domingo, 31 de julho de 2011

Samora 33


- Contei-lhe que sou estéril? – perguntou-me duas semanas depois, com enorme descontracção.
- Nunca.
- É verdade – observava o exterior da casa pela janela – Aos trinta anos fiz uma vasectomia, ou como prefiro chamar-lhe, uma redundância. Ah ah! – uma das suas gargalhadas secas e sinceras, depois uma pausa longa – Sara nunca quis ter filhos, de qualquer forma. Disse-me um dia, Não quero ter filhos nunca. Perguntei-me se era algo pessoal, e ela respondeu, Não é pessoal contra ti, é pessoal contra mim. Ficámo-nos por ali. Eu fui fazer uma vasectomia no dia seguinte.
- Mas era estéril.
- Daí a redundância. Não me chegava não ter filhos uma vez, tinha de não tê-los uma segunda.
Hoje penso que, caso aquele estranho episódio da vasectomia fosse verdade, tratara-se apenas de mais uma manobra de auto-controlo por parte de Samora. A sua castração, voluntária, suplantava a esterilidade biológica, involuntária e irreversível. A decisão final era sua, mesmo que a Natureza já tivesse decidido por ele antes. Samora precisava de ter sempre a última palavra, sobre o mundo, sobre o seu corpo. Controlo total. Nenhum tipo de imprevisibilidade. 

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A minha felicidade é maior que a tua


“Vida sem limites” é a comovente auto-biografia de um indivíduo que nasceu sem os dois braços e as duas pernas. É uma personalidade querida, até porque quando olhamos para ele a nossa compaixão é logo despertada; mas a sua mensagem é asquerosa. Nas suas palestras, no seu livro, e nos vídeos no YouTube que por vezes circulam via e-mail, o seu lema é claro: “Se eu consigo ser feliz, porque é que tu não consegues?”.
O que à primeira vista pode parecer lógico; mas a meu ver, a resposta à pergunta não deve ser “Tens razão; afinal, um gajo sem braços e sem pernas lá saberá o que significa ser infeliz”. Deve antes ser: “Quem és tu para me dizer se devo ou não estar feliz?”.
É uma espécie de chantagem emocional por comparação. Se um tipo sem membros consegue ter uma vida estável, garantida pela forma como explora a própria desgraça, congratulo-o; mas é pena que toda a gente que o ouve e nele busque inspiração não perceba que a falta de membros não faz de alguém uma autoridade sobre o tema. Podias utilizar o mesmo tipo de lógica nele próprio: Se há meninos em África que nascem com SIDA, sem ter que comer, sem pais e sem lugar para viver a sua curta e agonizante existência, porque raio é que tu, a quem só te faltam os braços, não poderias ser feliz?
A comparação é exagerada? De que forma? A premissa do livro do senhor sem membros é toda ela uma variação de “Eu tenho razões para ser infeliz; tu não podes com certeza estar numa situação pior; ergo, eu tenho autoridade para te dizer que devias ser feliz”. Estimular as pessoas a serem felizes por comparação com um indivíduo deficiente é moralmente recriminatório; e parte do princípio (a meu ver, errado) de que se uma pessoa tiver dois braços e duas pernas deveria sentir-se quase culpada por não ser feliz quando um tipo sem membros consegue sê-lo.
Num dos vídeos disponíveis na Internet, o senhor sem membros repete a conhecidíssima ladainha: “Se caírem, é importante tentar levantar-se; porque quanto mais vezes tentarem, mais possibilidades têm de se conseguir levantar!”. O que é uma evidência estatística, facilmente percepcionada por qualquer pessoa com capacidades cognitivas comuns, torna-se numa palavra inspiradora e moralizante quando saída da boca de um tipo cuja única característica especial parece ser a falta de pernas e braços.
Casos são casos; mas tornou-se tradição criar comparações entre situações incomparáveis. Como pode qualquer pessoa ser infeliz no mundo Ocidental quando há malta a morrer na Somália? Isso significa que o sentimento de infelicidade de um ocidental deve ser como que anulado, ou perder parte da sua razão de ser, só porque há gente pior que nós? Comparar algo tão estupidamente subjectivo como a felicidade entre as pessoas em diferentes contextos é ridículo. Não vejo os refugiados afegãos ou as vítimas de terramotos violentos lucrarem com a sua própria desgraça como o senhor sem membros; talvez essa fosse uma boa forma de ficarem mais felizes…

Samora 32


Atrevi-me um dia a perguntar a Sara porque trabalhara num bordel.
- Factos da vida – respondeu-me – uma rapariga precisa de dinheiro, e essa rapariga desapontou os pais. Fechou a torneira. Há que ir buscá-lo a algum lado.
- Nunca te sentiste…?
- Nunca senti nada. Fazia sexo com aqueles homens odiosos mas pensava no dinheiro. Sou o estereótipo da prostituta sem escrúpulos, da mulher que vende o corpo para comprar mobília, da jovem desflorada por tuta e meia num beco escuro. Ainda me queres?
- Se quero.
Sara sorriu, como aliás sorria sempre. Não era um sorriso satisfeito ou feliz, apenas um sorriso. Uma confirmação. Agora estava do outro lado da barricada, do lado de quem é cliente, do lado de quem recebe o serviço e nem sequer a troco de dinheiro. Os nossos encontros eram repetidos com a frequência que as ausências de Samora da cidade nos permitiam, e com certeza que Sara teria outros encontros com outros homens noutras ocasiões. Sobre isso não queria pensar, até porque tinha a certeza que era minha e só minha. Quando a via com Samora, era minha e só minha.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Cento e quatro

A melhor coisa na vida sou eu. Se não existisse eu não existiria, e todas as outras coisas seriam inexperienciáveis; palavra que, avisa-me o corrector automático, não existe. E tanta falta me faz, para descrever a minha própria importância na minha própria história. Não me achem egocêntrico; não o sou. É apenas uma evidência, parece-me. Sem mim não existiria nada além de mim. Não que seja um desses solipsistas; o que quero dizer é que sem mim, eu não teria o prazer de apreciar todas as outras coisas da vida, o que por definição faz com que a melhor coisa da vida seja aquilo que me permite viver todas as outras, em contraste com uma vida que é não vida, uma ausência de existência! E a razão por que todos não pensam assim e dizem “A melhor coisa da vida é o amor” ou “A melhor coisa da vida são os iogurtes”, o que quer que seja, é-me impossível de compreender; estão a ser desonestos convosco próprios. Sem vocês mesmos, não sentiam nem o amor nem o iogurte. Nem nada! Estão a ver? Estão; e mesmo que não estejam, nunca o poderia ver se não existissem. Que outra coisa pode fazer-nos valorizar mais a vida senão compreendermos que sem ela não poderíamos viver todas as outras coisas?
 

