segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O Homem que Reconhecia as Mulheres pelo Rabo (parte 2 de 4)

Alguns dias se passaram. O homem continuou à procura de emprego, desta vez com uma ideia mais definida do que queria profissionalmente. A conversa com a sua vizinha do lado dera-lhe uma ideia. Se, tal como ela, procurasse emprego numa loja de roupa masculina e não feminina, estaria a trabalhar só com homens e nunca com mulheres: isso evitaria situações embaraçosas e constrangedoras. Decidido, correu todas as lojas de roupa do seu quarteirão, mas nenhuma precisava de empregados de momento. Regressou a casa desiludido mas ao abrir a caixa do correio e ver lá dentro um envelope, o seu coração começou a bater mais depressa e a adrenalina a correr-lhe nas veias. Pegou no envelope e constatou que no seu canto superior direito estava o logótipo da revista Rabos da Semana. Correu para o seu apartamento e sentou-se na cama a ler a carta:

Caro leitor

Agradecemos as suas simpáticas palavras acerca da nossa revista bem como os elogios que nos fez.

Quanto às suas críticas, temos a garantir que são acusações infundadas e falsas. A Rabos da Semana compromete-se a entregar aos seus leitores o que de melhor há para ver no mundo dos rabos, mantendo há já dois anos um historial de rigor e honestidade para com os seus leitores. Os rabos que apresentamos são os melhores do mundo, não temos dúvida, e tentamos ao máximo levá-los até si, caro leitor, com a maior qualidade possível. Daí a ser absolutamente falsa a presunção de estarmos a enganá-lo, a si e a todos os nossos fiéis leitores, com rabos repetidos. Tal acto seria desonesto e impróprio de uma publicação que se quer profissional e digna de todos os seus leitores, e iria totalmente contra a nossa conduta de honestidade e seriedade.

Não perca esta semana o nosso catálogo Especial Fim de Ano, com todas as tendências para os rabos do próximo ano.

Desejamos-lhe um feliz Natal e um próspero ano novo

Com os melhores cumprimentos

Os Editores da Rabos da Semana


Sentindo-se mais enganado ainda, o homem guardou a carta numa gaveta e recusou-se a voltar a lê-la. Eram tudo mentiras, disso tinha a certeza. Estavam a mentir-lhe, e isso deixava-o revoltado.

Perdido em pensamentos, alguém lhe bateu à porta uma e outra vez, e só à terceira é que o homem ouviu e se levantou para ir abrir. Era uma rapariga que o olhou curiosa.

- Boa noite… o dono da casa está? – perguntou ela.

O homem tinha a sensação de reconhecer aquela voz, mas não quis arriscar. Se conseguisse ao menos espreitar-lhe o rabo…

- Sim, é o próprio. – respondeu, reticente. A rapariga sorriu-lhe.

- Ah, não o reconheci! Peço desculpa, é que… Acontece-me, às vezes! – disse ela, sempre sorridente – Posso entrar?

Era uma oportunidade perfeita. O homem disse que sim, e deixou a rapariga entrar. De esguelha, olhou-lhe para as nádegas e reconheceu-as. Era a sua vizinha do lado.

- Ah, boa noite! – disse ele, como se só lhe tivesse aberto a porta naquele momento.

- Será que estou a incomodar? – perguntou ela, sentindo-se subitamente culpada por alguma coisa e parando com um saltinho - Ouça, se estiver ocupado eu…

- Não, de modo nenhum! – disse ele – Fique à vontade, sente-se!

O homem puxou-lhe uma cadeira, ela sentou-se e ele sentou-se também, ao seu lado.

- Tem uma casa pequenina mas muito bonita! – comentou ela, olhando em volta. O homem acenou, agradecido, e foi em pânico que reparou que tinha deixado desarrumadas as suas três cópias da Rabos da Semana. Transpirando, engoliu em seco e tentou desviar a atenção da rapariga para um candeeiro, mas tarde demais: ela pôs os olhos nas revistas e mordeu o lábio para não se rir.

