quinta-feira, 5 de agosto de 2010

"Artures", um argumento

Argumento escrito para a Disciplina de Imagem e Som A ainda este ano. O desafio criativo estava em criar uma história a partir de uma cena (a primeira), que era dada pela professora.
Para quem não está familiarizado com a terminologia destas coisas,
Int - "Interior", significa que a cena se passa num cenário interior
Ext - "Exterior", está-se mesmo a ver o que é
A indicação inicial de cada cena tem o seu número respectivo, se é no interior ou exterior, altura do dia em que decorre (dia, noite, etc) e finalmente o local onde a acção se passa.

“ARTURES”
CENA 1 - Int./Dia - Quarto de ARTUR (W/C)
O quarto parece limpo. Está pintado de verde pálido e nas paredes existem gravuras com esculturas eróticas. A cama é muito baixa e ao lado há uma poltrona esfarrapada e um monte de almofadas coloridas. Na mesa de cabeceira vários objectos de forma inconfundível completam o espaço. ARTUR despe-se, pega na roupa interior lavada e segue para a casa de banho, no interior do quarto. É um cubículo lacado e tem na porta um poster com uma loura montada numa coca-cola. O poster está amarelecido e manchado dos insectos. A loura usava o cabelo à Marilyn Monroe, tipo anos 50. ARTUR pousa a sua roupa sobre a sanita e entra para o “poliban”. No chuveiro falta o coador. É simplesmente um cano de onde jorra um jacto de água à altura da cabeça, mas ARTUR não hesita em lavar-se. No mesmo instante em que a água corre, tocam à porta persistentemente. ARTUR atrapalhado enrola-se no toalhão, que se encontra pendurado, e corre. Ao chegar ao quarto repara que as janelas estão escancaradas e os cortinados esvoaçam ao vento. ARTUR olha o céu que anuncia algo estranho. No céu pendem nuvens com mesclas de cinza e rosa. Fica atento e já nada ouve, a não ser, o ruído de fundo do tráfego e o burburinho da multidão que se faz sentir na avenida principal. De regresso, novamente à casa de banho, e ao virar-se assiste à revolução do seu quarto. Entre gavetas no chão, a cama revolta, objectos pessoais espalhados, e outros, estão a descoberto fotografias, um revólver e uma mancha de sangue. ARTUR fica perplexo. A sua imagem funde-se a negro.
CENA 1B – Int./Dia – Quarto de Artur
Artur olha em volta e está um bocado sem saber o que fazer. De repente precipita-se para uma gaveta que está virada ao contrário, junto à cama. Procura qualquer coisa desesperadamente, por entre as meias lavadas e com buracos. Não encontra. Volta a olhar para o quarto e procura o telefone que está na mesa-de-cabeceira. Marca um número. Está a chamar. Artur mexe a perna nervosamente. Atendem.
ARTUR
Estou? Águas? Preciso de usar a máquina.
A VOZ que soa ao TELEFONE diz qualquer coisa indistinta.
ARTUR
Sete e meia? Não pode ser mais cedo?
A VOZ que soa ao TELEFONE diz outra coisa indistinta.
ARTUR
Seja. Quando chegar toco e vens-me abrir a porta.
Voltam a tocar à campainha. Artur vai abrir. A sua vizinha, uma velhota desdentada com um punhado de fios de cabelo branco e roupão vestido, olha para ele com toda a surpresa.
VIZINHA
Artur! Por aqui?
ARTUR
Dona Júlia, agora estou um pouco ocupado, não poderia voltar mais tarde?
VIZINHA
Artur, mas que surpresa! Podia jurar que o tinha visto a cair pela minha janela!
Artur fecha a porta na cara da senhora. Lança um lento e panorâmico olhar pelo quarto, de mãos nas ancas e ombros caídos. Caminha até ao telefone. Marca um número. Atendem.
ARTUR
Estou? Posso falar com a Catarina?
(pausa)
ARTUR
Katty Gatinha, sim. Ela pode atender?
(pausa)
ARTUR
Catarina? Por favor muda o teu nome artístico. A sério.
CATARINA (voz off)
O que queres, Artur?
ARTUR
Preciso de me encontrar contigo. Roubaram-me a Vagina.
CATARINA (voz off)
E isso que me importa?
ARTUR
Que te importa? Pois se a Vagina também era tua..!
CATARINA (voz off)
Se estás a insinuar que te roubei a Vagina peço-te educadamente que vás bugiar.
ARTUR
Não foi isso que eu disse. Alguém me entrou em casa e roubou a Vagina.
CATARINA (voz off)
Estás a insinuar que fui eu?
ARTUR
Não, não estou, é só que…
CATARINA (voz off)
Estás a insinuar que foi o meu namorado?
