quarta-feira, 13 de julho de 2011

A tia


- As coisas que a vida nos ensina! – costumava dizer a Tia.
A Tia era uma entidade que, em criança, via como gloriosa, imprescindível, omnipresente e intemporal. Sempre que lá ia dava-me 20 euros para comprar um gelado, apesar de lhe ter explicado várias vezes que um gelado nunca custa 20 euros. Tinha sete, exactamente sete verrugas na cara, em locais impossíveis: na fronteira entre a pele e o lábio inferior; sob a sobrancelha felpuda; em ambas as pálpebras, como quem vai para a córnea; etc. Encontrá-las, às sete, foi trabalho de argonauta. A sua face, em forma de cabaça, possuía uma constante camada fina de sebo natural, misturado com a maquilhagem pesadíssima. O seu corpo era esférico, os seus seios dois sacos de pão com uma carcaça no fundo, as suas pernas dois pequenos cilindros feitos de pneus. Usava sempre aqueles vestidos cheios de flores tropicais, que lhe davam até aos sapatos vermelhos de salto alto. Quando ria, fazia tremer a casa com a sua gargalhada enrolada, gorgolejante, rouca e exagerada. Ria-se de tudo, especialmente do que não tinha piada. Cresci passando as tardes na casa dela, ora vendo televisão, ora meio escondido, vendo-a falar ao telefone com as suas inúmeras amigas. Possuía um conhecimento enciclopédico sobre a vida privada de (contei-as) mais de duzentas e cinquenta e sete pessoas, todas elas suas ex-amigas íntimas e agora alvos sociais a abater. Ou porque lhe maltrataram as begónias, ou porque lhe sujaram acidentalmente a carpete, ou porque se vestiam mal. Quando saia do telefone procurava-me, e chamava-me:
- Querido? Onde estás? Onde te metestes?
“Metestes”, dizia-me ela, porque apesar de se sentir no pódio da alta sociedade nunca soube conjugar verbos. Depois de crescer quis corrigi-la mas não reuni coragem.
Lá me encontrava, debaixo de algum armário. Tinha uma imaginação fértil: o armário era a caverna secreta do guerreiro; e a Tia, um monstro extraterrestre que ameaçava a minha aldeia e o bem-estar de uma princesa que, com o passar da minha adolescência, se tornou progressivamente mais roliça e curvilínea.
Quando me encontrava dava-me beijos molhados: o lugar-comum das tias gordas. Depois largava-me, perguntava-me se estava a ser um bom menino, e largava-me logo de seguida em cima do sofá. Oferecia-me biscoitos; achava que eu adorava os biscoitos, mas não. Fazia o sacrifício de os roer, e quando chegasse a noite faria queixinhas à minha mãe.
No funeral, de frente para o caixão quase redondo e rodeado de carpideiras que também não sabiam conjugar verbos, senti pela primeira vez saudades daquelas minúsculas e rígidas bolachas de aveia. As do supermercado são demasiado doces, ou demasiado saborosas, ou demasiado tenras. As da minha Tia eram melhores.

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