sábado, 7 de agosto de 2010

A justiça do esfregão

Às dezoito horas e quinze minutos do dia combinado, as trancas puxadas, as maçanetas rodadas e as chaves fazendo o seu violento tilintar dentro das fechaduras. Para evitar que alguém entrasse. O anúncio, tal como combinado, foi feito através dos relógios, todos eles sintonizados ao mesmo tempo para a mesma hora. As crianças fechadas dentro das casas choravam, sentindo que algo se passava; e as empregadas domésticas abraçavam-nas, acalmando-as, dizendo-lhes ao ouvido,
- Hoje o mundo vai mudar.
Nesse dia, todas as empregadas domésticas do planeta trancaram-se dentro das casas dos seus patrões e patroas, ao mesmo tempo, num esforço mundial para dizer Basta.
***
O horário do culto dava jeito a Maria Josefa, que se encontrou com outras duas empregadas domésticas suas amigas à porta da garagem onde, dizia o anúncio que tinham visto no jornal, haveria uma das reuniões semanais. Ficaram ali à espera que algo acontecesse, bateram depois à porta da garagem meio a medo, e uma voz perguntou-lhes ao que vinham. Elas disseram que era por causa do anúncio. A voz convidou-as a entrar, e Maria Josefa impressionou-se.
Uma sala iluminada, gigantesca, cheia de figuras femininas vestidas com aventais e roupas largas e esfoladas, o prático substitui o elegante. Algumas seguram esfregonas, outras baldes, outras panos do pó. O cheiro a lixívia, a desinfectante, a desengordurante. A WC Pato. A retrete. A Super Pop limão Extra Suave. Mãos hidratadas demais seguram cabos de vassouras. Caras cansadas e com papos nos olhos observam uma mulher vestida com um avental de plástico com flores, agitando os braços, duas argolas penduradas nas orelhas a agitarem-se.
- E porque raio – gritava ela no púlpito – é que nas novelas os filhos dos patrões são todos Meninos mesmo quando já têm vinte e tal anos? O menino já chegou, o menino hoje não se sente bem. Porque é que usamos sempre uniforme na televisão? E a nossa individualidade?
Aplausos, as mesmas mãos que esfregam gordura de tachos, que limpam banheiras, que pagam com o suor o preço de uma sala aspirada e de um verniz bem aplicado. Maria Josefa sente uma golfada de ar quente a descer-lhe pelo peito, como alguém que encontrou de repente e sem dar por isso uma força poderosa que sempre estivera dentro de si. A coisa de tratar os adultos por meninos. Também nunca fizera sentido para ela. Sentou-se com as amigas. A senhora no púlpito levantou os braços.
- Chega de limpar as gotas de mijo do patrão. Ele só é meu patrão por uma estranha coincidência cósmica qualquer. Porque teve sorte. E sonho com o dia em que seja ele a limpar-me a retrete.
As mulheres levantaram-se numa ovação. Maria Josefa aplaudia, olhos abertos, compreensão ainda procurando absorver todas as imagens e todas as palavras. A mulher no púlpito agarrou o avental que trazia com as mãos enroladas em garras, os nós dos dedos brancos.
- Que limpem eles as retretes – e com isto arranca o avental, agita-o acima da cabeça duas vezes, aventais saltam por toda a sala, quem não tem aventais solta toucas, panos do pó, levanta esfregonas, já não se ouve nada senão os gritos sobrepondo-se uns aos outros, Maria Josefa pouco vê por causa das lágrimas.
***
Maria Josefa nos cultos, todas as semanas. Maria Josefa indo para casa mais tarde, no último autocarro, quando os ponteiros no relógio tocam o 12. O marido procura compreender mas não consegue, quer que as coisas voltem ao normal, quer comida na mesa à hora. Maria Josefa vê-se de frente para o fogão, mexendo a massa, cheira a cebola, compreende que não há diferença entre o seu trabalho e a sua casa. Maria Josefa largando o avental, rasgando-o à frente do marido que por momentos o confunde com uma provocação erótica.
- Cozinha tu – diz Maria Josefa, e sai de casa sentindo-se viva pela primeira vez.
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Maria Josefa mexe a massa para o jantar do patrão. Ele e a mulher estão fora, fazendo as coisas que os patrões fazem. A Maria Josefa faz-lhe confusão. Também ela quer ir às compras, quer chegar com o cabelo levantado em forma de abóbada e a cheirar a perfume caro e a fixador. Quer sentir o que sente alguém que paga as contas, paga a comida, paga tudo e até paga a alguém para lhe tratar do filho. Maria Josefa queria sentir isso tudo, mas já agora compreendê-lo também. Subitamente uma dor no coração perfura-lhe a atenção, e as rezas do culto e as divagações filosóficas são interrompidas por uma profunda saudade do filho. Olha de lado para o choro que se levanta, é o Menino. O Menino quer lanchar.
- És órfão. Para todos os efeitos, és órfão – diz-lhe Maria Josefa, e ele não compreende, pois se os seus pais voltam todos os dias à noite a tempo de lhe dar um beijo na testa quando adormece, aquela senhora só lá está para lhe dar o lanche. Maria Josefa estende-lhe a sandes de fiambre, e o órfão vai para a sala ver televisão.
