quarta-feira, 16 de junho de 2010

Ignorância científica: mais perto o que nunca!


É uma mistura de sentimentos contraditórios: pânico, vergonha, mas um entusiasmo alegre. Descobri que está em construção um Parque Discovery aqui em Portugal, uma espécie de museu onde a ideia do criacionismo é explorada afincadamente e a Teoria da Evolução mal representada e, supostamente, refutada. Este parque é uma espécie de sucursal do Discovery Institute, um museu semelhante que existe nos Estados Unidos (apesar de, no seu site oficial, o Parque Discovery garantir que não tem nada que ver com o Discovery Institute: apenas têm o mesmo nome, o mesmo objectivo, o mesmo tipo de actividades e o mesmo tipo de parque. Será, com certeza, uma coincidência).

Um vídeo de um fã, gravado no local, mostra em primeira mão um senhor que parece ser o responsável pelo museu, espalhando informações erradas sobre a Evolução. A quantidade de falácias e erros é tanta que poderia escrever durante horas. É para mim um choque pensar que já chegou a Portugal uma das formas mais inacreditáveis de propaganda religiosa, que utiliza a má representação de factos científicos para vender uma mensagem religiosa; e, ainda por cima, mascarando-se de ciência.


Alguns pontos são, no entanto, demasiado chocantes e deliciosos para os deixar passar sem uma pequena (média grande) observação.

O vídeo começa com uma longa e aborrecida conversa sobre como os dinossauros viveram juntamente com os humanos (em concordância com o mural pintado atrás de Charles Brabec, o responsável pelo museu). As mentes mais cépticas podem estar a perguntar-se: mas isso não vai contra todas as descobertas científicas conhecidas? Sim; mas quem precisa de ciência quando tem… uma pedra encontrada numa caverna do Peru?

Charles mostra com orgulho uma pedra onde estão gravadas as figuras de uns monstros que bem se parecem com dinossauros. Vamos deixar de lado a estranha metodologia criacionista, que ignora ciências como a paleontologia, geologia e biologia e dá mais atenção a uma gravura desenhada num pedregulho; isto até seria compreensível, vindo do intelecto destes “cientistas”. Curioso é como o “trabalho dos cientistas” que descobriram as pedras é respeitado e levado a sério por estas pessoas, e no entanto os cento e cinquenta anos de descobertas científicas são ignorados descaradamente. Em apenas 5 minutos passados no Google descobri uma série de coisas interessantes sobre estas pedras peruanas:

The Ica stone craze began in 1996 with Dr. Javier Cabrera Darquea, a Peruvian physician who allegedly abandoned a career in medicine in Lima to open up the Museo de Piedras Grabadas (Engraved Stones Museum) in Ica. There he displays his collection of several thousand stones. Dr. Cabrera claims that a farmer found the stones in a cave. The farmer was arrested for selling the stones to tourists. He told the police that he didn't really find them in a cave, but that he made them himself. Other modern Ica artists, however, continue to carve stones and sell forgeries of the farmer's forgeries. In 1975, Basilio Uchuya and Irma Gutierrez de Aparcana claimed that they sold Cabrera stones they'd graved themselves and that they'd chosen their subject matter by copying from "comic books, school books, and magazines" (Polidoro 2002).

E ainda,

In 1998, Spanish investigator Vicente Paris declared after four years of investigation that the evidence indicates that the stones are a hoax. Among the proofs presented by this investigator were microphotographs of the stones that showed traces of modern paints and abrasives. The strongest evidence of fraud as claimed is the crispness of the shallow engravings; stones of great age should have substantial erosion of the surfaces.

In 1973 Basilio Uschuya confirmed that he had forged the stones during an interview with Erich von Daniken, but later recanted that claim during an interview with a German journalist, saying that he had claimed they were a hoax to avoid imprisonment for selling artifacts.

In 1977, during the BBC documentary Pathway to the Gods, Uschuya produced a "genuine" Ica stone with a dentist's drill and claimed to have produced the patina by baking the stone in cow dung. He continued to make and sell stones.

Links: http://www.crystalinks.com/icastones.html

http://www.skepdic.com/icastones.html

Outra prova inegável do convivo entre humanos e dinossauros? Há imensos mitos em todas as civilizações sobre dragões que “não podemos ignorar”. Portanto, a presença de mitos comuns a várias civilizações demonstra a verdade dos mitos? Isso significa que também existiram vampiros, fantasmas, fadas, unicórnios… e, claro, dragões. É a maior descoberta científica de sempre! Huray!

A seguir, Charles responde à pergunta “A forma como interpretamos eventos passados pode ser influenciada pelas nossas crenças pessoais?”; ao que ele responde que sim senhor, mas temos de ser bem focados na evidência, e é essa evidência que confirma ou não a nossa crença pessoal.

