quinta-feira, 8 de julho de 2010

Traição

Pedro ligou à mulher a avisar que não ia jantar a casa, que tinha uma importante reunião de negócios para preparar, e assim que desligou o telefone chamou a sua secretária e pediu-lhe para desligar o telefone. Ela assim fez, no seu profissionalismo provocante, entrando no gabinete com a blusa já desapertada. Entusiasmado, Pedro soltou uma gargalhada galopante, e encostou-se para trás na cadeira. A sua secretária podia até ser uma óptima profissional, com um curriculum impressionante, mas que era um bom pedaço de mulher ai isso era.
A sua secretária atirara já os papeis e as molduras com as fotos da mulher de Pedro para o chão quando a campainha tocou. Pedro ficou vermelho.
- Deixa estar – disse a secretária, mordendo-lhe a orelha com tiques felinos. Pedro sentiu a testosterona borbulhar-lhe entre as pernas. A campainha voltou a tocar uma, duas vezes. A secretária ia já de boca onde não devia quando a campainha voltou a tocar, sem parar, com uma incrível perseverança. Pedro soltou um grunhido, e depositou a secretária em cima da mesa.
- Vai ver quem é, e quem quer que seja despacha-o. Vai, vai! – pediu, apertando o cinto, atirando o cabelo grisalho para trás da orelha. A secretária apertou a blusa e olhou-o com cara de poucos amigos. Pôs uma perna à frente da outra de forma provocante, e foi abrir a porta. Pedro ouviu vozes, a secretária demorou-se, e quando finalmente regressou trazia um homem atrás de si.
- Senhor Gaspar, este senhor quer falar consigo – disse ela, numa voz de má actriz. O homem era enorme, tinha bigodes, e um olhar vago.
- Pedro Gaspar?
- O próprio. Que deseja?
- Posso falar consigo a sós?
- Sofia, deixa-nos sozinhos por favor.
Sofia, a secretária, mostrou-lhe o dedo nas costas do homem de bigode, e saiu fechando a porta. Pedro engoliu em seco.
- Que deseja? Estou extremamente ocupado.
- Não vou demorar, Sr. Gaspar. É apenas para lhe dizer que sou Ricardo Matias, investigador privado. Sabe o que faço da vida?
- Investiga a vida das outras pessoas? – perguntou Pedro, sarcasticamente.
- Exactamente.
- É da polícia?
- Não, já fui. Tenho as minhas facilidades, aprendi com a profissão e sei como obter informações. Sou especialista em infidelidade matrimonial.
- Vá direito ao assunto, por favor.
- Vim só dizer-lhe que tirei algumas fotos que podem ser interessantes – disse ele, atirando uma fotografia rectangular para cima da mesa. Nela, Pedro estava semi-nu, deitado em cima da sua secretária no que parecia ser uma cama de hotel. O enquadramento era tremido e torto, mas a imagem era perceptível.
- Ora adivinhe lá quem me contratou – disse Ricardo Matias, sentando-se sem cerimónias. Pedro agarrou na fotografia e parou para pensar, sem conseguir controlar na totalidade a cor vermelha que lhe subia à testa – e adivinhe lá quantos zeros tem de ter um cheque seu para que essas imagens não cheguem às mãos de quem as quereria muito ver.
- Dê-me um momento, por favor – resmungou Pedro, pregando os olhos nas fotografias como que a certificar-se que sim senhor, era a sua gorda e peluda figura aquela deitada em cima da sua secretária. Ricardo Matias cruzou as mãos sobre o colo e olhou em volta como que a estudar o ambiente numa sala de espera. Estava tranquilo. Pedro rasgou as fotografias num furioso acesso de raiva, e atirou os pedaços para o outro lado da mesa.
- Tenho os negativos, como deve imaginar – disse Ricardo Matias, quase pedindo desculpas.
