sábado, 27 de agosto de 2011

As lebres e as tartarugas


Oh, as dores nas patas, o peso da carapaça, o calor sobre o alto da cabeça! Mas era preciso continuar, pensou a tartaruga. Há umas horas atrás tinha virado uma esquina e dado de caras com a lebre a dormir sossegadamente debaixo do chaparro. Nem parou para rir, continuou em frente; mas agora, longe do chaparro e perto da meta, reflectia longamente sobre a sua própria perseverança, e sobre como teria finalmente a oportunidade de ensinar algo de útil aos outros animais do charco. Coragem. Determinação. Trabalho árduo. Aproveitamento total e meritório das capacidades, ainda que limitadas. Eram estes os seus ideais. Uma pata de cada vez, arrastando pela estrada de terra batida o seu corpo pesadão.

- Oi – disse uma voz atrás de si. Virou o pescoço para trás. Era a lebre.

- Ah. Olá – disse a tartaruga sem grande entusiasmo.

- Reparei que me tinhas ultrapassado ainda há pouco. Ufa, está um calor…

A tartaruga disse que sim com a cabeça, mantendo o ritmo. A lebre caminhou descontraidamente ao seu lado durante uns segundos e depois disse:

- Temos aqui um sério problema.

- Ai sim? – respondeu a tartaruga. Ao longe, sobre uma colina verde, surgia a fita vermelha da meta e um grupo de animais à espera.

- É verdade. Trata-se de decidir o vencedor da nossa prova.

- Pensei que era quem chegasse primeiro – disse a tartaruga, ingénua. A lebre soltou uma gargalhada, apanhou um punhado de relva do chão e engoliu-a.

- Eu também, e parece-me justo à primeira vista. Porém, é algo que te ultrapassa completamente. Eu tenho todas as condições para te ultrapassar, dar uma corrida, e ganhar a corrida. Assim, sem mais nem menos.

- Isso – disse a tartaruga, resignada – é bem verdade.

- Trata-se portanto de um dilema moral ao qual tenho dedicado algum tempo – continuou a lebre – Senão vejamos. Chegando eu primeiro, terei todo o mérito em receber o título de vencedora. Afinal, cheguei primeiro! Porém, tu tens sido uma concorrente meritória. Ainda não paraste. E eu, preguiçosa como sempre fui – a lebre riu-se de si própria como quem fala de alguém muito engraçado que conheceu no café – aproveitei a tua desvantagem física para me estender à sombra do chaparro. Isso faria de ti uma justa vencedora da corrida!

- Ambas as hipóteses têm o seu mérito – disse a tartaruga, de olhos na meta.

- Como assim? Não acharias muito mais justo seres tu a ganhar?

- Depende.

- Do quê?

A tartaruga olhou a lebre nos olhos.

- Depende do prémio.

- Do prémio? Ora, o prémio é só um. É ganhar a corrida.

- Talvez – a tartaruga voltou a olhar em frente, agora com um ligeiro sorriso na cara – Se estamos a fazer uma corrida para ver quem chega primeiro à meta, então quem chega primeiro à meta é a vencedora. Mas vence porque corre mais rápido que a concorrente, só por isso. Ou porque tem as pernas maiores, como tu. Ambas podemos percorrer o mesmo caminho, só que tu tens a vantagem biológica de ser uma corredora natural e eu não.

- O que só torna a situação ainda mais humilhante para ti – concluiu a lebre – Aliás, devo dizer-te que nunca percebi muito bem por que é que aceitaste este meu desafio.

- Porque não haveria de aceitar?

- Ora, porque está-se mesmo a ver que…

A lebre calou-se.

- Sim? – perguntou a tartaruga – Ias dizer que está-se mesmo a ver que serás tu a vencedora?

- Isso não é verdade – resmungou a lebre, começando a mastigar a relva.

- O que faria de ti uma batoteira, porque já sabias o resultado da corrida antes de ela ter começado. Aliás, admite-me lá uma coisa… - a tartaruga olhou para os olhos da lebre e o seu sorriso estava mais aberto que nunca – tu só me convidaste para esta corrida para me poderes ganhar, não foi?

A lebre parecia ligeiramente irritada.

- Ou – disse a tartaruga – talvez... possivelmente… Me tenhas convidado para uma corrida para que me deixasses ganhar, e assim dar uma forte lição aos teus filhos e aos outros animais da floresta: uma lição de modéstia, de mérito, de igualdade para todos os animais. Perder uma corrida com uma tartaruga! Tu, a mais veloz da floresta! Se fosse o caso, cara lebre, penso que é de inegável justiça seres tu a vencedora; nem que seja porque te tornarias num mártir e melhor ainda, num exemplo!

A lebre estava sem palavras. A meta parecia agora mais próxima.

- Estás a chantagear-me – acusou a lebre, mastigando a relva com mais força.

- Não – disse a tartaruga, mostrando-se quase ofendida – Estava simplesmente a reflectir sobre o dilema que me colocaste. Afinal, quem deve ganhar?

A lebre mordeu o lábio, irritada, e deu um rápido pontapé à tartaruga, que se virou com um salto e ficou de barriga para cima, esperneando no meio da estrada. A lebre largou a correr, veloz como sempre, com os olhos na meta.

Anoiteceu. As tartarugas pequeninas vieram ajudar o pai a virar-se, e acompanharam-no a casa. Ficaram com ele no charco, ajudaram-no a tirar os grãos de areia dos olhos e da carapaça, e depois deixaram-no dormir. A mãe explicou-os que o pai tinha ganho uma corrida muito importante nesse dia, e precisava de descansar. E lá fora, por entre as árvores da floresta, todos os animais festejavam mais uma vitória da lebre mais veloz do mundo. 

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