Toda a História da Cultura e da Arte (pelo menos do ponto de vista elitista, europeu e altamente selectivo do programa de História e Cultura das Artes)

Primeira Arte que importa: os gregos. Esqueçam os milhares de anos antes, estes é que são importantes porque souberam construir templos. Equilíbrio, harmonia, o Homem e os Deuses, Fídias e o século de Péricles que durou trinta anos. Depois os Romanos: é a arte grega só que com arcos, nomes diferentes para os deuses e os frescos de Pompeia que só apareceram séculos depois (e por causa) do Vesúvio. Organizados, imperialistas, bons a fazer pontes. O século de Octávio, que durou algumas décadas. Chegam os Bárbaros: olá, tudo bem? Resposta: Cristianismo é oficial, rapazes. Guerra para ali, guerra para acolá, a civilização perfeita é destronada por tipos de vieram do Norte e usavam barba grossa. Guerras, guerras, guerras, guerras. Os monges fecham-se em mosteiros, aprendem a ilustrar, perdem horas só na primeira letra de cada página e são os únicos que sabem ler. A malta recorre à catedral para se animar da vida difícil, onde os educam sobre os benefícios do homem da barba com uma amêndoa na cabeça. Olhem o relevo, olhem o capitel, olhem que catedral grande e linda. Deus é grande! Mas o Carlos Magno é maior. Alguma paz europeia, vem o feudalismo, nascem esses malandros dos burgueses que são artesãos, mercadores, e banqueiros. Nha nha nha nha nha nhaaaa, a minha catedral é mais alta que a tua! Tem mais agulhas, e contrafortes mais bicudos, e vitrais com mais meninos a serem abençoados pelos trezentos santos que vamos produzindo por dia. Sabem que mais? Isto diz Lutero: Eu acho que essa coisa do catolicismo não me agrada. Levar dinheiro em troca do paraíso? Deus é de todos, é pessoal. Pimba, papel na porta da Igreja. Barulho, confusão, os bispos e os Papas a correr de um lado para o outro. E agora? Enquanto esses tipos em Florença andam a reler os Antigos, a fazer homens nus, a estudar a perspectiva e a desenhar decentemente a figura humana, nós vamos solucionar tudo na paz do Senhor: Primeira, Index. Segunda, Inquisição. Terceira, orçamento ilimitado para reconstruir Roma. Sim, é a melhor cidade do mundo e já está apinhada de monumentos; e depois? Mais uma praça: Bernini! Esse não é o da Santa Teresa a ter um orgasm… Sim, e qual é o problema? Temos de conquistar pelas emoções e não pela razão, pelo êxtase e não pelas explicações científicas! A propósito, esse louco do Galileu já pediu desculpas? Segue-se quem? Um século de tédio até que um Rei de peruca pensa: Eia, gostava de ter um Palácio. O Palácio é meu, e o Estado sou eu. Lá o constrói, coisa enorme, reúne lá a corte toda que lhe beija os pezinhos, e entretanto vem Voltaire e Locke e Rousseau dizer: Er, não está já na altura de rever como tratamos o povinho? Acende-se uma luz, enquanto dentro dos salões a malta decora os armários com bibelôs; e só lhe chamam Rococó porque a piroseira da decoração precisava de um nome à altura. Morre um Luís, seguem-se outros dois; e é sobre o pescoço do dezasseis que cai a guilhotina. Abrem-se as portas da Bastilha: é a Revolução! Chega o Neoclássico, arte bem iluminada: Equilíbrio, harmonia, austeridade, os edifícios são úteis ao povo. O carvão, o caminho de ferro, a máquina a vapor: meus caros, querem emprego? Então toca a descer à mina. Bem vindos à idade romântica, onde os artistas se sentam a ver o mar e choram como meninos. Resposta? Realismo, o retrato da época, as senhoras de rabo para o ar a apanhar verduras secas. Resposta? Pinceladas curtas e rápidas que ofenderam meio mundo e impressionaram o restante. Entretanto morre gente à conta das novas tecnologias: vivam os caminhos de ferro, a Torre Eiffel, a modernidade! O van Gogh corta a orelha, o Cézanne geometriza, o Gauguin vai para o Taiti. Rodin sabe esculpir bem para caraças, pá! E a propósito, já viram aquele inglês que vende aquele papel de parede cheio de mariquices? Vira o século e toca o mesmo: mais coisas novas a acontecer, uma atrás da outra, a maior parte ao mesmo tempo em atropelo. Fauvistas e a mania da cor, o Kandinsky abstrai-se, os Dadá e o urinol, Picasso e os bonecos que “até a minha filha fazia”, o Futurismo com a mania da pancada e do excesso de velocidade, o Malevitch que é preguiçoso, o Mondrian que só tinha uma régua e três lápis de cor, o Dalí e os relógios, o Rivera e os murais, o Pollock e as telas no chão, os informalistas que não sabiam desenhar, a casa na cascata ou a cascata na casa, a escola revolucionária com candeeiros bonitos, a forma e a função, os cinco pontos da arquitectura e o estilo que de tão internacional que foi tornou as casas todas feias e iguais. Um gajo dá por ela e estamos na actualidade, o Homem já foi à Lua, já voltou e ainda não conseguiu lá voltar, o muro caiu, a Internet e a nova geração, e os artistas gostam demasiado da Coca cola, penduram coisas por arames, tornam tudo hiper-realista, ou cobrem prédios com cortinados, ou minimalizam-se, ou tornam tudo tão conceptual que já ninguém percebe nada de nada. E os gregos, onde já lá vão… A seguir? Não sei.

Samora 31

Samora fazia a barba todos os dias de manhã. Primeiro o lado direito da cara, junto à patilha finamente ajustada, depois descia pela bochecha até junto ao queixo e parava. Ia ao outro lado, à patilha esquerda, descia até ao queixo e parava. Depois o pescoço, de baixo para cima, no sentido contrário ao do crescimento dos pêlos.
- Não chegava ceifá-los, tinha de os contrariar – brincava – Já me conhece.
Depois do pescoço o bigode, no sentido descendente, com cuidado para não cortar o lábio; e só depois a pêra, que procurava tornar o mais suave possível.
- Sara odeia pêlos faciais de qualquer espécie – explicava com seriedade – Além disso, a barba é para os fundamentalistas de esquerda e para as pessoas que não se lavam. Não sou nem um nem outro. Ergo, barba feita. Passe-me o óleo balsâmico.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Duzentos e dezasseis


