segunda-feira, 28 de junho de 2010

Saramago era um homem sem esperança que agora arde no Inferno: uma reflexão sobre a beleza das crenças cristãs

Saramago poderia ser relembrado por aquilo que foi: um dos mais brilhantes escritores da língua portuguesa do século, ou talvez uma figura importante na nossa sociedade independentemente dos seus ideais políticos; mas há uma insistência em continuar a tratá-lo, agora que morreu, como um idiota hostil que ganhou a vida a maltratar a pobre e desamparada comunidade cristã. Afinal, para quê elogiar um escritor que ganhava a vida a escrever romances brilhantes quando o podemos maltratar e representar erradamente só porque não concordava connosco? O texto publicado no jornal do Vaticano fez a sua parte, e o Portal Evangélico publicou também o seu “parecer” em relação a Saramago.
O próprio título do artigo, “O fim das dúvidas”, contém a principal mensagem a reter: Saramago estava enganado, e agora vai descobrir o quanto estava enganado quando der de caras com o Salvador; Salvador esse que, “na Sua misericórdia” como é dito no artigo, o conduzirá ao mais terrível Inferno onde Saramago será torturado para toda a eternidade só porque era ateu. Sim, eu sei; estou a revelar a parte mais bonita da opinião evangélica sobre este assunto cedo demais. Vamos por partes.
O que nos custa é que alguém viva a sua vida sem esperança, na negação diante de todas as evidências da existência do Deus pessoal. Mas morrer sem esperança é terrível, quando é perfeitamente possível morrer não confiado nas nossas virtudes.
Deixemos de parte o que poderia abrir caminho a um post muito, muito comprido sobre "todas as evidências da existência do Deus pessoal". Sinceramente, e isto pode ofender algumas pessoas e se for o caso peço desculpa previamente, mas estou mais do que cansado desta ignorante visão dos ateus ou não-religiosos. Acho irónico que uma trupe que acredita que esta vida serve basicamente para fazer as malas para uma estadia permanente no Paraíso defenda que tem mais esperança e sentido na sua vida do que as pessoas que tentam aproveitar a única vida que provavelmente terão para serem felizes e viverem as suas paixões e gostos pessoais. Já que, como ateu, sou muitas vezes mal representado, respondo na mesma moeda: não me cabe na cabeça como alguém pode dar valor à vida que vive neste mundo quando SABE com toda a certeza que assim que morrer vai direitinho para a companhia infinita do Omnipotente criador do Universo. Não serão os anos que cá passamos na Terra uma mera oportunidade para aceitar Jesus e ler muitas vezes a Bíblia, como quem se prepara com aftershave e meias lavadas para um encontro importante?
Parece inacreditável, mas é possível não acreditar em Deus e mesmo assim ter pena de morrer, ou saber aproveitar a vida, ou até dar sentido à nossa existência. Morrer sem uma crença não é sinónimo de morrer mergulhado numa falta de esperança amedrontada. Por favor parem de tratar quem não acredita no mesmo que vós como uma parte deprimida da população.
A vida e a morte de José Saramago custa-nos, porque ironizou, brincou, ofendeu, parodiou, blasfemou, insultou o texto sagrado e a pessoa de Jesus Cristo. O Prémio Nobel alcançado na linha destes ataques não nos orgulha.
Ok, não bastava a má representação de outros pontos de vista mas, à boa maneira da religião, tinha de vir o erro factual. José Saramago não ganhou o Nobel por causa de nenhum ataque a nenhuma religião. Eu sei que pode ser difícil de engolir, mas havia quem realmente desse importância aos livros do senhor e não aos seus ocasionais comentários sobre a Igreja. Aliás, tenho outra notícia de última hora: a vida de Saramago não foi dedicada a “ironizar, brincar, ofender, parodiar, blasfemar ou insultar o texto sagrado e a pessoa de Jesus Cristo”, muito menos construiu uma carreira baseando-se nessas opiniões. A única razão porque Saramago se revoltou pessoalmente com a fé cristã foi simplesmente porque viu um dos seus livros ser atacado por pessoas mesquinhas como vós, caros evangélicos, que fazem um enorme alarido de cada vez que alguém sequer menciona o nome do vosso salvador sem ser para lhe fazer festinhas. O vosso problema é que são incapazes de separar o…
Esperem, porque o artigo tirou-me as palavras da boca:
Não podemos separar o engenho e a arte dos conteúdos afrontosos da pessoa de Jesus Cristo.
Claro que não podem, aí está o vosso problema. O resto do planeta pode afastar o engenho e arte de Saramago das suas opiniões e declarações (que, diga-se de passagem, eram muito mais sobre a Igreja Católica, a Bíblia e Deus e menos sobre Jesus Cristo propriamente dito), e assim apreciar a obra e respeitá-lo como o escritor que era independentemente das suas crenças pessoais.
Pode parecer chocante, mas é possível dividir aquilo que a pessoa faz daquilo em que acredita. Eu não concordava com Saramago num enorme número de questões, incluindo em algumas das suas críticas à religião, mas isso não me impede imediatamente de o apreciar como escritor, mestre da língua portuguesa e da arte do romance, e de me entristecer com a morte não de um senhor com o qual não concordava, mas de um dos grandes autores portugueses. Quem morreu foi um grande autor português, não um gajo qualquer com o qual eu não concordava. Aliás, Saramago era ambas as coisas, e por isso morreram os dois Saramagos; mas o que fará falta e merece ser recordado é o Saramago Grande Escritor, e não o Saramago Ateu. Prioridades, minha gente. Falta-vos olho para as prioridades.
Claro está que poderão dizer o que vos aprouver sobre Saramago, mas não esperem serem levados a sério. A vossa mastodôntica necessidade de fechar a concha quando há uma mínima referência à vossa religião afasta-vos cada vez mais do resto do mundo. A venda dos livros de Saramago aumentou brutalmente, e com certeza a sua obra vai viver nas próximas gerações; os únicos a gritarem e a darem importância ao quanto Saramago era um não-religioso terrível são vocês. Juntem-se à Igreja Católica, fechem-se numa bolha e esperem pelo regresso do vosso muito amado (e ofendido repetidamente, certo?) Jesus Cristo. Eu cá vou ler “A Caverna” e fortalecer o meu ateísmo depressivo e auto-destrutivo.

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1 comentário:

patricia colaço disse...

Boa reflexão! Eu até sou uma pessoa espiritual, mas só espiritual, nunca religiosa e continuo a pensar que se Deus existe, de certeza que recebiria de braços abertos a um Saramago, tenho mais dúvidas de que receba com a mesma satisfação alguns padres...