quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 20

Previamente, em Smith e as Sereias, Poseidon decidiu finalmente aceitar a sua homossexualidade e seguir com a sua vidinha. Já não era sem tempo.


O salão de banquetes, onde se realizavam as refeições no palácio, foi decorado com enormes faixas dizendo A CORTE APOIA O REI POSEIDON, escritas em letras douradas e vermelhas. Castiçais gigantescos com frascos de plâncton bioluminiscente iluminavam as mesas enormes, cobertas por talheres talhados à mão a partir dos mais finos e resistentes corais sul-americanos. De um lado do salão, Sebastião presidia a uma comitiva impressionante de carapaus, atuns, sardinhas, peixes-espadas e outras criaturas marinhas, todas vestidas a rigor com fatos pretos e bandejas prateadas nas barbatanas. E às mesas sentaram-se todas as sereias da corte, incluindo Ariel, Lilith e, a seu lado, o moço louro e Smith (na sua cadeira de rodas).

Poseidon subiu a um pequeno púlpito, no cimo do salão. Olhou em volta. Silêncio puro.

- Meus queridos filhos sub-aquáticos – disse – Obrigado por esta maravilhosa festa. Acreditem que as vossas calorosas boas vindas não são despropositadas. Hoje celebram vós e celebro eu também a chegada de um Poseidon renascido. Um Poseidon novo. Este Poseidon é homossexual. Alguém tem algum problema com isso?

Silêncio total.

- Como sabem, uma dica anónima informou os jornais desta minha característica.

Smith corou bruscamente e tossiu.

- Mas o tempo para rancores terminou, e hoje encontro-me preparado para recomeçar a minha vida. É por isso que gostaria de vos apresentar o meu companheiro, que sempre me apoiou em todos os momentos. Por favor, saúdam Namor, o Príncipe Atlante.

Uma porta abriu-se, e Namor entrou no salão. Estava envergonhado. As sereias torceram os pescoços para o ver entrar, e o burburinho começou. Uma das sereias, uma rapariga de cabelo castanho e banha na barriga, falou mais alto que as outras:

- Eia granda bronca, é o ex-marido da Ariel!

- Shiu! – gritou outra sereia.

- Aquela gorda é uma desbocada – rosnou Lilith, servindo-se de mais vinho.

- Aquele é o teu ex-marido? – perguntou o moço louro a Ariel. Ariel disse que sim com a cabeça.

- E afinal – continuou o moço louro em voz baixa – vocês vão-se casar ou não? Tu e o Smith?

Smith e Ariel trocaram um olhar desconjuntado.

- O meu pai há me libertou de qualquer obrigação, por isso acho que não – disse Ariel.

- O que queres dizer é que não tens bem a certeza – cortou Smith, tomando a palavra – Mas não podes ignorar os bons tempos que passámos os dois quando estive doente.

- Tecnicamente ainda estás doente – comentou Lilith – Mas com melhor cara. Isso ainda te dói?

- De vez em quando.

- Smith, não tive oportunidade de te pedir desculpas – disse Lilith.

- De quê?

- De ter sido uma verdadeira sacana contigo. Aquela coisa de te ter aconselhado a dar umas algas verdes à Ariel. Eu sabia que ela era alérgica.

- Bem me quis parecer – comentou Ariel, mastigando um aperitivo.

- Mas foi tudo feito com a mais sincera e descontrolada obsessão amorosa – continuou Lilith – Que agora já me passou. Compreendo finalmente que tenho sérios problemas de controlo de emoções. E de libido.

- Não faz mal – disse Smith com um sorriso.

- Não, a sério – insistiu Lilith - toda aquela coisa de ter planeado a tua morte é coisa do passado. E aquilo de te ter agarrado na estufa e…

- Uau, este vinho está maravilhoso – quase gritou Smith. Ariel olhou-o de lado. Em cima do púlpito, Namor juntou-se a Poseidon.

