domingo, 17 de outubro de 2010

Moda

Susana abriu os olhos. O despertador tocara com um leve e suave assobio, e a voz feminina anónima disse:

- Bom dia, Susana. São sete horas e trinta minutos.

Susana bocejou demoradamente e levantou-se da cama, afastando de cima das pernasos cobertores prateados reguladores de temperatura. A luz artificial acendeu-se.

- O pequeno almoço estará pronto em 15 minutos. A água do banho estará pronta em aproximadamente 30 segundos. 29. 28. Contagem a decorrer.

Susana ajeitou o cabelo e puxou-o para trás. Levantou-se e caminhou através do quarto, contornando a cama quadrada. Ali, todos os cantos eram curvos e as linhas suaves. Todo o mobiliário tinha linhas curvas, elegantes e suaves. Tudo era branco e neutro.

- Contagem a decorrer. 20.

Susana despiu o seu pijama de tecido sintético plastificado. Fora comprado numa loja do centro da cidade, e fora caro. Todas as mulheres da cidade tinham um. Era confortável, só por isso. Susana dobrou-o cuidadosamente em pousou-o em cima de uma cadeira branca, simples e curvilínea. Entrou no cubículo do chuveiro, que se fechou como a porta de uma nave voadora, daquelas que havia no centro da cidade. O cubículo tinha a forma de um ovo. O chuveiro verteu água quente sobre as costas de Susana, que mergulhou lá o cabelo. O vapor de água era ventilado suavemente.

- Susana, o pequeno almoço está pronto – disse a voz cristalina.

Susana saiu do chuveiro e vestiu um robe prateado, da mesma cor e tecido que o pijama. O seu corpo secou automaticamente. Foi até à cozinha. Uma torradeira em forma de ovo, branco e sem botões, cuspiu duas torradas amarelas e perfeitas. A manteiga não tinha gordura, e a faca era uma peça única, brilhante, afiada e simples. Susana comeu. Foi até ao quarto, e um dos cabides deslizou para fora do armário e pendurou um vestido branco mesmo à sua frente. Susana vestiu-o.

- Bom dia de trabalho, Susana – disse a voz. Susana saiu. As luzes artificiais desligaram-se lentamente depois da porta se fechar.

Na rua, o dia começara. A luz artificial caída do painel que cobria a cidade iluminava as ruas absolutamente limpas. Ecrãs cobriam parte dos prédios brancos, sem janelas, arredondados nos cantos, altos e cilíndricos. Outras mulheres com o mesmo penteado que Susana passavam por ela, atravessavam a rua, saiam e entravam nos prédios, conduziam ou estacionavam carros. Homens parecidos, todos com fatos brancos e chapéus de abas, misturavam-se pela multidão. Nos ecrãs até agora apagados, surgiu uma mensagem; e a mesma voz anónima do quarto de Susana soou pelos altifalantes, surgindo de todos os lados.

- Bom dia. As luzes marcam os 28 graus centígrados. A moda para hoje é: vermelho.

Todas as mulheres a andar pela rua pararam automaticamente, e olharam para o próprio pulso direito. Susana fez o mesmo, ao mesmo tempo que todas as outras. Tocou levemente sobre o seu relógio de pulso, e rodou um pequeno botão pelo menu de selecção de cores. Escolheu “vermelho” e tocou no relógio mais uma vez. Todas as mulheres à sua volta faziam o mesmo. Os seus vestidos alteraram-se. Como se uma lata de tinta fosse despejada lentamente sobre eles, todos passaram do mais neutro branco para o mais vivo vermelho. Susana repetiu o toque no relógio, mas o seu vestido permaneceu branco. Tocou outra vez no relógio, voltou a seleccionar a cor vermelha, e o vestido passou de branco a verde, depois a amarelo e depois a lilás, até regressar ao branco inicial. Por esta altura as mulheres e os homens à sua volta paravam para a observar. Uma gota de suor deslizava pela testa de Susana enquanto ela perdia a compostura e carregava no relógio com o polegar com violência. O vestido mudava ocasionalmente de cor, ora azul, ora vermelho só por uns segundos, ora laranja, ora branco.

- Desculpe – disse uma senhora, que se aproximou de Susana com cuidado, como se ela estivesse doente – Está tudo bem?