- Rabos da Semana? – perguntou ela, esticando um braço para as agarrar de cima de uma mesa.

- Ah, hum… Bem… - engasgou-se o homem, embasbacado. Estava pálido, envergonhado. Não sabia o que dizer. Que vergonha, que humilhação. O que iria pensar a rapariga? Com certeza fugiria a sete pés, com a certeza de que se tornara vizinha de um tarado.

Mas a rapariga, em vez de fugir, olhou para as revistas e começou a rir. Riu, soltou uma pequena gargalhada, e o homem sorri também, meio aliviado. A gargalhada da rapariga era muito limpa, muito suave e bonita, como manteiga derretida.

- Ouça, eu… Não pense que sou algum tarado, porque… - começou ele, mas engasgou-se antes de poder continuar.

- Ai, desculpe… - disse ela, contendo o riso. – Desculpe, que vergonha a minha, estar a rir-me assim. Não pense que me estou a rir de si, é só porque… É uma coincidência tão engraçada… - e desatou a rir-se outra vez. O homem ria agora também, mesmo sem perceber porquê.

- É que… - começou a rapariga, contendo finalmente a gargalhada – É que o que eu vim aqui dizer-lhe, já vai perceber… É estranho, é muito estranho, mas eu sinto que… Bem, somos vizinhos, demo-nos bem, e… Eu estou sozinha na cidade, você também não conhece ninguém… E pensei que desabafar um pouco me fizesse sentir melhor.

- Mas por favor, pelo menos deixe-me explicar-lhe porque tenho revistas de rabos femininos espalhadas pela casa… - disse o homem, e a rapariga riu-se outra vez.

- Explique lá, então.

- Bem… O que se passa é que… - o homem recomeçara a suar. A sua ânsia de não parecer um tarado à frente da única pessoa com quem falava fê-lo precipitar-se para uma decisão que tinha de ser tomada depressa: inventar uma desculpa crível que explicasse a existência de revistas com rabos na sua casa, ou dizer-lhe a verdade sobre a sua condição. Terrivelmente mau a inventar desculpas, e com medo de ser desonesto e de afastar a rapariga, o homem decidiu-se pela honestidade e engoliu em seco para ganhar fôlego e coragem

- O que se passa é que eu… Isto pode parecer-lhe estranho e até pode não acreditar, mas… Eu padeço de uma condição desconhecida da medicina, e inexplicável também… Algo que sempre me envergonhou mas com o qual tive de aprender a viver… E que pode parecer invenção, ou piada, mas que é a mais pura das verdades…

A rapariga olhava-o, curiosa.

- Eu… Eu não consigo reconhecer as mulheres pela cara – disse o homem, de uma só vez.

- Como assim? – perguntou a rapariga, surpreendida.

- Bem… Eu… Eu só reconheço as mulheres… Pelo rabo.

Houve uma pausa. O homem sentiu-se subitamente arrependido por lhe ter contado a verdade. Agora sim ela iria pensar que estava na casa de um tarado, e quereria fugir enquanto estava sã e salva. Mas a rapariga permaneceu sentada numa inércia e numa passividade tão grandes que o assustaram.

- Você está bem…? Sente-se bem…? – perguntou ele.

- Então de todas as vezes – começou ela, ignorando a sua pergunta – Que nos encontrámos no elevador ou na rua… Olhou para o meu rabo para me reconhecer?

O homem sentiu-se corar fortemente.

A rapariga olhou para ele com uma expressão vaga. O homem empapava-se no próprio suor, encolhido pela vergonha.

- Que curioso… É realmente curioso… - disse a rapariga, num murmúrio.

- Deve pensar que eu sou algum…

- Não, de forma alguma! É que… Meu Deus, a coincidência é tão grande…

- Coincidência?

- Agora sim me sinto à vontade para falar consigo – disse a rapariga, sorrindo e expressando uma emoção finalmente, depois de ultrapassada a sua surpresa – Agora sim vou-lhe dizer o que vim cá para lhe dizer. E digo que é curioso porque realmente vai ver que é uma coisa inacreditável… Eu sou como você.

