sábado, 16 de julho de 2011

Samora 26

Depois descobri o que era aquilo dos volumes. Cheguei a ver pelo menos duas dezenas, mas sei que havia mais. Anna, segundo me contou um dia, atreveu-se a abrir acidentalmente o enorme baú indiano onde se guardava a magnum opus de Samora. Em fúria, entrou no quarto e quase despediu a empregada. Berrou-lhe que aquele baú continha um valor mais incalculável que a vida, e que as suas patitas manteriam distância ou os dois teriam de se encontrar em tribunal.
Samora estava a escrever (desde jovem? Desde que nascera?) uma obra monumental, sobre tema nenhum em particular mas que, ao que parecia, continha toda a sabedoria de Samora e pretendia ser um reflexo da natureza humana no seu estado mais puro. Volume atrás de volume, página após dolorosa página, escrevia todos os dias, à noite e ao acordar, mas sobre tal monumento literário nunca me disse mais que algumas palavras soltas e uma ou outra reflexão independente que, à luz dos anos passados, interpreto como pequenas confissões quase involuntárias da sua parte. À hora da morte, Samora chegou a murmurar-me que terminara o seu projecto, finalmente, a bem dos deuses, e que o resultado estava na gaveta de baixo da escrivaninha.

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