terça-feira, 9 de agosto de 2011

"Sete Pecados Mortais" - Luxúria



Ele já estava no hotel há pelo menos duas horas mas só naquele momento, quando o telefone tocou e Orlando se dobrou sobre a cama para o atender, é que começou a sentir-se realmente nervoso.

- Estou sim?
- Boa noite, senhor Orlando. A sua convidada já chegou.
- Ah, sim – Orlando procurou saliva mas não a encontrou e por isso engoliu em seco.
- Devo conduzi-la ao seu quarto?
- Sendo assim, parece-me que… - Orlando desapertou o primeiro botão da camisa, que o sufocava – Sim, mande-a subir.
- Com certeza. Com sua licença.

O recepcionista desligou e Orlando levantou-se da cama. O quarto tinha uma decoração ridícula, uma espécie de imitação barata de Arte Nova com ligeiros toques de incoerente modernidade: o mini-bar, o televisor, o ar condicionado, os candeeiros de plástico.

Orlando foi até à casa de banho. Lavou a cara, enxugou-a com uma toalha turca, e observou a sua face pálida e chupada no espelho, com o cabelo liso e frágil despenteado no alto da cabeça. A sua cabeça tinha a forma de um triângulo invertido, e a camisa cor de salmão que tinha escolhido para a ocasião (erradamente, parecia-lhe agora) estava repleta de manchas de suor.

Foi até à mesa-de-cabeceira, pegou na carteira, certificou-se que o maço de notas amachucadas ainda ali estava. Era a quinta vez que o fazia, e a sua insegurança crónica dizia-lhe que não seria a última.

Olhou em volta para o quarto, subitamente preocupado com a disposição dos objectos em cima da mesa, com a cor da colcha da cama, com a simetria entre as almofadas. Tudo lhe parecia ligeiramente imperfeito, e isso deixava-o sem ar. Recomeçou a suar. Foi então que bateram à porta.
Foi abrir. No corredor do hotel esperava-o uma mulher absolutamente bela, com uns cabelos longos ondulados e um par de olhos castanhos misteriosos. As suas características, observou Orlando, eram exactamente as que imaginara: pernas respeitáveis mas não demasiadamente altas, óptima proporção entre a largura das ancas e cintura, perfeita simetria no decote, lábios carnudos prometedores e dentes extremamente limpos e bem lavados.

- Boa noite. És o Orlando? – perguntou a mulher.
- Sou – conseguiu dizer.
- Olá. Sou a Clara.
- Clara. É um nome lindíssimo, Clara.

Estendeu-lhe a mão, e Clara observou-a a tremer e a suar. Apertou-a levemente. A Orlando percorreu-lhe um calafrio, e o aperto de mão parecia ser para ele mais um sacrifício que um acto de boas vindas.

Ficaram os dois frente a frente, sem dizer nada, Clara estudando-lhe a expressão e Orlando procurando perceber quanto tempo teria até as gotas de suor lhe escorrerem da testa para dentro dos olhos.

- Não me vais convidar a entrar? – perguntou ela.
- Oh…! – Orlando afastou-se e deixou-a passar. Sentiu-lhe o perfume, e quase desmaiou. Fechou a porta e foi até à cama, onde Clara se sentara e pousara a mala discreta.
- Arte Nova – disse ela, olhando em volta – A minha favorita.
- A minha também – disse Orlando rapidamente. Clara atirou os seus olhos enormes na sua direcção.
- Que idade tens?
- Hum?
- Perguntei que idade tens.
- Hoje é o meu vigésimo primeiro aniversário – disse Orlando, não escondendo uma ponta de orgulho. Clara riu-se.
- Parabéns a você, nesta data querida… E porque não foste festejar com os teus amigos?

Orlando iniciou uma complicada manobra com as mãos cujo objectivo parecia ser esmagar os dedos uns contra os outros.

- Digamos que sou um pouco solitário.
- Não o somos todos?

Orlando riu-se, um riso nervoso que parecia vir o fundo da garganta e que lhe agitou os ombros desajeitadamente.

- É o que eu acho. Na sociedade em que vivemos, nunca é demais reflectir sobre como estamos afastados uns dos outros.
- Um intelectual – admirou-se Clara, abrindo os braços em surpresa e arregalando os olhos – Não se vê muitos como tu por esta zona.
- Que zona? – o riso de Orlando desaparecera. Clara, por seu lado, riu-se e olhou-o de esguelha.
- Longe de casa?
- Vivo aqui perto – Orlando quis acrescentar alguma coisa, mas não acabou a frase. Clara notou.
- Vives com uma amiga?
- Não. Vivo sozinho.
- Sozinho?
- Sozinho.

Orlando fitou os seus próprios dedos, enrolados uns nos outros.