ARTUR
Qual deles?
CATARINA (voz off)
Estás a insinuar que sou uma porca oferecida?
ARTUR
Pára de achar que estou sempre a insinuar qualquer coisa. Só queria saber se tinhas ideia de quem o poderia ter feito.
CATARINA (voz off)
Se estás a insinuar que tive alguma coisa a ver com o roubo da tua estúpida vagina, então não temos nada mais para conversar. Esqueces-te que tu tens uma vagina, enquanto eu tenho sete. Sete, Artur. Seis de ouro, cada uma em cima de um suporte de cristal encomendado especialmente para condizer com os tons bordeaux da minha lareira. Seis de ouro e uma verdadeira.
Ouvimos CATARINA desliga o telefone bruscamente, do outro lado da linha.
ARTUR pousa o auscultador e olha para o relógio. É meio-dia e 45. Senta-se na cama e começa a arrumar as coisas espalhadas. O televisor está ligado, e a pivot de um canal de televisão entra em cena rodeada por um espampanante genérico com as palavras NOTÍCIAS a esvoaçarem e uma música gloriosa.
PIVOT
Bom dia e bem vindos de volta ao jornal do meio dia. A famosa estrela porno Katty Gatinha pediu o divórcio a Artur Serra, o ex-realizador e agora crítico freelancer de cinema porno, e conseguiu-o.
Uma das fotografias espalhadas pelo chão do quarto apresenta um Artur Serra novo e bem mais magro e saudável, abraçado a uma mulher de cabelo curto louro.
(cont.) PIVOT
Depois de um mediático processo de partilhas, que incluiu a pequena fortuna, o carro e a casa que ambos partilhavam, Katty Gatinha está satisfeita, dizendo mesmo que, cito, “conseguiu tudo o que queria”.
ARTUR olha para o televisor, interrompendo a arrumação. Surge uma filmagem amadora e tremida de ARTUR e CATARINA a saírem de um hotel e a entrar numa limusina, rodeados de fotógrafos e jornalistas. Atrás deles, um enorme cartaz com a imagem de uma loura a montar uma garrafa de Coca Cola. ARTUR desvia o olhar e continua a meter meias dentro de uma gaveta.
(cont. PIVOT)
Artur Serra e Katty Gatinha foram a dupla realizador/actriz que revolucionou o mundo da porno há sete anos atrás com o filme “Eu Dormi com a Coca-cola”. A famosa cena de sexo entre Katty Gatinha e uma gigantesca garrafa de coca-cola no topo do Empire State Building valeram a Artur Serra um sério problema judicial e o prestigiante Vagina de Ouro. Artur viu a sua carreira e agora o seu casamento arruinados depois de…
ARTUR desliga a televisão.
CENA 2 - Int./Dia – Sala da Máquina
ARTUR bate a uma pequena porta. Ao lado está um logótipo com a figura de um verme a circundar uma ampulheta. Abrem a porta, é ÁGUAS, um tipo de 45 anos, barrigudo e de bigode, vestido com uma farda de segurança. Ele masca pastilha.
ÁGUAS
Boas tardes. Como vai isso?
ARTUR
Preciso de usar a máquina. Entraram-me em casa e roubaram-me a vagina.
ÁGUAS
Desculpa?
ARTUR
A Vagina de Ouro.
ÁGUAS
A sério? Quem?
ARTUR
É isso que quero descobrir.
ÁGUAS
Desculpa lá só ter dado para vires agora, mas isto só fecha às sete. Agora estamos à vontade.
Chegam a uma pequena sala com uma enorme cápsula cilíndrica ao centro, e uma série de complicados painéis à sua volta. Um letreiro próximo diz PERIGO: CUIDADO COM OS PARADOXOS TEMPORAIS. VER-SE A SI PRÓPRIO DURANTE A VIAGEM PARA O PASSADO PODE SER LETAL. NÃO UTILIZAR ESTA MÁQUINA SEM SUPERVISÃO ESPECIALIZADA. Águas senta-se a uma cadeira, bebericando uma Coca-Cola e colocando as solas dos sapatos em cima de um dos painéis.
ÁGUAS
Já mexeste numa coisa dessas, não foi?
ARTUR
(a mexer nos botões)
Hum, hum.
ÁGUAS
Achas que foi quem?
ARTUR
Não sei.
ÁGUAS
Desconfias de alguém?
ARTUR
Não.
ÁGUAS
(parando de beber e falando de forma filosófica)
Ficar assim, desprovido de vagina… Parece até simbólico, já viste? Primeiro perdes a Catarina, depois a Vagina de Ouro… Há mais alguma coisa que possas perder para te tornar ainda mais desprovido de qualquer referência feminina na tua vida?
