terça-feira, 30 de novembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 35

Previamente, em Smith e as Sereias, a viagem com o objectivo de localizar Rose e reunir certas individualidades para defender o Palácio está, finalmente, prestes a começar. Sim, as personagens vão finalmente sair da porcaria do Palácio, onde têm estado desde há mais de dois meses. Iei, certo?


O Nautilus tremeu, vibrou, fez uns barulhos metálicos ameaçadores e, como um gigante a roncar, afastou-se lentamente do leito de algas, terra e conchas que formava o terreno atrás do Palácio. O enorme submarino subiu, empurrando enormes quantidades de água para baixo e formando remoinhos temporários que agitaram todas as figuras da Corte, reunidas para se despedirem da expedição.

De dentro do Nautilus, Ariel e Lilith observavam o Palácio a diminuir-se como que por magia, à medida que se afastavam dele e as poeiras submarinas lhes toldavam as observações.

- Aqui vamos nós – murmurou Lilith. Ariel atravessou o pequeno quarto e começou a tirar a roupa da mala.

- Dormes no de cima ou no debaixo? – perguntou, apontando para o beliche.

- Como achas que está o Jack? Há uma hora que não o vimos…

- Eu fico no de cima, então – Ariel subiu para a cama superior e experimentou a almofada – Uau, esta cama é confortável. De certeza que não te importas de ficar por baixo?

- É que o Capitão pode estar a obrigá-lo a carregar com coisas. Ou a humilhá-lo. Ou a tentar matá-lo. As possibilidades são imensas – choramingou Lilith, abraçada a si própria como se estivesse com frio.

- Vais ter de te acalmar. O Capitão só quer um assistente pessoal, nada mais. Aliás, ele é um amigo pessoal do Pai. Achas que vai acontecer alguma desgraça aqui dentro?

***

Smith andava a explorar. De mãos nos bolsos, caminhar descontraído, ocasionais assobios, sentia uma inegável nostalgia. A vida de submarino não era assim tão diferente da sua longínqua vida de marujo num navio. A tripulação passava por ele sem o cumprimentar, correndo para os seus postos ou levando mensagens de um lado ao outro do submarino. Aquela correria era, para Smith, uma lembrança física dos bons tempos passados a dar voltas ao mundo. Por isso, estava feliz.

Passou pela biblioteca, um salão gigantesco coberto por livros. Original, não é? Passou pelo salão de refeições, com uma mesa compridíssima e, no topo, um cadeirão em forma de concha aberta que com certeza pertencia ao Capitão Nemo; pela escadaria, que fazia a ligação entre os vários andares do Nautilus. Demorou-se junto a uma planta de emergência, pendurada num corredor. Estava mais ou menos a meio do Nautilus, no 2 andar. O primeiro era o andar das máquinas e das cozinhas, o segundo onde estava a biblioteca, o salão de refeições, as salas de observação e controlo do submarino e os aposentos do Capitão; e o terceiro, estava exclusivamente dedicado às habituações da tripulação e dos convidados. Bocejou, entediado com todos aqueles minutos perdidos a obter informação sobre o submarino, e olhou para o enorme quadrado que representava, na planta, o escritório pessoal do Capitão Nemo; e perguntou-se se Jack estaria ali, a fazer favores ridículos ao Capitão que, era claro, o queria humilhar.

- Boas tardes – disse uma voz atrás de si. Smith virou-se, e por pouco não reconheceu o amigo. Jack tinha um chapéu em forma de algas, como uma peruca; ao pescoço trazia um colar, que a toda a volta segurava tentáculos compridos de polvos de várias cores. À cintura, uma bolsa de ferramentas. E nos pés, uns chinelos feitos a partir de uns desconfortáveis corais australianos.

- Pela saúde da Pescada – murmurou Smith, de boca aberta – Que fizeram contigo? Pareces o animador de um parque temático!

- Sinto-me lisonjeado – respondeu Jack com um sorriso sarcástico, encostando-se ao corrimão das escadarias – O Capitão obrigou-se a vestir esta farda. Diz que é tradição os seus assistentes se vestirem a rigor.

- A rigor não. Tu estás a ser humilhado!

- Não te esqueças, Smith, que há apenas alguns dias me barriquei neste mesmo submarino, ameaçando a vida dos tripulantes e a própria máquina, e que isso enfureceu o Capitão Nemo.

- Claro que não me esqueço, isso foi ainda no outro dia.

- Pronto, era só para o caso de estar alguém a assistir à nossa conversa e não perceber o porquê disto tudo – segurou os tentáculos que trazia ao pescoço e engoliu em seco.

- Espera só até a Lilith te ver.

- A Lilith não me pode ver assim – Jack parecia ter o orgulho ferido – Sinto-me ridículo.

- Cá para mim – reflectiu Smith – é neste preciso momento que a Lilith e a Ariel aparecem.

Lilith e Ariel apareceram, virando uma esquina. Deram com Jack vestido daquela maneira, e Ariel soltou uma gargalhada. Lilith, essa, parecia derrotada e à beira do choro.

- Jack… Que te fizeram…?

- Tenho de ir buscar um batido de algas-reais para o Capitão – disse ele, acelerando corredor abaixo e procurando a todo o custo esconder a peruca. Lilith correu atrás dele, obrigando-o a consolar-se com a sua companhia. Ariel aproximou-se de Smith, deu-lhe um beijo discreto mas sentido e apoiou-se no seu ombro, vendo Lilith desaparecer atrás de uma esquina.

- Isto é bárbaro! – resmungou Ariel, sorrindo abertamente – Pobre Jack…

- Não exageremos – respondeu Smith, segurando-lhe a mão – De tudo o que lhe podia acontecer de terrível isto é sem dúvida o mais suportável.

***

- Proponho – disse um dos tripulantes, fumando uma cigarrilha – que o obriguemos a correr todo nu pelo submarino.

- Eu proponho que lhe seja cortado o órgão. E não é um órgão qualquer. É especificamente o órgão.

- Eu cá – sugeriu outro tripulante – proponho que alguém o esventre imediatamente.

- Calma! – exclamou outro tripulante, o mais velho de todos, e a confusão à sua volta acalmou. A maioria da tripulação do Nautilus estava reunida (e apertada) numa sala minúscula, com um único candeeiro por cima das suas cabeças que oscilava como um pêndulo discreto e banhava todos os homens com uma luz directa e conspiratória – Há que planear uma vingança, sim. Mas deve ser cuidada. Deve ser maravilhosamente orquestrada de maneira a não levantar suspeitas.

- Foi o que eu disse – resmungou um tripulante com tatuagens nos braços – Alguém que o esventre imediatamente, mas à noitinha, para não se ver quem foi.

- É necessário calma… - pediu o tripulante mais velho pela segunda vez. Uma voz grossa levantou-se do outro lado da sala.

- Calma?

Todos os homens se viraram para ver de onde vinha a voz.

- Calma? – repetiu a voz grossa do tripulante com uma enorme cicatriz na bochecha, encostado a um canto da sala de braços cruzados – Vês a minha cara? Os belos traços, desfeitos por um louco! Achas que andar com uma peruca e com tentáculos pendurados ao pescoço é suficiente? Não. Tudo menos calma. A vingança chegará fria e selvagem. E não demorará. E serei eu a orquerestrár-la.

- Orquestrá-la – corrigiu o velho tripulante.

- Orquestár-li-a.

- Orquestrá-la.

- Serei eu a fazê-li-a, pronto – rosnou o da cicatriz - Percebido?

A tripulação caiu em silêncio, comovida pela forte determinação do colega.

- É fazê-la… – murmurou o tripulante mais velho, coçando a barba e olhando para os pés.

- Hádes de me corrigir outra vez a ver o que te acontece! – rosnou o tripulante de cicatriz, colocando um gordíssimo charuto na boca – Discutiâmos agora a melhor forma de nos vermos livres daquele principezinho.

***

Smith continuara o seu passeio e parara por momentos perto de uma porta pequena. Lá dentro, vozes. Muitas vozes. Uma delas não sabia conjugar verbos, mas todas pareciam concordar numa coisa: Jack merecia ser humilhado ou, se possível, esventrado com bastante energia.

Smith procurou afastar-se corredor fora. Iria avisar os amigos. Todos eles corriam perigo, especialmente as tripas de Jack. Começou a correr e, como é tradição neste tipo de situações, um tripulante que empurrava um carrinho de frutas virou uma esquina e colocou-se à frente de Smith. Voou ele, voaram limões, maçãs e bananas. Smith bateu com a cabeça em cima de uma melancia, e o estrondo fê-lo fechar os olhos para se proteger da fruta que caía em cima dele.

***

- Que foi isto? – perguntou o tripulante das tatuagens, levantando-se. A tripulação ergueu-se de um salto e precipitou-se para o corredor.

***

Smith levantou-se com dificuldade, limpando uma enorme laranja esmagada na camisa. Olhou para cima. Pelo menos vinte homenzarrões, enormes, olhavam-no desconfiadamente.

- Boa tarde a todos.

- O que estavas a fazer neste corredor? – perguntou o tripulante da cicatriz.

- Sinceramente? Nada de especial, vinha só passear e…

- Ele ouviu-nos, pá – resmungou outro tripulante.

- Juro que não. A sério. Juro que não ouvi absolutamente nada.

- Está bem, está – o tripulante da tatuagem olhou em volta, pensativo - Levem-no para dentro.


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