Bem, aqui estamos.
A última árvore de pé na floresta.
Até os insectos me abandonam com a desculpa de que ficaram sem ecossistema sustentável, e outras baboseiras ambientalistas.
Onde estão os tipos verdes para se amarrar ao meu tronco?
E, a propósito… Onde está a escavadora ou a serra que me vai ceifar a vida e arrancar as minhas raízes da terra?
As minhas colegas caíram todas, levadas pela fúria capitalista de algum magnata da construção. Ou se calhar foi para fazer papel. Viva a revolução digital!
O vento está calmo, hoje… Não me lembro de o sentir assim. Tinha sempre outros troncos maiores que eu à minha volta. Era, aliás, motivo de chacota por parte das outras árvores. “Uh, vê lá se te ramificas!”, “Cuidado, não pisem o arbusto!”. Agitavam-se ao vento, todas contentes, elas que lá na orla faziam uma fotossíntese maravilhosa e eficiente. Cá em baixo, reduzida, buscava dióxido de carbono e vertia oxigénio de vez em quando. Já que vivo no pulmão do planeta tenho de fazer pela vida alheia.
Sendo assim, bem vistas as coisas, estou feliz. As árvores maiores foram todas à vida; apesar de “ir à vida” ser uma expressão extremamente paradoxal. Como podem morrer e ir à vida ao mesmo tempo? Haverá vida após a morte para nós árvores e plantas, que segundo todas as teologias e visões filosóficas nem alma nem dores temos? Somos, inclusive, abaixo de animais. E pensar que um bode tem, na hierarquia do mundo, mais direitos do que eu!
Elas vão-se. Cortadas. Ouvi-as choramingar, os seus raminhos em queda agitando-se em pânico perante a força apoteótica da serra eléctrica e dos gritos dos trabalhadores empilhando troncos. Não sei disso porque sou uma árvore e nunca saí do meu canto da floresta: mas o espectáculo é em todo semelhante ao extermínio dos judeus, amontoados como troncos de árvores secos numa poça de lama. Se tivermos em conta a Vida como valor uno, onde está verdadeiramente a diferença?
Sabe-se lá para onde irei, se é que irei. Onde estão os homens para me cortar? Ninguém me tenta salvar, mas também ninguém me tenta mandar abaixo… Serei assim tão insignificante?
As outras foram-se todas mas fiquei eu, sozinha. Sinto-me solitária e melodramática. Onde está o sentido da vida?
Haverá, sequer? Como posso buscá-lo se não tenho o luxo das pernas ou das asas?
Um pássaro poisa num dos meus ramos, olha-me desconfiado, bica-me procurando insectos, não pára para fazer ninho e esvoaça para longe. Vai à procura de uma floresta de pé.
 
http://creativewritingprompts.com/

domingo, 24 de julho de 2011

Consultório do Dr. Augusto Millay 3


Caro Dr., depois de ler a sua crónica “A Intuição de Jesus, Buda e Krishna Aplicada ao Universo Emocional Moderno” , fiquei com uma dúvida: o que é, realmente, a intuição? E porque é importante?
Manuela Gamacho, Vila Viçosa
A intuição é a parte mais importante do nosso Eu Imaterial, porque é com ela que comunicamos com o Universo material. Com certeza já sentiu, à beira de um precipício, uma vontade de recuar; ou, quando confrontada com uma noite escura, receio de sair à rua! Todos estes são mecanismos que o nosso Eu Imaterial tem de nos avisar dos perigos que o Material apresenta para a nossa vida. Costumo contar a seguinte história: Um dia, o cunhado de um amigo de um primo meu foi até ao Jardim Zoológico e aproximou-se da jaula dos leões. Fascinado, dobrou-se sobre a cerca metálica e quase se desequilibrou. Mais tarde, reposto do susto, chegou à mesma conclusão que eu já tinha chegado depois de vários anos de Buscas Quânticas pelo Invisível: a intuição foi a Força que o levou a não cair para dentro da jaula do leão, porque as Energias Universais disseram-lhe ao ouvido: “Se caíres, vais ser comido!”. É assim que o Cosmos nos salva todos os dias a vida sem sequer nos darmos conta da sua óbvia presença! Se quiser desenvolver este tema com maior Profundidade Cósmica, aconselho-lhe a visualização da minha palestra “Tu Sabes Que O Universo Te Quer Bem”, disponível em qualquer superfície comercial especialista em Ciências Contemporâneas.
 
O Dr. Augusto Millay continua disponível para responder às perguntas que os leitores queiram deixar na secção de Comentários.

A definição de redundância


Duas videntes foram acusadas de burla.


Pergunto-me qual será a diferença entre estas e todas as outras videntes. Suponho que a Polícia Judiciária concluiu que, enquanto todas as outras videntes do país têm mesmo poderes sobrenaturais e levam dinheiro às pessoas de forma legítima, estas duas era simplesmente fraudulentas; gostaria era de saber qual a metodologia utilizada. 

Para terminar, porque vem a propósito: qual será, afinal, a importância do espírito crítico na sociedade contemporânea? Nenhuma, está claro. Absolutamente nenhuma. 

Samora 30

Gomez escolhia as pessoas intuitivamente. Dizia que usava os olhos da alma, porque a alma é a coisa imaterial que nos permite entrar nos outros e ver-lhes o que pensam. Com os olhos físicos tiramos informações genéricas, o que vestem, o que comem, como se mexem, para onde desviam a sua atenção, mas é com a alma que é feita a triagem e se separa o trigo do joio, o importante do desnecessário.
- Vou na rua e olho em frente e penso, quem será aquele? – contou-me um dia – Saiu do médico? Vai apanhar o metropolitano? Um táxi? Já reparaste que a rua não é lugar de estar, é só para passar? As pessoas chegam e vão-se rapidamente, e o meu olho da alma busca-as, encontra-as e eu tiro uma fotografia. Só uma. Como sair, saiu. Gosto de pensar que fico com uma parte de cada pessoa, porque também somos a nossa imagem e a imagem que atiramos ao mundo. Se não formos isso seremos outra coisa no nosso interior, que não dá para ver nem analisar e que por isso não serve para nada.
- Então e o olho da alma?
- É um instrumento de intuição. É aquilo que nos faz sentir as coisas como as sentimos. Quando vemos uma mulher bonita e temos certas vontades, ou quando vemos um homem num descapotável e sentimos inveja. Tudo vem da alma.
- A alma – resmungou Samora do outro lado da sala, interrompendo a conversa sem tirar os olhos de um volume sobre poesia medieval – é um programa informático biológico. A ele damos a importância que damos, e ao invés de o usarmos perdemos tempo em dissertações sobre como ligá-lo ao Universo e aos Outros com maiúscula e tudo o mais. Mas esquecemo-nos do essencial – apontou para uma das têmporas e olhou-nos com aquele seu desprezo muito particular que dedicava aos ingénuos – Somos matéria. É o que fazemos com ela que importa, e não o que ela faz connosco.