Susana, envergonhada, corou e sorriu apressadamente:

- Sim, é só o meu Alternador.. Deve estar avariado… - desculpava-se. A mulher que a abordou sorriu falsamente para ela, e afastou-se. Outras mulheres paravam de a observar e prosseguiam caminho, ignorando-a. Susana suava e tremia. Desistiu de tentar arranjar o relógio, pelo que regressou a casa.

- Bem vinda de volta, Susana. O seu alternador parece estar avariado. Deseja que contacte um técnico?

A voz feminina, saída das colunas no tecto. Susana voltou a tentar os botões e o seu vestido parecia um arco-íris com flutuações emocionais.

- Sim, por favor – pediu à voz. Tocaram à porta.

- Deseja que a porta seja aberta, Susana?

- Sim.

A porta deslizou suavemente para o lado e um homem vestido de branco entrou na sala de Susana.

- Bom dia, o meu nome é Jorge e sou o seu técnico para hoje. Qual parece ser o problema?

Susana agitou as mãos na direcção do vestido, que continuava a mudar de cor vezes e vezes sem conta. Sorriu envergonhada.

- Nada tema, Susana. Vamos já resolver o assunto.

O técnico aproximou-se de Susana e pediu-lhe autorização para agarrar no seu Alternador. Susana assentiu. O técnico inseriu códigos e algoritmos, fez uma reformatação temporária e investigou sobre possíveis sequelas no sistema. Terminou. O vestido de Susana cobriu-se de vermelho e assim ficou.

- Que alívio – disse ela – Muito obrigada. Quanto lhe devo?

- Susana, deseja fazer a transferência do montante em causa automaticamente?

O técnico encolheu os ombros. Susana disse:

- Claro, pode ser.

Susana saiu à rua, estava atrasada para o emprego. Atravessava a rua quando os ecrãs se iluminaram com enormes letras coloridas. ÚLTIMA HORA. Susana e todos os transeuntes pararam para ver. O noticiário mostrava uma mulher despenteada, no meio de uma rua, atirando o seu Alternador para o chão e gritando algo indefinido. O seu vestido era verde. Houve um murmúrio desconfortável. As viaturas abrandavam para ver. Susana engoliu em seco.

- Acontece muitas vezes – comentava alguém – Pessoas que pensam que podem definir o que é bom ou mau. Com a mania de rasgar com as convenções e ser rebeldes.

- É a juventude que temos – disse um homem de idade, vestido de vermelho.

- Ignorem-na, é com certeza uma louca. Olhem para aquele verde. Tonalidade horrenda – dizia uma mulher, vestida de vermelho.

O noticiário terminou, e a voz feminina encheu a rua.

- Boa tarde a todos. A cor da moda é: amarelo.

Susana e todos os transeuntes precipitaram-se para o seu alternador. Susana parou. À sua volta, fatos e vestidos ganhavam a cor amarela.

- O que faço? – perguntou.

Chamou um táxi com um aceno acelerado. Uma viatura parou à sua frente.

- Para onde?

- Para a rua 3 – disse Susana, sentando-se.

***

Na rua 3 estava uma pequena multidão à frente da mulher despenteada, que partira o Alternador. Alguém tinha chamado a polícia, e dois agentes conversavam calmamente com a mulher vestida de verde. Durante a viagem de táxi a moda tinha mudado outra vez, e toda a gente vestia lilás. Susana saiu do táxi, pagou, e correu a aproximar-se da confusão. Não reparou que levava ainda o vestido vermelho. As pessoas viravam a cabeça para olhar para ela.

- Olha outra – diziam alguns.

- Mas que se passa com as pessoas hoje em dia? – perguntava um homem de fato cor de laranja.

Susana aproximou-se da mulher de vestido verde, ofegante. A mulher olhou para ela e para o seu vestido vermelho e algo nos seus olhos se alterou. Foi como se brilhassem.

- O meu nome é Catarina – apresentou-se – Quer juntar-se a mim?

Susana viu-se subitamente o centro das atenções de toda a rua. Olhou em volta. Respirou fundo. Agarrou no Alternador, desapertou-o do pulso e atirou-o ao chão.

- Bonita cor, essa – disse Catarina com um sorriso aberto.