- Ouça-me – disse Pedro, mas calou-se outra vez, o que não deixava de ser contraditório. Finalmente olhou Ricardo Matias nos olhos e estendeu-lhe um dedo – Eu sou um homem rico e poderoso. Tenho grupos inteiros de homens como você a trabalhar para mim. É só fazer um telefonema. Estas imagens vão desaparecer, ou um de nós desaparece em vez delas. Entendido?
- Um de nós significa o senhor, suponho? – disse Ricardo Matias com uma fingida inocência.
- Não brinque comigo – Pedro parecia uma panela de pressão pronta a cuspir a tampa. Os seus olhos eram dois pequenos pontos brilhantes – Eu não serei chantageado por um tipo como o senhor.
- Óptimo - Ricardo Matias levantou-se como se a conversa tivesse terminado por decisão sua - Olhe, fazemos assim. Pense melhor. Deixarem o meu número junto da sua muito profissional secretária. Convinha que me dissesse alguma coisa nas próximas vinte e quatro horas, senão vou achar que não se sentiu suficientemente chantageado por um tipo como eu, e serei obrigado a dar essas fotografias a quem pertencem – piscou-lhe os olhos e saiu.
Ricardo Matias saiu do escritório. Entrou a secretária.
- O que foi aquilo?
Pedro estava absolutamente inchado.
- Sai – ordenou. A secretária sabia que era mesmo melhor sair. Fechou a porta atrás de si. Pedro agarrou no telefone e marcou um número.
***
- Não achas que isto é um bocado exagerado? – perguntou Tobias, o assassino profissional contratado por Pedro para encontrar o detective privado com as fotos incriminatórias, enquanto olhava de lado para o revólver que lhe apontavam à cabeça.
- Nem por isso - respondeu Ricardo Matias, entrando no carro e sentando-se no banco de passageiros ao lado de Tobias. A mão que segurava a arma não tremeu – O teu patrão contratou-te para me seguires?
- Ei, não sei do que estás a falar – disse Tobias com um sorriso, levando tudo com a maior calma do mundo – Eu só estava aqui a comer um hambúrguer. Estou à espera da minha senhora, que vem ter comigo para irmos à baixa beber um copo.
- A tua senhora.
- Sim, a minha senhora.
- És um bom mentiroso.
- Faz-se por isso.
- Achaste que eu era estúpido o suficiente para atravessar a rua, tirar a chave do bolso e entrar em casa sem antes me certificar que não havia nenhum parasita como tu nas imediações?
- Sinceramente? Sim.
- Vou sair deste carro, e tu vais ligar o motor e com toda a calma do planeta acelerar daqui para fora, rua abaixo, e não vais voltar mais. Entendido?
Tobias olhou de lado para a arma. Sentiu-se estúpido. Era suposto ser um profissional, mas quando tinha fome e começava a comer esquecia-se de tudo e ficava desleixado. Esperar que o tal detective privado, que agora lhe segurava uma arma à cabeça, regressasse a casa da sua ronda de chantagem abrira-lhe o apetite, e fora até a um restaurante da esquina comprar um pacote de batatas fritas, um hambúrguer e uma coca-cola extra large. Ia a meio do pacote de molho para batatas quando aquele individuo lhe entrara no carro com todo o descaramento.
- Pensando melhor, posso esperar a minha senhora noutro sítio, sim – disse ele. Que se dane, ia dali para fora e voltaria mais tarde para maltratar os testículos deste sacana. Ninguém lhe apontava uma arma à têmpora e continuava a andar normalmente durante muito tempo.
Ricardo Matias não tirou os olhos de Tobias à medida que saia do carro, levando o pacote de batatas consigo. Tobias viu-o afastar-se um metro da viatura, virou a chave e acelerou devagar. As batatas era demais. Apontar-lhe a arma era uma coisa, mas levar-lhe as batatas era muita humilhação.
***
- O seu marido contratou um dos seus capangas para me seguir, e eu surpreendi-o à porta de casa – disse Ricardo Matias. A mulher do outro lado da sala levou o copo de whisky à boca e continuou a olhar pela janela.
- Sempre foi um selvagem. Não me admira nada. Suponho que está preparado para lidar com esse tipo de ameaça.
