sexta-feira, 29 de julho de 2011

A minha felicidade é maior que a tua


“Vida sem limites” é a comovente auto-biografia de um indivíduo que nasceu sem os dois braços e as duas pernas. É uma personalidade querida, até porque quando olhamos para ele a nossa compaixão é logo despertada; mas a sua mensagem é asquerosa. Nas suas palestras, no seu livro, e nos vídeos no YouTube que por vezes circulam via e-mail, o seu lema é claro: “Se eu consigo ser feliz, porque é que tu não consegues?”.
O que à primeira vista pode parecer lógico; mas a meu ver, a resposta à pergunta não deve ser “Tens razão; afinal, um gajo sem braços e sem pernas lá saberá o que significa ser infeliz”. Deve antes ser: “Quem és tu para me dizer se devo ou não estar feliz?”.
É uma espécie de chantagem emocional por comparação. Se um tipo sem membros consegue ter uma vida estável, garantida pela forma como explora a própria desgraça, congratulo-o; mas é pena que toda a gente que o ouve e nele busque inspiração não perceba que a falta de membros não faz de alguém uma autoridade sobre o tema. Podias utilizar o mesmo tipo de lógica nele próprio: Se há meninos em África que nascem com SIDA, sem ter que comer, sem pais e sem lugar para viver a sua curta e agonizante existência, porque raio é que tu, a quem só te faltam os braços, não poderias ser feliz?
A comparação é exagerada? De que forma? A premissa do livro do senhor sem membros é toda ela uma variação de “Eu tenho razões para ser infeliz; tu não podes com certeza estar numa situação pior; ergo, eu tenho autoridade para te dizer que devias ser feliz”. Estimular as pessoas a serem felizes por comparação com um indivíduo deficiente é moralmente recriminatório; e parte do princípio (a meu ver, errado) de que se uma pessoa tiver dois braços e duas pernas deveria sentir-se quase culpada por não ser feliz quando um tipo sem membros consegue sê-lo.
Num dos vídeos disponíveis na Internet, o senhor sem membros repete a conhecidíssima ladainha: “Se caírem, é importante tentar levantar-se; porque quanto mais vezes tentarem, mais possibilidades têm de se conseguir levantar!”. O que é uma evidência estatística, facilmente percepcionada por qualquer pessoa com capacidades cognitivas comuns, torna-se numa palavra inspiradora e moralizante quando saída da boca de um tipo cuja única característica especial parece ser a falta de pernas e braços.
Casos são casos; mas tornou-se tradição criar comparações entre situações incomparáveis. Como pode qualquer pessoa ser infeliz no mundo Ocidental quando há malta a morrer na Somália? Isso significa que o sentimento de infelicidade de um ocidental deve ser como que anulado, ou perder parte da sua razão de ser, só porque há gente pior que nós? Comparar algo tão estupidamente subjectivo como a felicidade entre as pessoas em diferentes contextos é ridículo. Não vejo os refugiados afegãos ou as vítimas de terramotos violentos lucrarem com a sua própria desgraça como o senhor sem membros; talvez essa fosse uma boa forma de ficarem mais felizes…

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