quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 24

Previamente, em Smith e as Sereias, o Profeta Salmão vai ao Império Atlante falar com o respectivo Rei, e vemos como os atlantes até têm uma boa razão para odiar Poseidon.


O Profeta Salmão e o Rei Atlante estavam de pé, lado a lado, observando uma gigantesca projecção holográfica comemorativa de um aniversário da destruição da Atlântida. À esquerda, uma reprodução de Poseidon, enorme, violento, mau e com um sorriso sádico, dominava o enquadramento. Cada um dos espigões do seu tridente atravessava o estômago de um inocente e sofredor bebé atlante; e, com o seu pé enorme, pisava a cabeça de uma mulher e de dois idosos. Uma onda gigante varria a cidade, arrastando também ela bebés que choravam e agitavam os bracinhos. As torres da cidade, ao fundo, caíam como peças de dominó.

- Esta foi a reprodução mais realista que conseguimos – declarou o Rei – de um dia de horrores inimagináveis. Poseidon destruiu a nossa cidade, humilhou-nos perante um mundo que rapidamente nos esqueceu, e foi o responsável pela queda do maior Império do planeta.

- E é homossexual, ainda por cima – completou o Profeta Salmão.

- Compreende agora o tamanho da minha humilhação? Serei gozado pelos meus inimigos políticos. O meu filho, príncipe do Império, na cama com o nosso maior inimigo!

- O meu caro Rei tem inimigos políticos?

- Qualquer grande governante os tem. São seres mesquinhos, que acreditam em ideais como a democracia ou a liberdade de pensamento. Veja bem que pensam ser capazes de pensar por eles mesmos!

- Ateus, portanto. E homossexuais.

- É importantíssimo restaurar a confiança dos atlantes na figura da autoridade, e nada melhor que basearmo-nos em falsa ou distorcida informação para assim levantar suspeitas, intolerâncias ou discussões em relação a quem pensa de forma diferente da nossa. O Profeta é religioso, saberá com certeza do que estou a falar.

- Meu Rei, ainda bem que se refere ao meu peixe. Vim aqui ao seu palácio exactamente para lhe oferecer os meus préstimos, assim como os da Pescada, na sua luta contra o deboche que ocorre no Palácio de Poseidon. Chega de vergonhas!

- E assim que humilhasse o meu filho e assim restaurasse a confiança e respeito dos atlantes por mim, poderia finalmente vingar-me do inimigo eterno do Império – reflectiu o Rei Atlante, olhando para cima. Na imagem holográfica, Poseidon abria e fechava a boca, mastigando os fémures de meninos inocentes.

- De acordo? – o Profeta Salmão estendeu a barbatana ao Rei.

- De acordo, meu caro – O Rei cumprimentou o Salmão com um aperto de mão-barbatana e sorriu maliciosamente.

- Curioso – acrescentou o Salmão – Lembrei-me agora mesmo que este momento já me tinha sido revelado anteriormente pela Pescada, numa grande visão cheia de luzes e música celestial. Sabe como é, premonições de profeta. E senti na altura que apertaria a mão a um grande rei, forte, corajoso, muito competente...

- Ora essa, meu caro!

- Não, não, juro-lhe pela Pescada! – houve uma pausa – E como tenciona derrubar Poseidon e a sua corte de sodomitas? A julgar por esta representação artística – o Salmão apontou para o holograma – Poseidon sabe defender-se e bem.

- Nada temas, profeta. Acontece que tenho certos contactos no interior do Palácio Real de Poseidon.

- Quem?

- Você.

- Ah, pois é.

- E mesmo que o meu caro Profeta falhe, por alguma razão, a sua missão de me trazer constantes e actualizadas informações sobre a corte inimiga, tenho um outro agente infiltrado que poderá com certeza fazer o trabalho sujo de que necessitarmos.

- Esta conversa está a tornar-se muito estereotipada, meu Rei.

- Hoje sinto-me um vilão de BD. Acontece-me, às vezes.