ARTUR
(procurando um botão)
Não sejas parvo.
ÁGUAS
É verdade o que te digo. Devias repensar as tuas prioridades. Tens 40 anos, e és pago para opinar sobre filmes pornográficos. Já viste que vida? Tens de arranjar uma boa mulher, que te faça o jantar e essas coisas.
ARTUR
E tu, tens uma boa mulher que te faça o jantar?
ÁGUAS
(retoma a coca cola)
Tenho, chama-se microondas.
ARTUR
(sorri)
Volto daqui a uns minutos.
ÁGUAS
De quanto tempo é o recuo?
ARTUR
Só até ao meio dia e pouco. Quero ver quem me entrou no apartamento.
ÁGUAS
Força com isso. Vou estar por aqui.
Águas puxa uma revista pornográfica para junto de si. Artur aponta para uma lanterna por cima da cápsula, com o letreiro AVISO DE RETORNO ao lado.
ARTUR
É bom que estejas, porque se aquela luzinha começa a piscar e tu não estiveres aqui para me trazer de volta estou tramado.
ÁGUAS
(folheando a revista)
Sim, claro.
ARTUR entra para dentro da cápsula.
ARTUR
Até já.
ÁGUAS faz-lhe um sinal de adeus, sem tirar os olhos de uma revista com uma mulher nua. A máquina tremelica e Artur desaparece num feixe de luz.
CENA 3 - Int./Dia – Prédio de Artur
ARTUR caminha pelo seu corredor fora. Aproxima-se da sua porta, e consegue ouvir do outro lado o som do seu despertador. Decide afastar-se, pois tem ainda alguns minutos até ao assalto. Vai até às escadas, desce-as, e chega à entrada do prédio. Olha em volta, e reconhece um carro do outro lado da estrada. Afasta-se e esconde-se atrás de uma árvore. Dois homens saem do carro e caminham. Entram no prédio e apanham o elevador. ARTUR toma as escadas, e chega ao seu corredor ao mesmo tempo. Os homens caminham pelo corredor fora e usam uma pequena máquina portátil para arrombar a fechadura e abrir a porta. São profissionais. Artur segue-os. Quando olha para dentro do seu quarto um deles está a atirar gavetas para o chão. Da casa de banho vem o som do chuveiro. Um dos homens vê-o, enquanto agarra um pequeno troféu em forma de Vagina na mão.
ARTUR
Larga isso.
O segundo homem olha para ele, e ambos correm na sua direcção. ARTUR prepara-se para se desviar ou defender-se, mas leva com a Vagina de Ouro na cabeça e cambaleia para trás. O homem que lhe deu o encontrão perde o revólver, que lhe cai das mãos enquanto segura a Vagina. Ambos os homens correm, a fugir, e ARTUR bate com a cabeça na campainha, que toca. Cambaleia pelo quarto dentro, quase caindo e levantando-se ao apoiar uma mão ensanguentada no chão. Lá dentro, o seu chuveiro é desligado. ARTUR olha em volta, assustado. Tem de se esconder. Cambaleia até à janela, que está aberta, e salta para as escadas de incêndio enquanto ouve a porta da casa de banho abrir-se atrás de si. ARTUR desce as escadas de incêndio, de andar em andar. Ouvem-se ruídos de gavetas a serem remexidas, o som da campainha e a voz apagada da vizinha.
VIZINHA
Artur, mas que surpresa! Podia jurar que o tinha visto a cair pela minha janela!
ARTUR chega ao rés-do-chão e leva a mão à cabeça. Sente-se a desmaiar. Senta-se a um canto, sentindo sangue na cabeça. Desmaia.
CENA 3A - Int./Dia – Prédio de Artur
ARTUR acorda, está no mesmo sítio. Olha em volta. Tem manchas de sangue na camisa. Olha para o relógio, e constata em pânico que são sete e trinca e quatro. Procura levantar-se e tirar um pequeno mecanismo do bolso, uma pega com um botão vermelho em cima, e com dificuldade consegue. Carrega no botão. Artur sente-se a voar.
CENA 2B - Int./Noite – Sala da Máquina
ARTUR está de volta à cápsula.
ÁGUAS
Porra, o que te aconteceu? Porque demoraste tanto? São quase três da manhã!
ARTUR
Levei com a vagina na cabeça.
ÁGUAS

Meu, não sabes o quando isso parece estúpido dito assim. Estás a sangrar e tudo. Andaste à pancada? Viste quem te roubou?
ARTUR
Vi. Não os conheço, mas sabiam que eu tinha a vagina numa das gavetas. Sabiam para o que iam. Não sei quem foi.
