terça-feira, 31 de agosto de 2010

Smith e as Sereias - episódio 8

Previamente, na novela (perdão, série) Smith e as Sereias...

- Poseidon foi a um motel chamado A Gamba Gostosa encontrar o seu amante, um homem sub-aquático de impressionantes músculos chamado Namor.

- Ariel envia uma misteriosa carta via sardinha-correio para alguém numa tal de Walt Disney Pictures; provavelmente em resposta a uma carta que Sebastião, o mordomo caranguejo, descobre nas malas de Ariel (informando-a de que tinha sido a escolhida para protagonizar alguma coisa).

- Smith é obrigado por Poseidon a ir viver para o quarto do Principado com Ariel, de forma a começarem uma vida a dois. Coisa que irrita razoavelmente Lilith, a sereia loura sua quase-amante, que por ser um amor de pessoa avisa o moço louro de que é Smith quem tem o retrato que este fez da "sua" Rose (despida, ainda por cima).


Poseion e Namor estavam deitados na cama do quarto de motel, rodeados por lençóis revirados e vestígios de roupa pelo chão. Poseidon fumava um cigarro de algas, Namor brincava com o tritão de Poseidon despreocupadamente.

- Quando poderei ir viver contigo para o Palácio? - perguntou a certo ponto Namor. Poseidon remexeu-se na cama.

- Já conversamos sobre isto...

- Mas nunca fica resolvido. Eu não quero que a nossa relação seja apenas aquela coisa estereotipada dos dois amantes que devem manter-se em segredo devido a factores sociais adversos. Tu não tens família a que agradar, muito menos eu.

- E os Atlantes?

- Os Atlantes vivem na Atlântida, que se lixem. Eu quero viver contigo. As tuas filhas com certeza iriam compreender. Se há alguém que comete imoralidades são elas, com os seus marujos.

Poseidon tinha a cara de quem tinha mordido uma rodela de limão.

- Isto que nós fazemos... Isto que nós somos... Vai contra tudo aquilo em que acredito. Contra a minha fé…

Namor espetou um beijo carinhoso na boca barbuda de Poseidon. Olhou-o nos olhos.

- És tu quem decide o que deve ou não ser feito. Não te preocupes com aquilo que os outros te dizem. Tu és maior e vacinado. Tu és o Rei dos Mares, caramba. Se alguém tem autoridade por aqui és tu! Afinal o que há de errado naquilo que somos? Não magoamos ninguém. Não nos magoamos. Amamo-nos. O que há de mais importante?

Poseidon olhou para o tecto do quarto de motel, repleto de musgo. Suspirou.

***

Cheguei à porta do quarto ao mesmo tempo que Ariel, o que só demonstra o quanto as coincidências gostam de me tramar. Trazia o ramo de algas e corais, que agora sabia ser horrível. Sabia também que as sereias, tais como as mulheres, tinham uma necessidade de protecção e de amor tão subconscientemente avassaladora que aceitariam a boa intenção demonstrada ao dar um presente acima de qualquer prenda específica. Aquelas algas não eram só um conjunto torto de cores mal escolhidas, eram a demonstração do meu amor incondicional. Mais ou menos. E da minha fidelidade. Muito relativa. Se começássemos a contar essa coisa da fidelidade só a partir das, sei lá, seis da tarde desse dia, talvez se pudesse dizer que estava mesmo a ser muito fiel à mãe do meu futuro filho. Ariel olhou para mim, depois para as algas, e depois para mim outra vez. Ficámos parados por momentos, à porta do quarto do Principado.

- Que coisa pavorosa – disse Ariel.

- Uau, isso foi carinhoso.

- São para mim?

- São.

- É que ainda por cima sou alérgica a essas coisas verdes que ai penduraste.

- A Lilith disse que eram as tua favoritas.

- A Lilith estava enganada.

“Aquela grandessíssima...”, pensei. Olhei para as flores, procurando uma última esperança de manter a conversação.

- Não conta ao menos a intenção?

Ariel aproximou-se de mim, arrancou as tais algas esverdeadas com a ponta dos dedos e pegou no resto do ramo ao colo.

- Conta – fez uma pausa - Ouve, não podes esperar grande coisa de mim, Smith. Conhecemo-nos há uns tempos, tivemos uma noite bem passada e bastante irresponsável, e é só. Tu não me conheces, eu não te conheço a ti. Tu tens uma bela razão para me conquistar com ramos de algas, eu uma bela razão para não querer nada contigo ou com este bebé... Isto – disse Ariel, agitando a mão entre ela e eu várias vezes seguidas – não pode ser forçado, nem tem grandes hipóteses de resultar. Só fazemos esta coisa de dormir no mesmo quarto porque Poseidon, o meu pai e teu patrão, é o governante cá do sitio e não há como escapar-lhe – houve outra pausa pausa. Ariel embalou o ramo de algas – mas obrigado pelo gesto.