Dezassete

O meu sítio ideal terá mulheres nuas de várias nacionalidades e cerveja. Aliás, uma fonte de cerveja. Uma fonte de cerveja e as mulheres nuas de várias nacionalidades. Essas mulheres bebem cerveja mas tomam banho nela também. E dão banho umas às outras, e cerveja também, à boquinha. E molham os pés e as pernas e os braços e o cabelo. Mas assim o cabelo fica peganhento. Não importa; no meu sítio ideal, não haverá coisas peganhentas. As mulheres nuas tomam banho em cerveja mas não ficam peganhentas. Especialmente quando vou lá dar-lhes festinhas. Elas bebem cerveja aos potes mas não ficam bêbedas. Senão não dava jeito. Com elas bêbedas podiam tropeças e cair umas em cima das outras. Talvez até haveria lesões. No entanto… Se elas pudessem cair e tropeçar umas nas outras, isso seria esteticamente interessante. No meu sítio ideal estará sempre pôr-do-sol. O sol a pôr-se fica bonito quando reflectivo na pele bronzeada e dourada pela cerveja de uma mulher nua e bebida; especialmente se essa mulher nua estiver em cima de outra, e essa em cima de uma terceira, ad infinitum. No meu sítio ideal, a fonte de cerveja é infinita para cima e para baixo e para os lados; e as mulheres nuas também. Sobrepõem-se com a magia de uma sequência bem alinhada de fatias douradas ao sol. E onde entro eu? No meu sítio ideal terei um cadeirão almofadado, e as mulheres desfilarão à minha frente, despidas e embriagadas e sobrepostas umas em cima das outras: desta forma, e por serem infinitas, tenho sempre mulheres nuas diferentes à frente. E caso me aborreça… No meu sítio ideal, o meu cadeirão almofadado terá um motor e duas asas, e um comando que posso manejar para me conduzir confortavelmente a qualquer ponto da infinidade da fonte e a qualquer mulher. Não se sabe se uma ou outra poderão chamar-me mais a atenção. E depois que fazer com elas? Parece-me que procurar retirá-las da confusão de corpos sobrepostos e encharcados em cerveja será uma pena; apesar de, sendo infinitas mulheres, mais uma, menos uma, que diferença faz? Outro problema: retiro uma que me agrada do molho, e depois que faço com ela? Pergunto-lhe o seu nome? O seu signo? A sua cor favorita? Talvez lhe diga que gosto de gatos, e cachorros, e de crianças pequeninas. Mas com respeito; abusar dela seria machista da minha parte.

Dezoito

Quando bateram à porta não queria acreditar no meu azar. Além de estar extremamente cansado e semi nu, porque saíra do banho havia uns minutos, a pessoa do outro lado da porta era o ser humano que mais desprezava no planeta: o meu pai.
- Oi? – berrava – Ó de casa!
- Quem é? – perguntei, tentando ganhar tempo.
- Como, quem é? Não me conheces?
- Dica da Semana? – tentei ganhar mais tempo.
- Abre isto – rosnou o meu pai, esmurrando a porta.
Abri.
- O que estás a fazer semi nu?
- Acabei de sair do banho.
O meu pai ultrapassou-me e foi sentar-se no sofá da sala. Colocou os sapatos sobre a mesinha de vidro. Olhou em volta.
- Vais vestir-te e oferecer-me um café?
- A que devo o prazer da sua visita? – perguntei, pingando para o chão.
- Preciso de um café, primeiro que tudo. Tens ou não?
Apontei na direcção da cozinha.
- Sirva-se.
Estava a vestir-me no quarto:
- Onde guardas as canecas?
- No armário – gritei.
- Qual?
- Por cima do lava loiça.
Um armário a abrir-se.
- Qual? – berrou o meu pai.
- Só há um! – berrei também.
Outro armário a abrir-se. Uma caneca a ser pousada sobre o mármore.
- Estás a maquilhar-te? – perguntou-me. Ouvi a cafeteira mas não respondi. Quando regressei à sala o meu pai bebericava do café com os pés no cimo da mesinha.
- Tire os pés da mesinha, por favor.
Ele olhou para mim, abriu muito os olhos, tirou os pés da mesinha fingindo-se arrependido pela ofensa.
- Estás sozinho?
- Sim. Porquê?
Encolheu os ombros.
- E ele?
- Foi trabalhar.
Acenou com a cabeça e um suspiro, bebeu do café. Observei-o. Velhote, repleto de rugas, mas com os mesmos ombros largos e as mesmas mãos desajeitadas e grossas. Uma mistura de monstro reformado e reformando monstro.
- Que quer? – perguntei.
- Posso visitar-te. Ou não? – voltou a pôr os sapatos em cima da mesinha.
- Não costuma fazê-lo.
- És meu filho. Não posso?
- Pode. Está aqui, abri-lhe a porta.
- Porque estás sozinho.
Sentei-me numa cadeira
– Tire os sapatos de cima da mesa, por favor.
Tirou-os. Acabou o café.
- Se fazes favor – estendeu-me a caneca.
- Que quer?
- Tens falado com a tua mãe?
- Muito pouco.
Voltou a estender-me a caneca.
- Estou a ficar atrasado.
O meu pai levantou-se e foi até à cozinha, encheu a caneca de café, regressou à sala e sentou-se no sofá, colocando os pés sobre a mesinha.
- Estou a morrer. Tenho um caroço qualquer. Está a crescer e está a comer-me.
Levei as costas ao encosto da cadeira.
- Onde?
- Onde, onde… que importa onde?
Uma pausa.
- Há quanto tempo é que sabe?
- Uns meses.
- Não me disse nada.
- A coisa ia regredir, ou que é.
- Mas não regrediu.
O meu pai levou a caneca aos lábios e ajeitou-se no sofá.
- A mãe não me disse nada.
O meu pai olhou para a decoração à sua volta.
- Não me disse nada porquê?
- Porque não é da tua conta.
- Vai morrer?
O meu pai soltou uma gargalhada rouca. Aquelas gargalhadas de circunstância, sem vontade nenhuma.
- Se vou morrer… - olhou para dentro da caneca, pousou-a na mesinha, levantou-se.
- Espere lá – tentei agarrar-lhe no braço mas ele afastou-se. Olhou para mim nos olhos como fazia sempre, procurando inchar-se como sempre fizera, e depois foi-se embora batendo com a porta.

sábado, 23 de julho de 2011

Samora 29

- A ética e a moral são como o código da estrada – declarou Samora, observando uma gravura de um automóvel primitivo num livro – Quando dois ou mais condutores circulam na mesma estrada é inevitável o perigo de choques. Daí a necessidade de criar regras que rejam os movimentos de cada um em relação ao outro. O que por vezes nos parecerá arbitrário e necessitando de explicação, como o porquê da circulação nas rotundas ser como é, não tem que ver com a decisão das autoridades de trânsito ou de qualquer outra espécie. São apenas uma boa forma de evitar acidentes. Consegue imaginar duas carroças, nos confins da História, circulando em sentido contrário enquanto transportam as suas cargas? Cada mercador cheio de pressa, a querer passar, e um parvo com a carroça parada ocupando a estrada! Eis que surge um filósofo ou até um outro indivíduo com cabeça, não precisa de ser grande pensador, e sugere: Amigos, é simples. Cada um encosta-se ao seu lado da estrada, passando ao largo do outro. Observem, passam os dois e sobra espaço para um terceiro. Agora vão às vossas vidas. E lá vão eles, convencidos que agora sim são seres humanos civilizados porque alguém pensou por eles e os conseguiu pôr a circular.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Samora 28