- Felizmente.
- Muito bem – a mulher tinha uns cinquenta anos, um cabelo pomposo, e a postura e o queixo levantado de uma daquelas senhoras da alta sociedade que alia uma enorme quantidade de dinheiro a uma doentia frieza e objectividade que a tornavam perigosa. Falava das traições constantes do marido com o mesmo tom, timbre e ritmo daquele que usava quando pedia à empregada que lhe fosse buscar um copo lavado.
- Se me permite, Sra. Gaspar.
- Trate-me por Helena, por favor. Esse apelido enoja-me actualmente.
- Se me permite, Helena, devo dizer-lhe que acho pouco provável que o seu marido me dê algum tipo de dinheiro pelas fotografias.
- Eu conheço o meu marido, Ricardo. Eu sei perfeitamente que ele venderia a alma para manter a sua reputação intacta.
- Porque insistiu que o fosse visitar e oferecer-lhe as fotos por dinheiro?
- Porque quero ver até que ponto vai a sua desonestidade e corrupção. Por outras palavras, quero ver quanto vale para o meu marido a sua reputação. Escusado será dizer que receberá a quantia monetária que ele lhe oferece na totalidade, além do que já lhe pago. A mim pouco me importa o dinheiro neste momento, até porque o dinheiro que lhe pago não é meu, é do meu marido.
- Então o que lhe importa?
Helena Gaspar olhou para Ricardo e pousou o copo numa pequena mesinha de madeira.
- Importa-me esmagá-lo.
***
A criada serviu o caldo com uma concha de prata. Helena começou a bebericá-lo, sem precisar de olhar de lado para Pedro. Sentia-o a mexer-se na cadeira como uma criança gorda e nervosa.
- Correu tudo bem no escritório hoje? – perguntou Helena.
- Correu – disse Pedro, sem sequer olhar para ela. Começou a beber o caldo.
As colheres faziam barulho a raspar no prato. Cinco minutos depois a criada regressou para levantar os pratos e servir o prato principal.
***
Ricardo agarrou no telefone, marcou o número e esperou. A voz da secretária era mecânica e profissional.
- Escritório de Pedro Gaspar.
- Bom dia, cara amiga. Poderia ser amável ao ponto de me passar o seu chefe?
A secretária olhou para o escritório de Pedro através da parede de vidro que os separava. Pedro olhou para cima, compreendeu-lhe a expressão facial e disse que não com a cabeça.
- O Sr. Gaspar neste momento está a meio de uma importante reunião, não o poderá atender.
- Ande lá com isso, ambos sabemos que não há reunião nenhuma.
- O Sr. Gaspar está ocupadíssimo.
- Bem, sendo assim terei de ligar mais tarde – disse Ricardo, e desligou o telefone. Saí da cabine telefónica, olhou para os dois lados da rua, atravessou-a e entrou pela porta.
***
- O que disse ele? – perguntou Pedro Gaspar, aproximando-se da secretária.
- Que liga mais tarde – informou ela. Trocaram um olhar cúmplice, que tentava ao máximo manter uma imparcialidade que nunca poderia existir. Pedro desapareceu para dentro do escritório, fechou a porta. Alguém tocou à campainha, a secretária foi abrir e Ricardo entrou sem cerimónias.
- Cá estamos outra vez, não é assim? Decidi vir sem avisar, espero que não haja problema – olhou para a parede de vidro, atrás da qual Pedro Gaspar bebia um copo de whisky de uma assentada – Ah, vejo que a reunião acabou.
Ricardo entrou no escritório e sentou-se numa das cadeiras. Pedro não se virou, permanecendo de frente para o pequeno bar atrás da secretária.
- Pode ser sem gelo – disse Ricardo.
- Saia imediatamente do meu escritório ou chamo a polícia.
- Não foi muito simpático da sua parte enviar um tipo para me seguir daquela maneira.
- Não sei do que está a falar.