Ariel virou-me as costas, entrou no quarto do Principado e deixou a porta aberta para eu entrar.

- Dormes no sofá – avisou.

***

- Sabes – disse Lilith, olhando pela janela e vendo os cardumes a passar ao longe – Eu tenho a certeza que se falar com umas pessoas que conheço sobre a Rose poderemos arranjar alguma forma de a encontrar.

O moço louro chamado Jack tirou os olhos do desenho de Rose pela primeira vez em duas horas. Sentou-se na cama. Ele e Lilith estavam no seu quarto, uma pequena divisão num dos corredores do Palácio dedicado aos visitantes.

- Farias isso por mim?

- Já que o incompetente do Smith não o faz, que ainda por cima é o trabalho dele... - Lilith virou os olhos azuis para Jack e sorriu – Sim. Acho que posso arranjar uma forma. Mas terias de me fazer um favor. Como uma espécie de troca-por-troca. Boa?

- Boa – disse Jack, virando outra vez os olhos para o retrato ao seu colo.

- Boa – repetiu Lilith. O seu sorriso assemelhava-se cada vez mais a uma lamina afiada.

***

Carlos Andrade, pescador de terceira geração, puxou as redes para dentro do barco com a prática de muitos anos a apanhar sardinhas. Boa noite tinha sido aquela, com mais de vinte quilos já enfiados nos baldes com gelo. A última amarra da noite tinha sido igualmente produtiva. Carlos sentiu as barbatanas de centenas de pequenos peixes amedrontados a tentarem fugir ao inevitável, as suas pequenas guelras abrindo-se e fechando-se em absoluto desespero. Uma das sardinhas, porem, era muito pesada, ocupava mais espaço, trazia consigo uma coisa qualquer esquisita amarrada ao dorso que dali a umas horas seria refeição.

- Mas que merda é esta? - perguntou Carlos Andrade, no estilo populista e de vocabulário abrutalhado que muitos problemas lhe trouxe quando andava na escola em pequeno. Com as mãos enormes e calejadas, rasgou um fecho forte de plástico e puxou um envelope razoavelmente seco, dadas as condições, e que cheirava a peixe. Estava endereçado a um gajo qualquer chamado Walt. Carlos Andrade rasgou o envelope, retirou a carta para a ler, e um vozeirão atrás de si perguntou-lhe se alguém lhe pagava para ver a paisagem. Carlos Andrade atirou as folhas de papel para o mar, despreocupado.

A água gelada diluiu primeiro a tinta negra, e as palavras que com ela tinham sido escritas; e só depois as folhas de transformaram numa papa que se misturou lentamente com a água. Ao meio dia do dia seguinte já não havia carta para ninguém.

***

Ariel levantou-se como uma doida irresponsável, e não teve problemas nenhuns em acordar-me com um grito. Saltei do sofá, abri os olhos.

- O que é?

A luz pálida da bioluminiscência que iluminava o Palácio entrava pela janela enorme do quarto, e projectava-se com todo o dramatismo sobre a cara aterrorizada de Ariel. Ela estava a tremer, e a olhar fixamente para um armário.

- Tive um pesadelo – disse ela – Sonhei com uma mulher gorda a comer uma sardinha.

- Ah – disse eu, esfregando os olhos, pensando que com certeza seria uma questão de sensibilidade de sereia, extremamente sensível ao sofrimento dos outros peixes.

- É daquelas coisas que acontecem – continuou ela – Como que a sugerirem-te um significado qualquer. Como se aquela sardinha significasse algo para mim.

- Como quando os escritores colocam uma personagem a ter um pesadelo, uma visão ou um pressentimento negativo para assim a relacionar com algo catastrófico e terrível que aconteceu noutro lugar e noutro espaço de tempo, de forma a manter a coerência na história e assim ligar dois episódios aparentemente aleatórios e impossíveis de relacionar? – perguntei eu, com toda a naturalidade.

- Sim – disse Ariel, sem tirar os olhos de um dos armários – Odeio quando eles fazem isso nos livros. Parece sempre tão...

- Facilitista – respondi – e é tratar o leitor com uma grande condescendência.

Ariel deitou-se outra vez, virou-se na cama e procurou adormecer. Eu deitei-me também no sofá, puxei os lençóis para cima das pernas e tentei a todo o custo evitar um torcicolo.


Todas as Terças e Quintas há novos episódios de Smith e as Sereias. Podem encontrar todos os episódios passados na etiqueta "smith e as sereias", presente no final de cada episódio ou no menu "Directo ao assunto" no início do blog. Em princípio o episódio da próxima Quinta feira será duplo, para celebrar os 10 primeiros episódios da série e porque me apetece.

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