Sara foi minha. Sei-o porque me disse, Sou tua. E eu acreditei. De certa forma acredito ainda. Depois olhava para Samora e sentia que o traíra. Sara não era sua mulher, e duvido que sua amante. Mas de certa forma era sua, e era minha também, e por isso comecei a achar que nós os dois é que éramos dela.

sábado, 16 de julho de 2011

Samora 27


- Pretendo queimá-lo – rosnou-me, vermelho, suado. Sara tinha-nos visitado, e Samora gritara-lhe para se ir porque não estava de todo nos seus dias. Estávamos agora sozinhos na casa, até Anna descera à vila para comprar legumes – Pretendo queimá-lo e nunca mais vê-lo. Queimo o baú também, com tudo lá dentro, para que não precise sequer de rever os volumes e tocar-lhes com as mãos sujas.
Referia-se aos volumes, soube-o logo.
- Porquê a destruição?
- Porque a destruição limpa as coisas más, e o fogo esteriliza tudo – tinha suor na testa, na nuca, nos lábios e em pronunciados círculos à volta das axilas; e gesticulava, nervoso - A expiação total dos meus pecados. Limitei-me a querer encerrar a humanidade nas páginas de papel, mas é impossível. Consome-me como que uma droga, devo parar antes que esteja seco e desfalecido pelo seu peso inimaginável.
- Pelos deuses – fechou os olhos, dedilhando nas têmporas – traga-me uma Coca-cola gelada. Senão morro.

Samora 26

Depois descobri o que era aquilo dos volumes. Cheguei a ver pelo menos duas dezenas, mas sei que havia mais. Anna, segundo me contou um dia, atreveu-se a abrir acidentalmente o enorme baú indiano onde se guardava a magnum opus de Samora. Em fúria, entrou no quarto e quase despediu a empregada. Berrou-lhe que aquele baú continha um valor mais incalculável que a vida, e que as suas patitas manteriam distância ou os dois teriam de se encontrar em tribunal.
Samora estava a escrever (desde jovem? Desde que nascera?) uma obra monumental, sobre tema nenhum em particular mas que, ao que parecia, continha toda a sabedoria de Samora e pretendia ser um reflexo da natureza humana no seu estado mais puro. Volume atrás de volume, página após dolorosa página, escrevia todos os dias, à noite e ao acordar, mas sobre tal monumento literário nunca me disse mais que algumas palavras soltas e uma ou outra reflexão independente que, à luz dos anos passados, interpreto como pequenas confissões quase involuntárias da sua parte. À hora da morte, Samora chegou a murmurar-me que terminara o seu projecto, finalmente, a bem dos deuses, e que o resultado estava na gaveta de baixo da escrivaninha.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Um dia importante

A estreia do último filme da saga Harry Potter é um marco na minha vida. Não pela sua importância objectiva, que não a tem, mas pela sua importância emocional. Depois dos livros, que foram terminados em 2007, os filmes eram um resquício de alegria irracional de alguém que cresceu com a criança da cicatriz na testa. Cada filme a transposição para o ecrã e para uma arte que adoro de um livro que me fizera vibrar até de madrugada; cada filme uma análise detalhada: o que ficara de fora? Hei, no livro está escrito de forma diferente. Aquela fala não era ele que a dizia, pois não? Talvez; vou ter de ir confirmar. O último filme é a última oportunidade para sentir esta alegria infantil, talvez, mas constante, e que não mudou nunca desde que me sentei, há largos anos atrás, numa sala de cinema cheia de crianças como eu a ver aparecer o Harry Potter pela primeira vez na tela. Aliás; uma alegria que se mantém desde que abri pela primeira vez o primeiro livro. Com uns dez anos sentia que pertencia àquele Universo, e essa sensação manteve-se até hoje apesar de entrar na idade adulta, realista por natureza, e de já não ter idade para me deixar levar por fantasias. Mesmo sem idade, deixei-me levar mesmo. A partir de hoje, nada vai ser por mim encarado com a mesma felicidade alarve, com o mesmo nervoso miudinho, com a mesma impaciência entusiasmada de menino. Claro; não chorei quando o Harry Potter morreu (já tinha lido o livro, ao contrário de muitos “verdadeiros fãs”), nem ao ver Hogwarts destruída. Mas senti um nó estomacal quando os créditos finais correram e as luzes se acenderam. É o fim de um ciclo e o fim da infância de muita, muita gente. Alguém quer crescer?

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A tia


- As coisas que a vida nos ensina! – costumava dizer a Tia.
A Tia era uma entidade que, em criança, via como gloriosa, imprescindível, omnipresente e intemporal. Sempre que lá ia dava-me 20 euros para comprar um gelado, apesar de lhe ter explicado várias vezes que um gelado nunca custa 20 euros. Tinha sete, exactamente sete verrugas na cara, em locais impossíveis: na fronteira entre a pele e o lábio inferior; sob a sobrancelha felpuda; em ambas as pálpebras, como quem vai para a córnea; etc. Encontrá-las, às sete, foi trabalho de argonauta. A sua face, em forma de cabaça, possuía uma constante camada fina de sebo natural, misturado com a maquilhagem pesadíssima. O seu corpo era esférico, os seus seios dois sacos de pão com uma carcaça no fundo, as suas pernas dois pequenos cilindros feitos de pneus. Usava sempre aqueles vestidos cheios de flores tropicais, que lhe davam até aos sapatos vermelhos de salto alto. Quando ria, fazia tremer a casa com a sua gargalhada enrolada, gorgolejante, rouca e exagerada. Ria-se de tudo, especialmente do que não tinha piada. Cresci passando as tardes na casa dela, ora vendo televisão, ora meio escondido, vendo-a falar ao telefone com as suas inúmeras amigas. Possuía um conhecimento enciclopédico sobre a vida privada de (contei-as) mais de duzentas e cinquenta e sete pessoas, todas elas suas ex-amigas íntimas e agora alvos sociais a abater. Ou porque lhe maltrataram as begónias, ou porque lhe sujaram acidentalmente a carpete, ou porque se vestiam mal. Quando saia do telefone procurava-me, e chamava-me:
- Querido? Onde estás? Onde te metestes?
“Metestes”, dizia-me ela, porque apesar de se sentir no pódio da alta sociedade nunca soube conjugar verbos. Depois de crescer quis corrigi-la mas não reuni coragem.
Lá me encontrava, debaixo de algum armário. Tinha uma imaginação fértil: o armário era a caverna secreta do guerreiro; e a Tia, um monstro extraterrestre que ameaçava a minha aldeia e o bem-estar de uma princesa que, com o passar da minha adolescência, se tornou progressivamente mais roliça e curvilínea.
Quando me encontrava dava-me beijos molhados: o lugar-comum das tias gordas. Depois largava-me, perguntava-me se estava a ser um bom menino, e largava-me logo de seguida em cima do sofá. Oferecia-me biscoitos; achava que eu adorava os biscoitos, mas não. Fazia o sacrifício de os roer, e quando chegasse a noite faria queixinhas à minha mãe.
No funeral, de frente para o caixão quase redondo e rodeado de carpideiras que também não sabiam conjugar verbos, senti pela primeira vez saudades daquelas minúsculas e rígidas bolachas de aveia. As do supermercado são demasiado doces, ou demasiado saborosas, ou demasiado tenras. As da minha Tia eram melhores.