- Ouça, não lhe vou dar um valor certo porque você é um homem de negócios de renome, e portanto lá saberá quanto vale a sua integridade pessoal. Mas lembro-me distintamente de lhe ter dado um prazo de vinte e quatro horas. Já começou a pensar num valor?
- Não lhe vou pagar um único cêntimo – rosnou Pedro. Começou a ficar vermelho, o que parecia ser sua tradição em momentos de stress.
Ricardo levantou os ombros.
- Ok! –levantou-se e ia sair pela porta quando Pedro lhe pediu para parar. Ricardo ficou de mão na maçaneta.
- Quanto?- perguntou Pedro, como quem tem uma espinha presa na garganta.
- Estou aberto a sugestões.
Pedro dobrou-se sobre um pequeno livro de cheques, rascunhou qualquer coisa, arrancou-o com força e estendeu-o a Ricardo. Ricardo atravessou o escritório e agarrou no cheque.
- Agora desapareça-me da frente.
Pedro deixou-se cair na cadeira e levou o copo de whisky à boca. Ricardo saiu, cumprimentando a secretária com um aceno amigável enquanto enfiava o cheque no bolso do casaco.
***
- Impressionante – disse Helena Gaspar, mirando o cheque – Impressionante.
- Não estava à espera que fosse tanto, confesso – Ricardo estava na mesma cadeira onde se sentava sempre que visitava Helena Gaspar. Ela, de pé, olhava para o cheque com desdém.
- Que tamanha falta de brio, de honestidade, de decência – disse, estendendo-lhe o cheque. Ricardo aceitou-o – É seu, bem o mereceu. Tem as fotografias?
Ricardo depositou um envelope castanho A4 em cima da mesinha ao seu lado.
- Incluindo os negativos.
- Óptimo – Houve uma pausa. Helena olhava pela janela para o impressionante jardim que se estendia lá fora. – Sabe, a perspectiva de me divorciar do meu marido não me aflige minimamente. Pensei que seria pior, muito pior, mas a sensação é na verdade extremamente agradável.
- Fico feliz por saber isso.
- Muito obrigado pelo seu serviço, Ricardo. Guarde o cheque, mereceu-o.
- O prazer foi meu, Helena.
Cumprimentaram-se com um cordial aperto de mão. Ricardo saiu, guardando o cheque no bolso interior do casaco para não o perder.
***
- Pedi-te especificamente para que a minha cara não fosse reconhecível – disse a secretária, pousando a fotografia em cima da mesa e dando mais um gole do seu batido de morango. Ricardo puxou a fotografia para si e guardou-a.
- As minhas desculpas.
- Não quero que a minha cara apareça nos jornais – insistiu ela.
- Eles esborratam a imagem para não se ver os pormenores mais sórdidos. Aliás, pela posição em que estás na fotografia a tua cara devia ser o mínimo das tuas preocupações – Ricardo sorriu-lhe, mas ela não pareceu estar interessada em brincadeiras.
- Trouxeste aquilo? – perguntou. Um À sua volta, sentados na esplanada, os homens não deixavam de reparar nela, talvez perguntando-se o que raio faria uma mulher daquelas a beber um refresco com um tipo de gabardina.
Ricardo estendeu-lhe uma mala por cima da mesa.
- Meu deus, que dramático – um sorriso, pela primeira vez – Uma mala, como nos filmes.
- É para tornar tudo mais real. Consegues imaginar o que aí está dentro?
- Quantos zeros tinha o cheque?
- Bastantes.
- E aí está metade?
- Hum hum.
A secretária puxou a mala para si, passou-lhe a mão por cima como que lhe sentindo a textura e temperatura. O empregado de mesa aproximou-se trazendo a conta.
- Eu faço questão – disse Ricardo, pagando com uma nota de vinte e deixando o troco. Levantou-se, cumprimentou a secretária com um cavalheiresco beijo nas costas da mão e despediu-se.
- Até uma próxima.
- Até uma próxima.
Ricardo afastou-se, e a secretária ficou a beber o seu refresco até ao fim.
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