ÁGUAS
Que cena. Deste-lhes, ao menos?
ARTUR
Cala-te e traz-me Betadine ou assim.
ÁGUAS traz-lhe uma toalha branca e Betadine. ARTUR leva a toalha à cabeça.
ARTUR
Tenho de regressar.
ÁGUAS
Para? Não os viste já?
ARTUR
Tenho de arranjar forma de os seguir, ou evitar o assalto.
ÁGUAS
Queres que vá contigo? Podemos andar à porrada com eles.
ARTUR
Não, obrigado. És muito simpático.
ÁGUAS
De quanto tempo queres o recuo?
ARTUR
Até ao meio dia e 20.
ÁGUAS (a carregar em alguns botões)
Óptimo. Boa sorte com isso e vê lá se não levas com outra vagina na cabeça.
ARTUR diz que sim com a cabeça e volta a entrar na cápsula.
CENA 3B - Int./Dia – Prédio de Artur
ARTUR está no corredor do seu prédio. Caminha até ao fundo, abre a porta de emergência e sobe umas escadas de incêndio, aproximando-se do seu andar. A janela do seu quarto está à sua frente. Olha para baixo. Os dois homens saem do carro e atravessam a estrada, a alguns andares de distância. Artur prepara-se psicologicamente. Espreita ligeiramente para dentro do quarto. Vê-se a si próprio a escolher despreocupadamente as cuecas que vai vestir, e a entrar para a casa de banho. A porta abre-se, e os dois homens entram. Vão direitos ao armário onde estão as gavetas, virando-as ao contrário. Encontram um troféu em forma de vagina, no momento em que Artur chega à ombreira da porta.
SEGUNDO ARTUR
(junto à porta)
Larga isso.
Os dois homens vão reagir, mas Artur, o da janela, entra pelo quarto saltando o parapeito da janela. O SEGUNDO ARTUR, surpreendido, não sabe o que fazer; nem os dois homens. ARTUR DA JANELA cai-lhes em cima, tirando-lhes o revólver. Andam à pancada. O SEGUNDO ARTUR junta-se momentaneamente. A toalha que ARTUR DA JANELA segurava junto à cabeça cai para o chão, manchando-o de sangue. Na confusão, a Vagina é abandonada no chão do quarto. Os dois homens conseguem fugir, livrando-se deles. Na confusão um dos homens toca à campainha, e o som do chuveiro deixa de se ouvir. Os homens desaparecem. ARTUR DA JANELA apanha a Vagina de Ouro e precipita-se para a janela. Ambos os Artures saem pela janela no momento em que o ARTUR DO CHUVEIRO sai da casa de banho, e vê a confusão no seu quarto.
SEGUNDO ARTUR
Porque é que ficaste com a Vagina?
ARTUR DA JANELA
Não sei, foi o reflexo.
SEGUNDO ARTUR
Tens de lhe devolver a Vagina.
ARTUR DA JANELA
Não posso, senão deixaremos de existir.
SEGUNDO ARTUR
Paradoxos temporais só funcionam se…
ARTUR DA JANELA
Cala-te.
Lá dentro, o ARTUR DO QUARTO agarrou no telefone.
ARTUR DO QUARTO
Estou? Águas? Preciso de usar a máquina.
SEGUNDO ARTUR
Dá-me a Vagina.
ARTUR DA JANELA
Não.
SEGUNDO ARTUR
Dá-me!
ARTUR DA JANELA
Cala-te senão ele ainda nos ouve! É perigoso!
O SEGUNDO ARTUR empurra o ARTUR DA JANELA da escada de incêndio. Incrédulo, o ARTUR DA JANELA bate com a cabeça num corrimão e cai inconsciente, indo embater com um estrondo no estendal da roupa da vizinha de baixo. O SEGUNDO ARTUR vê-se a si próprio cair até à rua, e momentos depois a campainha toca.
VIZINHA (dentro do quarto)
Artur, mas que surpresa! Podia jurar que o tinha visto a cair pela minha janela!
O SEGUNDO ARTUR abre a janela subitamente e atira a Vagina para dentro do quarto. Esta aterra atrás de um armário. O ARTUR DO QUARTO fecha a porta na cara da vizinha, e aproxima-se da janela. Aí vê o troféu, cintilante, a sair de trás de um armário. Respira fundo. Vai até ao telefone. Liga a alguém. Atendem.
ARTUR DO QUARTO
Estou, Águas? Encontrei a vagina. Está aqui, não ma levaram. Mas obrigado na mesma. Sim, abraço.
ARTUR DO QUARTO desliga o telefone, respira fundo e começa a arrumar o quarto. A escada de incêndio está vazia.
FIM

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