Consultório do Dr. Augusto Millay 2

Bom dia, Dr., o meu marido deixou-me por uma mulher muito mais nova e sensual que eu. Como posso retomar a minha auto-estima? Já li o seu livro “Como reencontrar a auto-estima Recorrendo à Auto-Afirmação Quântica” mas estou com dificuldades!
Patrícia Pilar, Caxias
Caríssima Patrícia, nunca parta do princípio de que deve corrigir algo de errado consigo porque o seu marido a deixou: nada está errado consigo! Se a outra mulher era realmente mais apelativa que a Patrícia, o seu marido tomou essa decisão porque a sua luxúria ultrapassou o Espiritual; não porque a Patrícia tenha algo de errado. A Patrícia é, por definição, perfeita! Devemos amar a Alma dos outros e não o seu corpo; e isso começa por amarmo-nos a nós próprios. Ame-se! Olhe-se ao espelho, despida de preconceitos e preferencialmente de roupa também enquanto faz os exercícios de relaxamento ao nível dos glúteos que ensino no meu livro; depois repita vezes sem conta: Eu sou uma criatura de Luz, eu sou uma criatura de Luz, eu sou uma criatura de Luz. Depois envie-me algumas fotografias, para me certificar de que está a contactar com as Frequências Superiores da forma mais correcta.
 
Dr., existe mesmo uma Alma? Sou estudante de neurologia e é um tema que tenho explorado com enorme interesse; no entanto, faltam-me fundamentação científica da parte dos que afirmam que existe uma Alma imaterial que ultrapassa as nossas funções cerebrais, e estava à espera que o Dr. me pudesse corrigir essa lacuna. Desde já obrigado pela atenção.
Carlos Andrade, Coimbra
Caríssimo Carlos, noto em si uma profunda tristeza. Na forma como se expressa, vazia de emoções, está escondido um menino assolado por dúvidas e incertezas. Haverá uma Alma? Haverá, de facto; mas parece-me que, no seu interior, o Carlos sabe bem a resposta à sua própria pergunta. Esconde-a de si, a medo, por não querer enfrentar a possibilidade de encontrar algo que mal compreende; mas digo-lhe, Caríssimo Carlos, com todo o Amor: a sua Alma é tão verdadeira e bela como a de qualquer outro ser vivo, e merece ser vivenciada com intensidade. Abrace os Estados Energéticos Emocionais, que descrevo no meu “Para uma Ciência Emocional da Mente e dos Universos”! Experiencie-se, largando os livros e as provas e os preconceitos ocidentais!

Samora 25

A primeira vez que passei uma noite na casa de Samora identifiquei-lhe imediatamente uma das características mais estranhas. Samora dormia num sofá, de certo confortável e soberbamente almofadado, mas ainda assim um sofá. Perguntei-lhe se lhe ocupara a cama e tirara uma boa noite de sono.
- Nada disso, meu caro. Durmo sempre no meu sofá. A meu ver, a cama é o lugar do homem primitivo. Desde há milhares de anos que nos deitamos em leitos horizontais, cobertos por palha ou peles ou por têxteis que condizem com o nosso estrato social e as nossas alergias. Só muito recentemente o Homem descobriu o poder da ergonomia, e pela primeira vez se preocupa em adaptar o local ao corpo e não o corpo ao local. Durmo no sofá para celebrar essa vitória, essa apoteose da razão humana. Este sofá – apontou para ele – foi feito por encomenda, por um colega de escola virtuosíssimo na arte de bem mobilar uma casa e que infelizmente já nos deixou. É a sua maior obra, é a maior obra do ser pensante, e por isso parece-me lógico que é sobre ele que me devo deitar. Assim, dormirei com os grandes.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Samora 24

Já nos conhecíamos há alguns meses e o nosso companheirismo pronunciava-se. Um dia Samora aproximou-se de mim enquanto lia um qualquer volume de uma das suas enciclopédias. Trazia consigo um enorme manuscrito, amarelecido, cheio de gatafunhos.
- Observe. O terceiro volume da minha magnum opus. Terminado.
Fechei a enciclopédia e estendi as mãos para lhe pegar. Samora recuou.
- Que é isso, está louco? Só o lerá quando for publicado, juntamente com os outros. Aliás, fica desde já convidado para a apresentação, quem sabe poderá rabiscar um prefácio que depois eu possa polir.
- É sobre o quê?
Samora olhou-me nos olhos.
- Que me diz?
- Perguntei sobre o que é a sua obra.
Samora olhou para o manuscrito que tinha nas mãos, franziu-se, passou-lhe a palma da mão pela primeira folha.
- Nunca me tinham perguntado isso – murmurou. Querendo dizer, Nunca tinha perguntado isso a mim mesmo.

Samora 23


Soube logo que Samora apreciava a escrita e prezava a sua biblioteca pessoal acima de qualquer outra das suas posses. Por lá passava a maior parte do dia, imerso em livros antigos que folheava sem sequer ler em pormenor, parando aqui e ali para espreitar uma passagem, dedilhando as ilustrações e os pequenos defeitos nas páginas velhas. Outras vezes sentava-se de frente a uma estante e ficava de olhos semi-abertos, como que hipnotizado pela beleza das lombadas. Via nelas a composição de uma abóbada celeste, com as suas estrelas cada uma tão bela como as colegas e no seu conjunto formando constelações de significados e de brilhos constantes. Penso que se Samora alguma vez amou algo foram os seus livros. E Sara, claro. Sempre Sara; que a propósito, salvo raríssimas excepções, nunca vi pegar num livro. Muito menos lê-lo. E só esse facto pesava em Samora como se a sua potencial esposa fosse portadora de uma compreensiva mas incapacitante deficiência qualquer.