- Sempre gostei de vermelho – respondeu Susana.

- Como assim, sempre gostou? – perguntava um homem a um canto – Não saberá ela que aquela cor já não se usa?

Os ecrãs iluminaram-se outra vez. A voz feminina:

- Boa tarde a todos. A moda para este fim de tarde é: azul.

Susana com o seu vestido vermelho, Catarina com o seu vestido verde. À sua volta, a cidade inteira carregava nos botões e pintava-se de azul. Um rapaz novo, a alguns passos de Susana, permaneceu laranja.

- Homem, que está a fazer? – perguntou uma senhora de idade – Esqueceu-se de carregar no botão.

O rapaz novo aproximou-se de Susana e de Catarina. Agarrou no Alternador. Atirou-o ao chão.

- Que ódio a estes anarquistas – resmungava a senhora de idade.

- Quem são vocês para destruir a harmonia da nossa sociedade? – perguntava aos berros uma mulher ao fundo.

- Deixem-nos, são doentes – disse o mesmo homem de há bocado – Não saberão já que aquelas cores não se usam?

***

Duas horas depois. Susana e Catarina eram o centro de um grupo de cinquenta pessoas. No decorrer na tarde tinha surgido a ideia de adoptarem a cor verde, todos eles. A cor de Catarina, a primeira a rebelar-se. A cidade assistia em desacordo e escárnio à situação. Minuto e minuto, mais gente se juntava ao grupo. A moda era azul, e eles formavam uma pequena mancha verde no centro da rua.

Catarina estava a ser entrevistada para um canal de televisão. A jornalista perguntava-lhe o que era aquilo, para que servia tanta rebeldia.

- É uma questão de afirmação – explicou Catarina. Atrás de si, as pessoas de verde oscilavam a cabeça, diziam que sim – As cores instituídas vão contra aquilo que somos e gostamos. Queremos a liberdade de poder vestir o que nos apetecer.

Os ecrãs iluminaram-se. A voz feminina:

- Boa noite a todos. A moda para este serão é: verde.

Houve um silêncio profundo. A multidão carregou toda nos seus Alternadores, a rua ficou subitamente coberta de verde. Catarina empalideceu, Susana também. E agora, e agora? O rapaz novo, o terceiro do movimento, apanhou o Alternador que tinha no chão e carregou em alguns botões. O seu fato ficou amarelo. Catarina fez o mesmo. Susana pediu-lhe o Alternador emprestado. Uma pequena mancha de amarelo apareceu no centro da rua. Mais e mais gente se aproximava, recusando o verde, abraçando o amarelo.

Os ecrãs iluminaram-se. A voz feminina:

- Boa noite a todos. Pedimos desculpa pelo erro. A moda para este serão é: amarelo.

- A nova cor do nosso movimento é o lilás! – gritou Catarina, e à sua palavra os restantes membros do grupo compartilhavam Alternadores e mudavam a sua roupa para o lilás.

Mais e mais pessoas, uns cantando. Outros agitavam a roupa lilás no ar. Viva os lilases, viva os lilases.

Eram centenas, agora. Rua abaixo.

- Pela liberdade de escolha! – gritavam uns.

- Eu quero vestir as cores que eu quiser! – gritavam outros.

Trezentas pessoas, lutando pela sua personalidade, lutando pela sua individualidade. Trezentas individualidades, formando uma indistinta mancha lilás.

Os ecrãs iluminaram-se. NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA. As imagens transmitidas mostravam um homem vestido de preto, partindo o seu Alternador no meio da Rua 8. Catarina e Susana olharam, fascinadas, sem saber se a individualidade daquele era a mesma que a individualidade delas.

- E agora? – perguntou alguém – Como é?

- De preto! – gritou Catarina e Susana ao mesmo tempo. Todos os lilases carregaram nos botões, formaram uma mancha preta.

Trezentas pessoas, lutando pela sua individualidade.

Trezentas individualidades, formando uma indistinta mancha preta. Todas elas, desafiando o sistema instituído. Todas elas, desafiando quem lhes quer impor cores ou formas de pensar. Todas elas únicas e individuais. Todas elas. Juntas, numa mancha preta. Todas elas, expressando a sua individualidade numa massa disforme e homogénea.

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