- Como eu? – perguntou o homem. Agora era ele o surpreendido.

- Sim. Desde que nasci que só reconheço os homens pelo seu rabo. Nunca consegui distinguir um só homem pela cara, ou pelo resto do corpo: apenas pelo rabo…

- Então de todas as vezes que nos encontrámos no elevador e na rua…?

A rapariga olhou para ele, disse que sim com a cabeça e os dois, ao mesmo tempo, começaram a rir à gargalhada.

A partir daquele dia, o homem e a rapariga ficaram amigos. Passaram horas a partilhar histórias embaraçosas sobre como era a sua vida, com a sua condição. Encontraram semelhanças, acontecimentos e humilhações parecidas. Falaram dos seus desgostos amorosos que correram mal por causa dos rabos. Começaram a tomar as refeições juntos, fazendo companhia um ao outro. O homem contou-lhe até sobre o caso dos Rabos da Semana, mostrando-lhe a carta que recebeu dos seus editores. Ela concordava: era uma desonestidade. Apesar do seu dom só englobar os rabos masculinos, a rapariga tinha plena confiança de que se o homem dizia que o rabos eram sempre os mesmos naquelas revistas, era porque eram mesmo. Se houvesse uma revista de rabos masculinos em que a mesma situação acontecesse, ela seria a primeira a dar por isso. Acreditava nele; até lhe chegou a comprar uma outra revista de rabos que viu à venda, cuja existência era totalmente desconhecida do homem. Tratava-se da Bundas de Domingo, outra publicação inteiramente dedicada a rabos; e, ao que parecia, era a rival da Rabos da Semana. O homem decidiu então testar o novo semanário, e esperou pela semana seguinte para comprar o próximo número da revista. Constatou satisfeito que a Bundas de Domingo tinha o cuidado de apresentar rabos inteiramente diferentes, semana a semana.

Decidido a terminar aquela injustiça, e na esperança de que lhe dessem crédito, o homem redigiu uma segunda carta, mas desta vez para a redacção da Bundas de Domingo. Dizia:

Caros editores da Bundas de Domingo

Escrevo-vos na qualidade não de vosso leitor mas de leitor da vossa rival das bancas, a Rabos da Semana.

Há umas semanas comprei a minha primeira edição daquela revista e desde essa altura tenho verificado uma situação constante em todas as suas edições e que me revolta. Achei ser de vosso interesse reportar-vos que a Rabos da Semana usa, em todas as suas edições, sempre os mesmos rabos, apenas mudando o ângulo ou a iluminação da fotografia para dar a nós, leitores, a ilusão de que compramos todas as semanas um semanário cheio de rabos novos e exclusivos. Trata-se, portanto, da mais pura desonestidade comercial e da mais violenta publicidade enganosa.

Façam o favor de tomar as providências que acharem necessárias e oportunas, tendo a minha autorização e apoio para tornar esta informação pública e do conhecimento geral.

Cumprimentos

Um (futuro) leitor

Enviada a carta, o homem esperou resposta no correio mas em vão. Teve-a, no entanto, quando foi ao quiosque dali a uns dias. Foi com surpresa que, ao olhar para a capa da Bundas de Domingo, se deparou com frases em letras gordas e chamativas: “ESCÂNDALO NO MUNDO DOS RABOS- A Rabos da Semana engana os seus leitores! Apreciadores de rabos femininos em sobressalto!”. Comprou um exemplar da revista e correu para casa da rapariga, que lhe abriu a porta e convidou a entrar. Leram juntos o artigo.

A Bundas de Domingo revelava, em exclusivo, que uma denúncia anónima via correio lhes tinha chamado a atenção para o facto de a Rabos da Semana estar a fazer desonestidades comerciais, usando sempre os mesmos rabos de edição em edição. A Entidade Reguladora da Concorrência fora entretanto contactada a fim de apurar a verdade.

O homem sentiu uma volta na barriga. Que entusiasmo! Finalmente alguém o ouvia, alguém lhe dava crédito. A rapariga estava feliz.

