quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 26

Previamente, em Smith e as Sereias: KABOOOM!


Smith acordou e abriu os olhos. A primeira coisa que viu, ao seu lado, foi um peixe desfalecido, aberto ao meio como que por um talhante com convulsões. Os seus interiores eram agora exteriores, espalhados pelo chão. Mais à frente, um atum tinha um pedaço de pedra espetado numa guelra, e pedia com gritos para alguém o acudir.

Smith tentou levantar-se, e por momentos pensou que, numa reviravolta irónica do destino, a sua quase cicatrizada ferida no ventre estaria hoje outra vez aberta com algum pedaço de madeira ou de pedra. Não estava. Smith olhou em volta, e percebeu que não estava a ouvir nada. Era como nos filmes. Um leve zumbido, lá muito ao fundo, era só. Mais peixes estendidos, sereias a nadar desgovernadas, pó e algas levantadas ocultando a identidade das figuras.

- Ariel! – gritou, sem saber bem porquê. Queria saber onde estava Ariel. Queria vê-la. A ela, completa, não às suas entranhas espalhadas e misturadas com os canapés e com o champagne entornado. Uma sombra moveu-se nas poeiras em suspensão.

- Smith – uma voz, a tossir.

- Ariel!

- Smith!

Agarraram-se. Smith olhou a figura de frente. Era Jack.

- Sou o Jack – disse ele.

- A Ariel? Onde está? – perguntou Smith.

- Smith? – uma voz, à esquerda.

- Ariel!

A figura negra aproximou-se e os seus contornos definiram-se. Era Lilith.

- Caramba – resmungou Smith – Onde está a Ariel?

- Também estou feliz por te ver vivo, obrigado – disse Lilith, sacudindo a poeira de cima da barbatana.

- Quero encontrar a Ariel. Ariel!

- Smith? – outra voz.

- Não é ela, com certeza – disse Jack.

À direita, a figura dona da voz aproximava-se. Era mesmo Ariel.

- Ariel! – gritou Smith.

Abraçaram-se.

- Estás bem?

- Torci a barbatana, com certeza – disse ela. Tinha vidros no cabelo e algumas feridas nos braços.

- O nosso pai? – perguntou Lilith.

- Ele está bem, estava a ajudar o Namor a levantar-se – respondeu Jack.

- Eu avisei. Foram os atlantes – disse Smith. Ariel olhou para ele seriamente. Sabia que tinha razão. O estranho não era a informação em si, nem a bomba; era Smith ter razão em alguma coisa.

A poeira começou a assentar. Figuras iam-se levantando. Alguns peixes soltavam choros, outros gritos histéricos de quem viu algum conhecido desfeito pela bomba. A poeira assentou mesmo. Todas as criaturas na sala olharam umas para as outras, e depois todas olharam para Poseidon. O Rei dos Mares estava de pé, agarrado a um pulso e com as pontas das barbas chamuscadas.

- Há que tratar dos feridos e enterrar os mortos – declarou, na sua voz profunda.

- Eu já ouvi isso em algum lado – comentou um salmão, historiador especialista em Desgraças em Contexto Marinho.

- Alguém me ajude! – gritou um carapau, esmagado entre duas tábuas.

- Ariel! Lilith! Reunam imediatamente a Junta Médica! – ordenou Poseidon.

- Até já – disse Ariel, nadando apressadamente atrás de Lilith. Smith viu-se sozinho ao lado de Jack, que baixou a cabeça.

- Que foi? – perguntou Smith.

***

Era óbvio, pensava eu, mas mesmo assim Smith insistiu e perguntou-me, “Que foi”? O que foi?

- O que foi é que a busca pela Rose vai ser com certeza cancelada – disse eu. Olhei em volta, à medida que a confusão se espalhava. Peixes nadavam de um lado para o outro, desesperados, sem saberem dos seus entes queridos. Peixes gordos procuravam as suas amantes mais novas, peixes gordas procuravam os seus maridos ainda mais gordos. Uma pescada, de peruca e boca decorada com um batom cor de rosa, chorava desconsoladamente. E agitava as barbatanas. E gritava, “Onde está o meu amor”?

A minha veia de artista sensível rebentou, e comecei também eu a chorar. Por pouco tinha escapado a uma bomba, semanas depois de ter sobrevivido a um naufrágio. E mesmo que as pessoas feitas parvas me perguntassem porque é que não tínhamos dividido a porta flutuante entre os dois, eu continuaria a responder: porque amo a Rose. E morreria por ela mais uma vez. E meter-me-ia num submarino tecnologicamente avançado com um monhé que cheira a loja de indianos só para a procurar. O submarino…

- Quê? – perguntou-me Smith, distraído pela confusão.

Exactamente. Distraído pela confusão. Como toda a gente.

Comecei a correr.

***

Lá ia ele, salão abaixo, a correr como um doido.

- Hei! Onde vais? – perguntei-lhe. Mas Jack não me ouviu. Acelerou, até. A mim pouco me importava, queria era procurar a Ariel e ver se precisava de ajuda.

“Caramba”, pensei. “Estou mesmo a ficar altruísta”.

***

- Foi trovoada – defendeu um tripulante.

- És parvo ou quê? – respondeu outro com maus modos – Trovoada debaixo de água? Isto foi uma flatulência de baleia.

- Ou uma explosão – disse um terceiro.

- Dentro de água? Uma explosão? És parvo ou quê? – disse o segundo tripulante.

- Isto é uma história de ficção. Nós, no fundo, também não existimos realmente – filosofou o primeiro tripulante.

- Tu és mazé parvo. É o que é.

Os três tripulantes do Nautilus estavam debruçados sobre uma das janelas do submarino, estacionado atrás do Palácio, tentando perceber o que tinha feito vibrar o solo aquático. Até ali, nenhuma pista. Foi aí que bateram à porta do submarino e um dos tripulantes torceu o pescoço para pesquisar quem era o visitante.

- Eia, parece aquele actor famoso…– disse ele, com o nariz colado no vidro.

- Um actor famoso, aqui debaixo de água – o tripulante com maus modos levou as mãos à testa – És mesmo parvo.

E parvo foi o outro tripulante que desceu ao porão do submarino para abrir a porta ao visitante, que atrás das costas escondia uma comprida espada dourada e, estampado na cara, um sorriso de menino bonito.

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