- Eu sei, eu sei – disse o Rei dos Mares a todo o salão – Todas vós devem estar a perguntar-se porque é que me apaixonei pelo ex-marido da minha filha Ariel.

- Ah ah! – gritou a sereia com banha, triunfante – Eu disse!

- A verdade é que aconteceu por acaso, e o capítulo 3 do livro que estou a ler avisa-me que é importante não sentir a necessidade de me desculpar a torto e a direito – continuou Poseidon.

Houve uma salva de palmas. As sereias soltaram palavras de apoio. “É isso mesmo, pai!”, gritavam. A porta lateral abriu-se e o Profeta Salmão entrou no salão. Houve um silêncio brusco.

- Eia grande bronca! – gritou a sereia com banha, num timing perfeito. Alguém a mandou calar.

- Vejo que a consumação da heresia foi efectuada sem sequer esperarem por mim – resmungou o Salmão, aproximando-se do púlpito – Olhai bem para vós. Não sabeis o que disse a Pescada Santa sobre a homossexualidade?

- Que era proibida! – berrou a sereia com banha.

- Afinal quem é aquela? – perguntou Smith, apontando para a sereia gorda.

- E mesmo assim – continuou o Salmão, em voz alta – Aqui está o Rei dos Mares a pavonear-se com o seu herege amante homossexual, o qual com toda a certeza gosta de sodomizar!

- Profeta Salmão, com todo o respeito – disse Poseidon – faça o favor de não me ofender no meu próprio Palácio.

- Estás a pôr acendalhas no teu próprio grelhador, Poseidon! – berrou o Salmão, a começar a ficar vermelho – Nunca ouviste o ditado “Quem te persegue com as suas obsessões religiosas, teu amigo é?”

- Terei oportunidade de falar consigo sobre isto de manhã, Profeta – disse Poseidon – Agora por favor, eu gostaria de continuar o meu jantar com as minhas filhas.

O Profeta Salmão agitou as barbatanas e espalhou panfletos vermelhos pelas águas. Os panfletos espalharam-se como chuva de confetis.

- Deixo-vos com um pouco de decência e responsabilidade moral, minhas queridas sereias! E com desejos de vos voltar a ver na Igreja no próximo Domingo!

O Salmão virou-se de costas e correu porta fora, agitando-se com todo o dramatismo como uma senhora da alta sociedade que acabou de ser ofendida.

Smith agarrou num dos panfletos. Em enormes letras gordas, dizia JÁ TE ABSTIVESTE HOJE? UM GUIA PARA A VERDADEIRA PAZ (SEM SEXO).

- Uau! Tem bonecos ilustrativos! – gritou a sereia com banhas, lendo o folheto.

***

Retirado do jornal Diário Anémona,

ESCÂNDALO NO PALÁCIO

O Profeta Salmão foi violentamente banido do salão de banquetes do Palácio Real na noite passada, altura em que Poseidon, o orgulhoso governante gay, deu a conhecer a toda a Corte o seu amante homossexual, o ex- Príncipe Atlante Namor.

“Entrei no salão e fui imediatamente ameaçado com sodomizações várias” declarou o Profeta Salmão ao nosso enviado especial, “E foi com dificuldade que afastei as tentativas de sedução de pelo menos três atuns”. O Profeta descreve que Poseidon e Namor se beijaram em público, de língua, e que, obviamente, isso apresenta “um desrespeito à minha sensibilidade”.

O Profeta Salmão revelou ainda que se sente “revoltado”. “Se pensam que podem retirar-me o meu direito de orar e a venerar a Pescada com as suas carícias entre machos estão muito enganados”. O Profeta Salmão irá apresentar, portanto, uma queixa formal ao Tribunal Superior dos Oceanos. “A minha liberdade religiosa foi seriamente atacada pela presença de tanta homossexualidade”, confirmou o Profeta. “Não desistirei enquanto não puder decidir sobre a vida pessoal de todos aqueles que se atrevem a desafiar a minha noção de normalidade”

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