- Talvez te arranjem lá um emprego! Identificador de Bundas! – brincava ela, sempre a rir. O homem ria também, tinha até algum medo que fosse demasiada responsabilidade; mas lá no fundo não achava aquilo nada má ideia. As economias que os seus pais lhe haviam enviado há umas semanas estavam a chegar assustadoramente ao fim, e o seu coração apertava quando pensava sequer na possibilidade de ter de os contactar a pedir mais dinheiro. Receber emprestado da sua amiga estava também fora de questão, pelo que a sua busca por emprego era cada vez mais desesperada; e desesperante. Ao que parecia, todas as lojas de roupa masculina tinham já todos os funcionários de que precisavam.

Os dias passaram-se, e o homem recebeu em casa uma carta da Bundas de Domingo. Abriu-a:

Caro leitor

Recebemos a sua carta e tomámos todas as suas suspeitas em consideração. Tal como disse, todas as necessárias providências foram já tomadas, e de certo que já viu nas bancas a nossa edição desta semana, denunciando a Rabos da Semana e o seu esquema de rabos repetidos. Tal não teria sido possível, claro, sem a sua ajuda. A Bundas de Domingo não pode agradecer-lhe o suficiente, nem tão pouco sublinhar a importância do caso que nos apresentou. Como já deve ter tipo oportunidade de ler, a Entidade Reguladora da Concorrência já foi contactada, e se certas medidas judiciais forem levadas a cabo, como esperamos que sejam, agradeceríamos ter o seu apoio. Pedimos-lhe, pois, a sua amável disponibilidade para, se for caso disso, apoiar a nossa causa e testemunhar em tribunal na condição de denunciante e leitor enganado.

Se a sua vontade for, no entanto, manter o anonimato, compreenderemos e respeitamos a sua decisão.

Como forma de agradecimento, e visto tratar-se o caro leitor de alguém que aprecia rabos de qualidade, temos o prazer de lhe oferecer um ano completo de assinatura da nossa revista, totalmente grátis.

Mais uma vez os nossos agradecimentos.

Com os mais sinceros cumprimentos

Os Editores da Bundas de Domingo

Contente, foi mostrar a carta à rapariga, que a leu com satisfação. Finalmente a justiça seria feita, e tudo graças a ele. Sentindo-se um pouco melhor, mas ainda desempregado, o homem decidiu tirar o dia e cometer a extravagância de abrir uma garrafa de vinho. Partilhou-a com a rapariga em sua casa, enquanto folheavam a Bundas de Domingo e trocavam histórias sobre rabos.

No dia seguinte, o homem apressou-se a escrever a resposta à carta da Bundas de Domingo, oferecendo a sua total cooperação. Não demoraram a contactá-lo de novo, desta vez através de um advogado. Queriam pedir-lhe os dados pessoais, e fazer algumas perguntas. Iria ser testemunha, o que significava que o caso iria mesmo para adiante.

Orgulhoso, escreveu uma carta aos seus pais, dizendo-lhes que tudo estava bem. Que ia ser testemunha num importante caso judicial e que logo por coincidência estava directamente ligado ao dom de identificar rabos femininos. O que sempre parecera ser um factor incapacitante na sua vida acabara por o levar a fazer justiça. Sentia-se soberbo. Enviou outra carta ao advogado com todos os seus dados, o seu testemunho e uma fotocópia a cores do atestado da psicanalista que ainda conservava desde a infância, e esperou pelo resultado.

O homem que reconhecia as mulheres pelo rabo encontra finalmente alguém que o compreende: a sua vizinha do lado, que padece de uma enfermidade semelhante à sua. O seu dom e maldição são agora motivo de orgulho, seus e de seus pais; e a esperança de salvar a comunidade de apreciadores de rabos femininos da mais pura fraude comercial desperta no Homem uma sensação de vitória imensa. Não percam já amanhã o emocionante julgamento que colocará de um lado os corruptos editores da Rabos da Semana e do outro os honestíssimos responsáveis pela Bundas de Domingo e, claro, o nosso portagonista. Tudo isto no próximo episódio, já amanhã.
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