domingo, 24 de julho de 2011

Dezoito

Quando bateram à porta não queria acreditar no meu azar. Além de estar extremamente cansado e semi nu, porque saíra do banho havia uns minutos, a pessoa do outro lado da porta era o ser humano que mais desprezava no planeta: o meu pai.
- Oi? – berrava – Ó de casa!
- Quem é? – perguntei, tentando ganhar tempo.
- Como, quem é? Não me conheces?
- Dica da Semana? – tentei ganhar mais tempo.
- Abre isto – rosnou o meu pai, esmurrando a porta.
Abri.
- O que estás a fazer semi nu?
- Acabei de sair do banho.
O meu pai ultrapassou-me e foi sentar-se no sofá da sala. Colocou os sapatos sobre a mesinha de vidro. Olhou em volta.
- Vais vestir-te e oferecer-me um café?
- A que devo o prazer da sua visita? – perguntei, pingando para o chão.
- Preciso de um café, primeiro que tudo. Tens ou não?
Apontei na direcção da cozinha.
- Sirva-se.
Estava a vestir-me no quarto:
- Onde guardas as canecas?
- No armário – gritei.
- Qual?
- Por cima do lava loiça.
Um armário a abrir-se.
- Qual? – berrou o meu pai.
- Só há um! – berrei também.
Outro armário a abrir-se. Uma caneca a ser pousada sobre o mármore.
- Estás a maquilhar-te? – perguntou-me. Ouvi a cafeteira mas não respondi. Quando regressei à sala o meu pai bebericava do café com os pés no cimo da mesinha.
- Tire os pés da mesinha, por favor.
Ele olhou para mim, abriu muito os olhos, tirou os pés da mesinha fingindo-se arrependido pela ofensa.
- Estás sozinho?
- Sim. Porquê?
Encolheu os ombros.
- E ele?
- Foi trabalhar.
Acenou com a cabeça e um suspiro, bebeu do café. Observei-o. Velhote, repleto de rugas, mas com os mesmos ombros largos e as mesmas mãos desajeitadas e grossas. Uma mistura de monstro reformado e reformando monstro.
- Que quer? – perguntei.
- Posso visitar-te. Ou não? – voltou a pôr os sapatos em cima da mesinha.
- Não costuma fazê-lo.
- És meu filho. Não posso?
- Pode. Está aqui, abri-lhe a porta.
- Porque estás sozinho.
Sentei-me numa cadeira
– Tire os sapatos de cima da mesa, por favor.
Tirou-os. Acabou o café.
- Se fazes favor – estendeu-me a caneca.
- Que quer?
- Tens falado com a tua mãe?
- Muito pouco.
Voltou a estender-me a caneca.
- Estou a ficar atrasado.
O meu pai levantou-se e foi até à cozinha, encheu a caneca de café, regressou à sala e sentou-se no sofá, colocando os pés sobre a mesinha.
- Estou a morrer. Tenho um caroço qualquer. Está a crescer e está a comer-me.
Levei as costas ao encosto da cadeira.
- Onde?
- Onde, onde… que importa onde?
Uma pausa.
- Há quanto tempo é que sabe?
- Uns meses.
- Não me disse nada.
- A coisa ia regredir, ou que é.
- Mas não regrediu.
O meu pai levou a caneca aos lábios e ajeitou-se no sofá.
- A mãe não me disse nada.
O meu pai olhou para a decoração à sua volta.
- Não me disse nada porquê?
- Porque não é da tua conta.
- Vai morrer?
O meu pai soltou uma gargalhada rouca. Aquelas gargalhadas de circunstância, sem vontade nenhuma.
- Se vou morrer… - olhou para dentro da caneca, pousou-a na mesinha, levantou-se.
- Espere lá – tentei agarrar-lhe no braço mas ele afastou-se. Olhou para mim nos olhos como fazia sempre, procurando inchar-se como sempre fizera, e depois foi-se embora batendo com a porta.

Sem comentários: