quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Smith e as Sereias - Fim

Num dos caixões, o corpo magro de um rapazinho louro, cujo aspecto de menino bonitinho e inocente estava violentado pela maquilhagem pesada e pelas bochechas chupadas.

Noutro dos caixões, uma sereia lindíssima, de longos e pálidos cabelos louros, com as pálpebras cerradas respeitosamente sobre dois enormes e sedutores olhos azuis.

Noutro dos caixões, uma outra sereia, também esta lindíssima, de ondulados cabelos ruivos que por alguma razão tinham perdido a sua cor viva. As suas mãos delicadas estavam colocadas confortavelmente sobre a sua barriga lisa, junto ao soutien feito com conchas lilases.

E no último dos caixões, um homem jovem, de cabelo castanho, faces simples e roupas ainda mais, conservando ainda um pequeno esgar sarcástico e matreiro nos músculos rígidos da boca.

O Autor entrou na pequena Igreja e observou a enorme Pescada de pedra, no topo do altar, e os quatro caixões colocados no centro, uns ao lado dos outros, abertos. À entrada da igreja estava um livro de visitas aberto e em branco, com uma Bic por estrear ao lado de um jarrão de corais. O Autor dobrou-se, agarrou na caneta, pensou no que escrever e desistiu. Pousou a caneta e caminhou até ao centro da sala.

O cheiro a mofo da Igreja misturava-se com o cheiro dos químicos que fluíam de dentro dos caixões, provavelmente responsáveis pela conservação dos corpos debaixo de água. E quem quer que tivesse tratado do funeral tinha feito um bom trabalho. Os corpos estavam bem concervados, realistas. Pareciam, vá lá, vivos. Como se tivessem existido até alguns segundos atrás e só agora mesmo, neste momento, tenham fechado os olhos.

O Autor dobrou-se e depositou junto aos caixões um enorme ramo de algas coloridas, colhidas nas estufas reais agora desertas e em ruínas. Por alguma razão aquele ramo de algas tinha sobrevivido, impávido e alerta, a toda a ruína que parecia agora cobrir o Palácio Real. Até a Igreja, observava o Autor, tinha buracos na parede, algas-daninhas a crescer aos cantos e um ou outro animal marinho a espreitar por entre fendas e buracos sujos. Era como se tudo à sua volta tivesse morrido, e também merecesse estar dentro de um caixão.

O Autor ficou de pé a olhar para os quatro caixões e o silêncio da situação incomodou-o. Subitamente aquele funeral parecia-lhe estúpido por ser desprovido de qualquer pessoa a chorar. Que chorasse ele, ao menos; mas não conseguia. Não era dado a esse tipo de emoções, se bem que já estivesse estado mais longe.

As causas daquelas mortes continuavam a ser um mistério, mas o Autor pesquisava por entre a sua memória à procura de qualquer referência. Talvez a culpa fosse sua, uma qualquer negligência da sua parte; ou um acidente de percurso, incalculável e impossível e prever.

Sentou-se pesadamente num dos bancos de madeira agora apodrecida, e colocou o queixo sobre as mãos. Ficaria por ali um pouco, a prestar o seu respeito aos mortos. Há que respeitá-los por aquilo que fizeram em vida.

Horas depois o Autor levantou-se do banco e olhou uma última vez para os quatro caixões. Não gosta de despedidas, especialmente se a pessoa de quem se despede não lhe pode responder com um “Até sempre”, ou “Não é preciso ficares assim”, ou ainda “São coisas que acontecem, faz parte da vida”.

O Autor sentiu-se inútil ali de pé. Deu um jeitinho no ramo de algas, que entretanto escorregara ligeiramente, e caminhou de mãos nos bolsos e cabeça baixa até à saída da Igreja, e daí para fora do Oceano.


Fim



Todas as Terças e Quartas nunca mais haverá episódios do Smith e as Sereias.

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