segunda-feira, 13 de junho de 2011

Frase Apropriada #1

 

Nova rubrica. As regras são simples: pego num livro qualquer, escolho uma página e uma frase totalmente aleatória e com ela começo a escrever uma história. Vamos ver no que dá a primeira experiência.

 

No trajecto para a casa de minha ex-mulher, a sede que eu tinha foi suplantada por atroz urgência urinária.

Chico Buarque, Estorvo

 

No trajecto para a casa de minha ex-mulher, a sede que eu tinha foi suplantada por atroz urgência urinária. Talvez fosse essa a consequência lógica da possibilidade muito real de a voltar a ver, depois de todos aqueles longos e sofridos dias. Lembro-me de pouco, muito pouco. Discutimos, disseram-se coisas, arremessaram-se objectos, umas verdades aqui e ali, uma ou outra mentira dita friamente, só para magoar o outro. Quando dei por mim acordei num sofá que não era o meu, e o meu amigo Carlos estendeu-me uma chávena de café e disse:

- Toma que bem precisas.

Contou-me que me apanhou bêbado e demente à sua porta, cantando Roberto Carlos e chorando o desaparecimento de Sofia. Urinei nas calças, como se tornara meu hábito sempre que me via em situações de aperto, e adormeci na banheira enquanto Carlos me tentava acordar com água fria.

- E depois?

- Depois arrastei-te para aqui, tirei-te as botas e ficaste a roncar até agora.

- Não trabalhas?

- Já fui e já voltei, são quatro e meia.

Liguei-lhe dez minutos depois e ninguém atendeu. Voltei a tentar e nada.

- Vou até lá.

Carlos impediu-me, aconselhou-me um pequeno almoço e um banho quente para acalmar. Depois sentámo-nos a conversar e procurei contar-lhe o pouco que recordava.

- Estavam bêbados?

- Nessa altura ainda não. Foi só depois de ela me falar do Outro.

- Noto aí uma maiúscula.

- Porque não é um outro qualquer, é o Outro. Um tipo enorme, musculado, que conheceu num ginásio. Sabe fazer sushi, trabalha como massagista, nos Verões vai para África construir escolas e pinta modelos nus. Um daqueles homens que desafiam o nosso género e lhe ultrapassam os estereótipos comuns. Disse-me que o sexo era incrível, que ficava sem fôlego e que com ele não precisava de fingir coisa nenhuma. Eu atirei-lhe um prato ao chão e comecei aos berros.

- Foste tu, portanto, o catalisador.

- Nada disso. Ela sugeriu tudo primeiro. Disse-me. Como foi? Ah, já me recordo. Disse-me, “O que sentia por ti desapareceu, André. Restam-me dores lombares de dormir na esquina da cama por causa dos teus pontapés. E as meias, André, as meias!”

- Quais meias?

- As que deixo sempre no chão da casa de banho. Contei-te? O Outro tem uma máquina de lavar de cinco velocidades.

Bebi o resto do café num trago.

- E que te resta?

- Resta-me ofendê-la mais um pouco – respondi, e recomecei a chorar.

Carlos foi um bom amigo, deixou-me lá ficar uns dias. Fomos sair na sexta-feira, conheci uma rapariga agradável. Era fotógrafa, e não parecia ter qualquer problema com o volume da minha barriga. Houve química. Trocámos números. Quando cheguei a casa tinha uma mensagem de Sofia no atendedor de chamadas. Dizia que queria o divórcio e que precisava que fosse lá a casa tirar a minha secretária de pinho. Era uma construção enorme, confortável, onde guardava os meus papéis. Ocupava o quarto do meio de uma ponta à outra, e o Outro queria com certeza instalar lá uma máquina para fazer batidos de proteínas.

A noitada anterior deu-me uma cede enorme. Bebi sete copos de água, olhei as horas. Carlos saira para trabalhar há minutos, o que significava que tinha a casa só para mim. Telefinei a Sofia, propondo um encontro em terreno neutro. A casa de Carlos. Ela disse-me que não, que lá fosse eu a casa porque já tinha metido as minhas camisas numa mala de viagem.

Fui. Quando lá cheguei o Outro abriu-me a porta, um negro absolutamente perfeito com uns lábios do tamanho de um bife e cara simpática. Nem parecia que estava a cumprimentar o gigante que me tinha roubado a mulher. Apertou-me a mão. Que dedos fenomenais! Reparei que tinha as unhas bem cortadas e limadas. Disse-me que Sofia estava à minha espera e lamentou o constrangimento.

Entrei na sala e o Outro, que se chamava Danilo, fechou a porta atrás de si para “nos deixar a sós”. Sofia estava a um canto, dando de regar às plantas e a fumar uma das suas cigarrilhas compridas.

- Como queres fazer com a secretária? – perguntou.

- Porque o trouxeste cá para casa assim à pressa? Nem assinámos nada, nada está definitivo.

Olhou-me com risota.

- Estou a ver se o teu cheiro a sovaco desaparece das toalhas de banho rapidamente. O Danilo tem um aroma exótico excelente, cheira a praia africana.

- De onde trouxeste todo esse sarcasmo, Sofia? Que nos aconteceu?

- Queres pedir-me desculpa?

- Desculpa? Trocaste-me por um negro lindíssimo!

- Com o qual nunca conseguirás competir. Contei-te que ele me leva ao céu cinco vezes ao dia?

- Por isso mesmo, não me estás a dar a mínima hipótese de redenção.

- André… - caminhou até mim, depois de pousar cuidadosamente o regador em cima de uma mesinha – Tu és realmente um pequeno rato amestrado. Olha para ti, com a profunda necessidade de me pedires desculpa por eu te ter traído com um homem perfeito. Dás-me pena!

- Querem tomar alguma coisa? – perguntou Danilo, enfiando a cabeça pela porta.

- Uma água tónica, por favor – disse Sofia, enviando pelo ar um beijo piroso. Danilo sorriu-lhe e assentiu. Que dentes branquíssimos!

- Se me dou a esta humilhação é porque te amo e porque desejo voltar, Sofia. Dá-me uma oportunidade.

- Dei-tas todas – espetou a cigarrilha no cinzeiro e preparou-se para acender outra – Mais do que uma vez, até. Agora chega. Nem é pela questão da traição, isso é o mesmo. Traí-te tantas vezes e tu não deste conta. Agora é pessoal. Agora sou eu que não te quero ver mais, e que te considero miserável. Compreendes?

Compreendia. Até eu partilhava daqueles sentimentos para comigo mesmo. Danilo chegou com uma água tónica fresquíssima, preparada num copo com gelo e limão. Beijaram-se longa e sensualmente, e as mãos de Danilo pareciam as de uma estátua de madeira negra à volta das nádegas de Sofia. Quase cabiam dentro do punho fechado dele. Que construção fantástica! Daria um óptimo modelo fotográfico.

Vim-me embora cabisbaixo, com pouca vontade de ligar à fotógrafa simpática da noite anterior. Estava já a descer as escadas quando Danilo que fez parar com um aceno e um sorriso. Queria ajudar-me a levar a secretária de pinho para baixo.

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