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Maria Josefa no culto, cantando as canções, levantando uma vassoura que comprou para a agitar no ar e usar como bastão de conquista pelo mundo por que luta. As suas amigas estão a seu lado, cantando também, prometendo que um dia urinarão onde em tempos lavaram a troco do pão nosso de cada dia.
- Amigas, o dia se aproxima – diz uma mulher de avental rasgado, simbolizando as intenções do culto. Para Maria Josefa, simbolizando tudo.
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O dia chegou. À mesma hora, em todo o mundo, todas as empregadas domésticas fecham a casa dos patrões por dentro, para manter quem quiser entrar lá fora. Maria Josefa segue as instruções do culto à risca. Fecha as crianças no quarto com a chave. Tranca as janelas. As portas. Olha em volta. A casa é sua.
Espalha vidros partidos pela sala. Abre todas as torneiras da sala. Urina para dentro das aparelhagens. Tapa as tomadas com cola. Substitui as pastas de dentes por cola. O açúcar por sal. Esfrega as escovas de dentes na sanita e volta a pô-las no lugar. Com a cor forte das próprias fezes escreve mensagens terríveis nas paredes. Depois afasta-se para apreciar a sua obra, agarra a esfregona mas não consegue passar do sítio onde está. Cai a uma cadeira, olha em volta outra vez, chora. Afinal andara a limpar a casa para quê? Olha para os vidros, onde agora se escrevem insultos a castanho, e ri-se porque não será ela com certeza a esfregá-los. Pára de chorar, de certa forma aqueles vidros que não serão limpos por ela limparam-lhe as poucas dúvidas que lhe restava na cabeça. Sente-se uma herege por ali estar sentada a chorar, a atrasar o meticuloso calendário do culto. Vai à mala, carrega a pistola. Tocam à campainha, enfia a pistola no bolso do avental, vai abrir.
- Senhor doutor, já em casa?
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Maria Josefa segurando o revolver, perguntando-se se poderia mesmo disparar a arma. O patrão de gatas, esfregão na mão, a limpar a urina que já seca.
- Ali. Mais força.
O patrão chora como uma criança, sente a arma fria colada ao pescoço coberto de suor.
- A seguir são os vidros.
A seguir foram os vidros, o patrão com o produto numa mão e um pano no outro, borrifa aqui, esfrega acolá, as fezes ganhando cor escura e cheiro podre ao calor.
- Por favor não me faça mal – diz ele, ranho misturado com lágrimas a escorrerem-lhe pelo queixo.
- Escapou-lhe ali um bocadinho – diz Maria Josefa.
***
A casa está limpa, são três da manhã. O patrão sentado no chão, derrotado, como um boneco de trapos desbotado. Maria Josefa também cansada, a mão dormente de segurar o gatilho. Estão frente a frente como dois amigos conversando.
- Compreende agora? – pergunta Maria Josefa, o guião do culto decorado palavra a palavra.
O patrão diz que sim, implora que o solte.
- Esta é a afirmação da escória da sociedade que vos limpa a urina da retrete e a comida seca dos tachos. Está é a lição que vos ensinamos – a arma firme – Escapou-lhe um bocadinho – diz Maria Josefa.
Maria Josefa premindo o gatilho, a cabeça do patrão dobrando-se como que cuspida por uma mola, sujando os cortinados de carne e pasta vermelha que se desmonta numa corrida acelerada de gotas escorrendo até ao chão.
***
Maria Josefa olhando o horizonte, observando a ironia. Olha para a cidade imensa que se estende à sua frente sabendo que aquela sensação de eternidade é uma piada negra contada ao seu destino. À sua volta reúnem-se outras mulheres como ela, algumas com sangue no avental, suadas, segurando cada uma a sua esfregona, algumas apoiando-se nela para andar. Descem a rua, o grupo cresce como que absorvendo novas inquilinas à medida que passa de rua em rua, são agora uma massa que cheira a suor e a lixívia misturados e que se move como uma célula gigante.
***
Maria Josefa aguentando-se à bronca, levantando a esfregona e gritando,
- Em frente,
Mas nenhuma das companheiras a ouve por cima do soar das balas de borracha. Caem como alvos fáceis, disparam sem pontaria, agitam as esfregonas como quem agita uma bandeira em sinal de patriotismo cego. À sua volta sente corpos a cair no asfalto da praça, tropeça no sangue e na roupa espalhada. Ela e as companheiras, uma massa de cores vivas de aventais e roupa larga, um volume assassino que cheira a limão e a casa de banho lavada.
Atrás da barreira de fumo que lhe queima os olhos, a polícia faz chover mais pedaços de borracha quente. Maria Josefa, com uma borracha na garganta, agarra-a e sente sangue vivo. Levanta a esfregona, a esfregona é sua, cai para trás e os sons afunilam-se numa massa de volume decrescente e sem significado. Dali consegue avistar as portas da Câmara Municipal, as sirenes da polícia brilhando na noite. Cai no solo coberto de sangue, sente as companheiras que caem com ela, são corpos espalhados e sangrentos, cospe também ela sangue para o lado e morre sorrindo porque pensa que alguém terá de limpar aquilo tudo.
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