Sim, isso é o que VOCÊS (criacinistas) fazem, não os cientistas. Isso dito assim parece que a melhor forma de descobrir a verdade é primeiro inventar uma possibilidade qualquer e depois aceitar apenas tudo o que confirma a nossa posição… que é exactamente aquilo que os criacionistas fazem. Os cientistas sérios, no entanto, fazem uma coisa diferente (e que funciona, se o nosso objectivo for descobrir a verdade e não vender bilhetes aos turistas): primeiro olham para as evidências e para os factos, e só DEPOIS constroem um modelo científico que responde às questões iniciais, enquadrando-se nos factos conhecidos. Assim, garantem que quando são descobertos factos novos estes não são varridos para debaixo do tapete e apenas é dada atenção ao que lhes convém, mas sim alteram as teorias e ideias sobre o mundo para que incluam as novas observações. É assim que se progride e nos aproximamos da verdade.

Depois segue-se o que é provavelmente a maior demonstração de ignorância até agora. Diz Charles que a “evolução quer explicar a existência do nosso Universo sem Deus”. Tudo o que este homem tinha de fazer era pegar num simples dicionário e procurar o significado de Evolução; ou, quem sabe, abrir um manual escolar do décimo ano. Aí, ia descobrir que a Evolução por Selecção Natural é uma teoria do campo da BIOLOGIA, que não explica nada mais do que a DIVERSIDADE, e não origem, das espécies de seres vivos (e não o Universo). Decidiu seguir a má representação e a desonestidade; ou, quem sabe, seja mesmo ignorante. Ambas as opções não são animadoras, vindas do responsável por um museu que quer supostamente educar quem o visita.

E quando eu começava a acha que esta conversa não podia ficar pior, cai a bomba: “Não há evidências que um tentilhão se mudou para um gato bravo ou uma tartaruga”. Por esta altura levei as mãos à cabeça, em desespero, porque se há coisa que me magoa é ignorância voluntária. Como é possível ser-se o responsável por um museu destes, defender o criacionismo e atacar a teoria da evolução, e garantir que o que se está a oferecer são informações sérias e válidas, quando se demonstra uma completa e desarmante ignorância em relação ao princípio BÁSICO da teoria que se procura atacar? Como é possível haver pessoas que financiam e acreditam neste tipo de baboseiras sem sequer se darem ao trabalho de investigar MINIMAMENTE o que é ou como funciona a selecção natural? Um pássaro nunca vai dar origem a um gato ou a uma tartaruga, nem é isso que a evolução diz! Trata-se isso sim de variação nos indivíduos de uma mesma espécie e que, ao longo de muito e muito tempo, fazem com que uma espécie com determinadas características sofra alterações que a transformam no que poderíamos chamar uma espécie diferente; o próprio conceito de espécie torna-se duvidoso, porque não há um “salto” gigantesco de um ser vivo para o outro que nos permitisse fazer essa distinção. Isto parece aquelas pessoas que, com um sorriso paternalista muito semelhante ao de Charles, perguntam “Dizes que viemos dos macacos, não é? Então já viste algum chimpanzé a dar à luz um bebé humano?”. Faz lembrar também o famoso “crocoduck”, figura utilizada por alguns criacionistas americanos para “demonstrar cientificamente” que a evolução nunca aconteceu porque “um pato não dá à luz um crocodilo, porque se o fizesse teria de haver crocopatos no registo fóssil”.

O resto do vídeo cai na simples apologia religiosa, vendendo uma mensagem Bíblica que se apresenta como a única explicação para factos históricos e científicos. Talvez seja este o primeiro momento de honestidade em todo o vídeo, porque demonstra como o criacionismo se baseia única e exclusivamente na crença religiosa prévia e só depois procura uns quantos “factos” científicos onde se apoiar, escolhendo por sua vez que factos científicos apoiam a sua posição e ignorando todos os outros. Os seus argumentos baseiam-se nisto: há a Bíblica, há meia dúzia de coisas certas nela e por isso daí se conclui que TUDO na Bíblia é verdade. Logo, Deus existe e o criacinismo é facto científico.

Esperemos que este parque seja visitado por muita gente, para que todos possam ver em primeira mão o grau de ignorância que ali se concentra. Só espero que o nosso sistema educativo tenha capacidade para lidar com o rombo intelectual que uma visita ao Parque Discovery pode fazer a uma criança; se bem que essa visita poderia funcionar na perfeição como um exercício prático de biologia ou filosofia: “Encontra as falácias” ou “Descobre quantos erros disse o Charles”.

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