Consultório do Dr. Augusto Millay

O Trajectória Aleatória inaugura a sua nova rubrica, de autoria e consultoria científica do Dr. Augusto Millay, Director do Centro para a Moderna Pesquisa Extra-Sensorial e Emotiva e autor de uma extensa bibliografia nesta área de conhecimento. O Dr. Millay é o maior especialista mundial na Teoria da Frequência Vibratória das Quânticas Emotivas e Imateriais, da qual é aliás fundador. O Dr. concordou, com enorme amabilidade, em estar disponível para responder às perguntas que os leitores do blogue lhe queiram fazer através da secção de comentários deste Consultório.


Dr., gosto muito da sua coluna. A minha pergunta é: Deus existe?
Clara Pinto, Vila Franca de Xira
Caríssima amiga, claro que sim; mas cuidado com as definições. “Deus” é demasiado redutor! As religiões dão-lhe nomes apenas para o conseguirem explicar melhor, e atribuem-lhe regras e dogmas que fogem totalmente à Verdade. O que existe é uma consciência universal e energética que ultrapassa qualquer conceito humano, e cuja complexidade não pode ser avaliada pelos métodos científicos comuns. Para a compreender na totalidade, e aprender a utilizar no dia-a-dia, basta adquirir o meu livro “Entendendo o Poder que Há em Nós”, disponível numa qualquer livraria.
 
Dr., peso 135 quilos e sinto-me envergonhada comigo própria. O que devo fazer para melhorar o meu aspecto?
Josefa, Lisboa
Amiga Josefa, primeiro que tudo não se esqueça que é belíssima tal como é. O físico é simplesmente o invólucro material para o Espiritual, e é o Espiritual que conta. Por mais pneus que possa ter, se a sua alma estiver cheia de Luz a sua vida melhorará sempre! E não se esqueça que parte integrante de uma boa saúde espiritual e a saúde física; sem um corpo são, a nossa mente fica mais vulnerável às ameaças postas pelo Medo e pela Incerteza, e por todas as Energias Negativas que começam com maiúsculas e que, por isso, devem ser levadas a sério. Uma boa dieta e algum exercício físico são essenciais; para os acompanhar, sugiro o meu Audiobook “Cem Alimentos Ancestrais para uma Nova Individualidade Espiritual”, que poderá ouvir enquanto faz jogging!
 
Em breve, o Dr. Augusto Millay responderá a mais perguntas dos leitores.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Samora 22

Samora vestia um fato novo por semana, igual ao anterior e igual ao próximo.
- Quanto aos antigos – explicou-me, semanas depois de o conhecer - peço a Anna que os leve aos sem abrigo. Há por aqui uma organização que, apesar de católica, facilita muito a vida às pessoas. O meu sonho é ver um dia todos os estorvos da cidade dentro dos meus fatos, cheios de dignidade. Que elegância! A minha imagem de marca jogada ao mundo para que me conheçam a bondade!

Os portugueses são idiotas?


Como responde um país a um problema financeiro a nível global? Ora, parece-me lógico: com um “I don’t Like”! Isto porque vivemos num planeta onde a maioria das pessoas (adultas; não estamos a falar de crianças ou adolescentes imaturos) acha que clicar num botão do Facebook vai alterar drasticamente qualquer coisa que seja no mundo real. A Moody’s olha para a classificação do seu site e, depois de chorar, vai imediatamente pedir desculpas ao Mundo por ser malandra.
Posso ser acuado se falta de seriedade; afinal, estamos a falar de um acontecimento com pesadas consequências para as finanças nacionais. Dou a palavra aos protestantes, infintamente mais sábios e amadurecidos que eu:
Mas quem é esta gente para nos avaliar, e nos descredibilizar mesmo depois dos portugueses já estarem a esforçar-se e a sofrer com as medidas de austeridade?
Vamos cortar na Moodys!!! Chega de aturar estes palhaços e nem uma boca lhes poder mandar!!
E não se esqueçam: vivemos numa democracia. Todas as opiniões e formas de expressão são igualmente válidas, e devem ser valorizadas.

domingo, 3 de julho de 2011

To Kill a (not so) Cockroach

Afinal era um grilo.

THE END

To Kill a Cockroach 2

Segundo episódio da saga que pronto, termina mesmo agora:

A técnica da comida no chão e luzes apagadas resultou apenas numa coisa: sono por parte do caçador. Aborrecido, decidi acender as luzes e empreender uma busca pormenorizada pelos móveis da divisão. Se ali estivesse, a besta seria surpreendida e aniquilada no momento. Movimentei-me armado com uma lanterna, para iluminar os recantos mais escuros, um chinelo e o sray anti-insectos, prontos para o golpe de misericórdia.

Nem dez segundos passados dei com a idiota à vista desarmada, entre o pé do sofá e a cestinha do croché da minha avó. Olhámo-nos, quietos. Senti-me uma leoa na savana, observando a presa. Depois atirei-me para a frente que nem louco, procurando asfixiar a desgraçada com esguichos repetidos do meu spray venenoso.
Acertei-lhe em cheio, e se pudesse teria guinchado. Não guinchou, mas saltou desalmadamente para debaixo de outro móvel, à esquerda, sofrendo com a descarga de veneno. Arrastei o móvel para o lado, preparando o chinelo e ganhando confiança. A besta estava ferida; era a minha oportunidade. Devo tê-la assustado, pois atirou-se contra o cortinado da sala e trepou-o, agarrando-se à réstia de consciência e de forças que ainda tinha. Aí percebi que estava no papo. Descarreguei o spray em cima da temível criatura e vi-a subir, desnorteada, para cima da mesinha das revistas, onde veio a falecer com duas bem aplicadas e confiantes investidas do meu chinelo.

(momento de suspiro)

Sem arrependimentos: matei-a a sangue frio, e matarei qualquer sua parente que me apareça pelo caminho. As suas tripas jazem ao lado do corpo empapado em veneno. Em seguida disponibilizo fotos do cadáver (de vários pontos de vista), para apreciação generalizada e choque dos mais sensíveis:








Os meus agradecimentos à minha mãe e à Sarah, a sua amiga especialista em baratas, pela valiosa informação disponibilizada.