***

O Profeta Salmão subiu ao seu púlpito na Igreja do Palácio Real de Poseidon. A reunião com o Rei Atlante tinha corrido bem, e agora estava na altura de dar uma última oportunidade àquelas sereias depravadas. Se não as conseguisse convencer que o seu querido pai, a criatura que mais amavam no mundo, era na verdade um verme vergonhoso por se ter apaixonado por outro homem, então nunca o conseguiria e mais valia desistir. No entanto, não podia esquecer-se da importância da sua posição como Profeta Real: estava numa posição próxima o suficiente de Poseidon para lhe sacar informações importantes. E começava a pensar que seria uma boa aquisição para a sua igreja um daqueles projectores holográficos. Imaginava-se já, gordo e resoluto, gritando a palavra da Pescada enquanto uma projecção holográfica decorria atrás de si, mostrando figuras de pecadores nojentos a arder nas grelhas da perdição eterna. E tudo em tempo real, e com música a condizer!

- Bons dias, minhas filhas, e que a Pescada esteja convosco. Hoje… - O Profeta levantou os olhos. A Igreja estava praticamente vazia. Uma sereia morena e gorda estava na primeira fila, a coçar o interior de uma orelha. Mais meia dúzia de sereias tinha-se espalhado pelo resto dos bancos, sentada com a postura de quem está numa sala de espera há muitas horas.

- Hoje vou falar-vos sobre os ateus – disse o Salmão, erguendo a cabeça gorda – Os ateus são as pessoas que garantem a cem por cento e com todas as certezas do planeta que não só a Pescada não existe, como a Pescada é uma criatura vil e horrenda. São criaturas tristes, porque tiveram um forte trauma na infância e por isso ficaram zangados com Deus. Podem ter batido com a cabeça, ou viram o animal de estimação a ser atropelado. São pessoas que atribuem a Deus toda a culpa por tudo o que lhes acontece. Eles defendem que a Pescada não existe, e que isso é provado pela Teoria da Evolução. E que qualquer pessoa que seja religiosa é burra. Se virem um ateu na rua, não lhe falem, porque pode bater-vos. Perceberam?

O sermão estava a correr-lhe mal. A sereia gorda na primeira fila tinha adormecido, e estava a apenas alguns centímetros de deslizar pelo banco e cair de queixo no chão. As outras sereias pareciam estar a conversar, trocando risinhos.

- Afinal hoje vou falar-vos sobre a dissidência – cortou o Salmão, com frieza – E sobre onde vão parar as pessoas que não vêm à Igreja, ou que não tomam atenção ao que lhes digo.

- Grelhador! – gritou uma sereia ao fundo, se levantar a cabeça de um jogo de cartas.

- Perdão?

- Vamos parar ao Grelhador. Acertei?

- Acertou, minha filha, mas não é só i…

- Já podemos ir embora?

O Profeta suspirou.

- Deixo-vos só com alguns flyers sobre o novo Concurso Freira da Pescada deste ano – O Profeta Salmão pousou um pequeno maço de papelinhos em cima do banco à frente do pódio - Relembro que é uma oportunidade única para as jovens promíscuas como vós tentarem a vossa sorte num convento fechado, onde a vossa função será unicamente orar e servir a Pescada.

- Ou seja – resmungou outra sereia – já podemos ir embora.

***

- Pessoalmente – disse Namor – acho má ideia.

- Porquê? – perguntou Poseidon. Estava sentados lado a lado na sala do trono, a comer uns mexilhões peruanos como lanche.

- Despedires o Profeta parece demasiado severo. Pode enviar uma mensagem errada de intolerância religiosa. Além disso, perderíamos uma das personagens mais divertidas.

- E isso que te importará? O Salmão acha-nos um nojo. Não tenciono dar guarida a um fundamentalista. Ele é que é o intolerante, não sou eu.

- Bem visto, bem visto – reflectiu Namor – Mesmo assim…

- Tu no fundo gostas é de ouvir as suas loucuras. Acho que hoje o sermão era sobre a forma como a Pescada nos salva todos os dias de uma morte terrível.

- Ainda bem para nós – comentou Namor, com um sorriso.

E o Profeta não foi despedido.

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