguardar alguns segundos enquanto a retransmito, está bem?

Central, daqui Barbie 9, estou a meio de uma sessão.

Daqui Ken 6, também eu, Central. Jorge, desculpa este inconveniente. Mete conversa com ela!

- Então… . disse Jorge, puxando ligeiramente o lençol para tapar os mamilos.

- Pois… - disse Sónia, tapando-se devagarinho.

Jorge esperou. Ken 6 desaparecera, ouviu um pouco de estática ocasional.

- Acho-te muito bonita – disse Jorge, olhando para a almofada – e normalmente não tenho muito jeito para raparigas.

- Tu também és muito elegante, Jorge… Desculpa, sou um pouco desastrada – Sónia soltou um riso nervoso, e escondeu a cabeça na almofada dela.

- Não sou nada, sou gordo e suado.

Jorge, por favor não digas nada até eu voltar!

- Eu até há cinco horas nunca me tinha depilado… Queres mesmo comparar experiências? – disse Sónia, com a cabeça enfiada na almofada.

Sónia, por favor não digas isso! A voz feminina tinha voltado.

Daqui Ken 6. Central, Barbie 9 ainda aqui está.

Mais estática. Sónia levantou a cabeça da almofada e olhou para Jorge.

- Queres café? Podemos conversar mais um pouco…

- Adorava.

Levantaram-se os dois da cama.

Daqui Central. Barbie 9, a sua sessão está a esgotar-se e vou desligá-la. Ken 6 vai ficar nesta frequência.

Sofia? Sofia, consegues ouvir-me? Só pagaste até às duas da manhã, vou ter de desli…

Estática.

Jorge, daqui é o Ken 6 outra vez. Desculpa toda a confusão, mas agora estamos finalmente a sós com ela e…

- Pois estamos – disse Jorge, tirando a pecinha do ouvido e colocando-a no bolso das calças. Da cozinha vinha o som da água a ferver e a voz de Sónia a chamá-lo.

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