Um grande bem haja,
O Autor, Caçador de Animais Sanguinários

To Kill a Cockroach

Estava sentado a ver televisão quando um animal indefinível, preto e de pernas numerosas, se passeou alegremente pelo brilhante tapete de Arraiolos que cobre o chão da sala. Pausou-se por momentos como que a provocar-me.
- Oi. Tudo? E depois desapareceu por baixo de um móvel.
Entrei em contacto com a minha mãe e com uma amiga que, ao que consegui apurar, é semi-especialista em baratas por lhes ter um pavor medonho. Uma daquelas heroínas que tem secretamente medo do seu arqui-inimigo. Coisa poderosa. Disseram-me:
- Era uma barata.
- Não era não, era um grilo – respondi.
- Renato. Era uma barata.
- Um grilo – insisti, como aqueles doentes que percebem que têm uma doença mortal mas preferem a negação.
- Era uma barata.
- E agora?
- Tens de a matar porque senão reproduz-se.
- Em quanto tempo?
(olhares dramáticos):
- Zero segundos.
Estratégia adoptada depois de uma rápida troca de ideias: vou colocar comida no centro da sala, desligar as luzes, e armar-me com um sapato de sola rija, um spray anti-insectos e uma coragem de guerreiro.
Desejem-se sorte na minha demandada.

sábado, 2 de julho de 2011

Samora 21

- Lavoisier é quem o disse, não fui eu – disse Samora, observando a lápide de um amigo que morrera – Tudo se transforma, e a probabilidade de ingerir uma molécula que foi de Sócrates numa panqueca ou num copo de água é imensa. Sabia disso? Temática fascinante. Este velho – apontou para a lápide - preferiu, por excesso de zelo, a fornalha. Reduzido a cinzas, logo o símbolo do renascimento. O homem nem sequer era religioso! – uma das suas exclamações jocosas, profundamente sinceras; depois mais calmo – Mas amável, sempre amável. Quando ia a sua casa alimentava-me e bem, possuía terras e sabia tratar de bovinos. Carne tenríssima. Agora suponho que não haverá mais disso.
Olhou em volta, para o resto do cemitério, e notei-lhe algum asco na forma como inclinou o lábio inferior.
- Quando morrer fique já sabendo que desejo ser enterrado ao natural, como fariam com certeza os nossos mais remotos antepassados, sem líquidos nem seivas que me prolonguem uma juventude emprestada. Recuso-me a ser reduzido a cinzas, muito menos a constar num lugarejo destes em que se precisa de uma pedra rudíssima para relembrar os queridos. Desejo acima de tudo regressar à terra de onde vim, e ser devorado pelos vermes e pelas raízes das árvores. Assim o meu corpo regressará ao normal fluxo migratório que é o das moléculas, e tudo ficará bem.
- Comigo pelos vermes?
- Comido pelo mundo; não se esqueça que é aqui que vivemos, a alma se a tivermos pertence a outro lugar qualquer. É justo que se um deve continuar para qualquer lado o outro cá fique, assumidamente misturado com o resto das coisas.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Samora 20

 

Gomez era coleccionador de pessoas. O que fazia na verdade era sair para a rua com a máquina fotográfica a tiracolo e fotografar uma pessoa por dia. Uma só e mais nenhuma. Andava por vezes durante horas, e só tirava uma fotografia. Com ela captava a sombra, a face, a silhueta ou a postura de uma pessoa, escolhida a dedo com todo o cuidado. Essa escolha não obedecia a critério algum, apenas o da sua intuição. Isto, todos os dias. É fazer as contas, e multiplicar trezentos e tal, para retirar uns feriados e umas férias e umas folgas voluntárias, pelos vinte e cinco anos de extenuante actividade como coleccionador. Foi nessa data do seu vigésimo quinto aniversário que Gomez abriu as portas da sua casa e me convidou para assistir à exposição dos retratos. Levei Samora, que se arrastou com poucos modos e considerável sacrifício.

- Que pavorosa construção – declarou quando chegámos à casa - Que assustadora gravata – murmurou depois de cumprimentar Gomez que nos recebeu à entrada - Que inacreditável acto de voyerismo – observava as fotografias de todos os anónimos – E repare na admirável incompetência técnica. Enquadramentos desequilibrados, total falta de sensibilidade para a plasticidade da fotografia, ignorância dos fundamentos mais básicos da exposição e focagem manuais. Este indivíduo apresenta-se como fotógrafo?

Esclareci que só o fazia nos seus tempos livres. Na verdade era historiador.

- Ainda pior! – exclamou Samora, mas imobilizou-se de frente a um retrato e empalideceu. Espreitei. Na fotografia reconheci Sara, enorme, ligeiramente inclinada para a frente numa paragem de autocarro, com os dedos alongados dentro dos fartos cabelos negros à medida que os penteava.

- Que vem a ser isto? – bufou Samora – Chame-me o Gomez imediatamente. Gomez! – gritou – Gomez!

Os outros convidados olharam em volta, incomodados. Gomez atravessou o corredor com um sorriso amarelo. A sua postura era a do anfitrião comedido mas amável. Samora, vermelho, limpava o suor com o lenço e gesticulava com a outra mão. Para o retrato, para Gomez. Algumas barbaridades. Procurei puxá-lo para a porta de saída, resistiu-me, declarei que o vinho lhe subira à cabeça e os convidados fingiram acreditar e regressaram aos retratos. Gomez, com o seu sorriso parvo, suando e ajeitando nervosamente o laço.

- Era Sara naquele retrato – rosnou-me já no exterior. Isso explicaria tudo.

Deduzi que para Samora a mera captação da imagem de Sara era uma aproximação desautorizada e demasiado íntima. Fixar assim a sua imagem na película era agarrá-la para depois a pôr a revelar e inserir no meio de todos os outros retratos. Mais do que a fotografia de Sara por si mesma, estava no seu contexto, misturada no meio de todas as outras pessoas, a principal fonte de irritação para Samora. Era como que uma ofensa; e pior ainda, vim a perceber mais tarde e por outras razões, uma forma de aproximar Sara, a Deusa, do resto dos mortais humanos, e confirmá-la como apenas mais uma mulher, aliás vulgaríssima quando comparada com todas as outras. Mais do que não admitir tamanha hipótese, Samora temia confrontar-se com ela.

Reflexão sobre os anúncios de cerveja

Uma das características básicas de qualquer anúncio deve ser, se bem entendo, estabelecer a relação entre o produto e o potencial comprador. O anúncio deve ser-lhe apelativo, pois só assim o potencial comprador vira comprador a sério. Por isso os anúncios familiares utilizam aquele arquétipo familiar: pai de gravata, mãe de blusa de andar por casa, a lavar a louça, o puto pequeno, a miúda mais velha mas só ligeiramente, e um ou outro representante dos avós (os dois é exagerado, normalmente há só um avô todo barbudo e querido ou uma avó, no caso dos anúncios das fraldas para a incontinência). Esta família parece simpática e suficientemente típica. O espectador identifica-se. É tão genérico que funciona para qualquer família. Nos anúncios de cerveja é diferente. O anúncio de cerveja vai aos jovens, que toda a gente sabe serem consumidores de cerveja porque tem de ser; e muita. Mas os jovens são retratados não como pessoa de bom gosto, que bebem cerveja moderadamente e que conseguem equilibrá-la com uma vida saudável. Nos anúncios de cerveja, os jovens são universitários idiotas, babados e rodeados por mulheres de seios largos e decotes pronunciados que lhes oferecem garrafas geladas e dizem piadas como “a nossa loira”. São jovens sempre com um sorriso parvo nos lábios, semelhante ao de um bebé quando recebe uma chupeta. Mas os anúncios resultam. Nunca mudam. As cervejas vendem-se. Os jovens portugueses identificam-se com este retrato, ou então é o retrato que se identifica com eles.