- Vivo com os meus pais – murmurou – Mas estou a juntar dinheiro para arranjar a minha própria casa.

Clara olhou-o de frente, cabeça ligeiramente inclinada, e uma súbita pena que quase parecia sincera invadiu a sua expressão.

- Hoje vais esquecer todas essas adversidades, ok?

Orlando desequilibrou-se.

- Não precisas de estar nervoso.
- Não estou – disse ele firmemente, com a voz a tremer.
- Chega aqui, senta-te ao meu lado.

Orlando aproximou-se da cama e sentou-se, afastado dela, quase a medo. Clara ajeitou-se para se aproximar dele.

- Deve ter exigido grande coragem da tua parte, vires até aqui hoje.
- Não fui eu, foi um tio.
- Um tio?
- Ele é rico, geralmente anda bêbado e é um cliente habitual.

Orlando corou violentamente e pregou os olhos no chão, envergonhado.

- Um cliente meu?
- Não sei, não sei mesmo – disse Orlando; e acrescentou – Mas espero que não, isso seria bastante constrangedor.

Clara soltou uma gargalhada sincera, divinal na entoação e na harmonia, que por si só tirou setenta quilos das costas de Orlando e provocou também nele um sorriso. Era a primeira vez em toda a sua vida que fazia rir uma mulher.

- Gostaria que pensasses em mim como uma mulher comum, igual às outras. Achas que consegues fazê-lo, Orlando?

Orlando encolheu os ombros.

- Pensa em mim como alguém que conheceste hoje. Podemos conversar, rir, talvez ver um filme. Podemos fazer tudo o que te deixar feliz e confortável, ok?

Naquela frase absolutamente carinhosa Orlando sentiu o aroma de uma sugestão mais atrevida, e corou outra vez.

- Eu não quero ver um filme – conseguiu dizer.
- Então?

Orlando olhou para ela.

- Estou a ver – Clara levantou-se, colocou-se de pé à frente de Orlando e levou as mãos aos botões da blusa que trazia vestida. Os olhos de Orlando abriram-se e fitaram-na, colados ao decote que se abria cada vez mais à sua frente. Dentro das suas calças um fenómeno perfeitamente natural mas, naquele contexto, razoavelmente desconfortável começou a desenvolver-se.

- Eu não sei o que fazer – confessou, quase sem voz, ao ver a blusa a cair para o chão.
- Eu ensino-te – disse Clara, e na sua voz havia toda a sinceridade e carinho do mundo mas também uma séria provocação.

Foi até ele, colocou-se à sua frente e agarrou-lhe na mão, conduzindo-a até ao seu pescoço, depois pelo seu peito abaixo (Orlando tremeu violentamente) e, finalmente, para o pequeno painel digital na sua barriga. Orlando observou os botões, fascinado; e no pequeno monitor, em cores vivas, imagens extremamente gráficas bombardeavam-lhe o cérebro com sugestões que fariam a sua mãe corar de vergonha.

- Basta escolheres. Carregas no botão e decides o que queres fazer. Depois…

Clara conduziu-lhe a mão para uma pequena ranhura do lado direito do seu umbigo.

- … inseres o pagamento respectivo e podemos começar.

Orlando olhou para o monitor, depois para a cara de Clara, depois para a carteira em cima da mesa de cabeceira.

- Então? – perguntou-lhe a mulher. Orlando sentiu as gotas de suor a descerem até aos olhos. Dobrou-se sobre a cama até à mesa de cabeceira para ir buscar a carteira.

***

Tudo o que lhe tinham dito sobre o acto sexual, por mais maravilhados e fantásticos que fossem os adjectivos utilizados, era na verdade uma subvalorização tremenda. Basta dizer que quatro horas depois Orlando estava quase sem notas na carteira e com grandes dificuldades em escolher, através do monitor, aquilo que queria experimentar a seguir e que não fosse, para o seu frágil corpo, um atentado demasiado violento.

Decidiu-se por uma posição absolutamente mirabolante, que exigia de Clara uma elasticidade e força de músculos inacreditáveis; valor que, aliás, ela já tivera a oportunidade de mostrar vezes e vezes sem conta.

Orlando, nos céus, via o seu corpo escanzelado e peludo e o corpo escultural e belo de Clara iluminados pelo modesto candeeiro Arte Nova, uma imitação barata que agora o irritava muito menos. Mal conseguia respirar, mas o êxtase suplantava a proximidade com a asfixia. Foi aí que, numa observação mais atenta, reparou numa pequena fileira de números meio escondidos num local do corpo de Clara com o qual nem nos seus sonhos mais loucos se imaginara entrar em contacto.

- O que é isto? – perguntou ele, curioso, quase para si próprio.
- O quê? – perguntou Clara do alto da sua posição humanamente impossível.
- Estes números – Orlando tentou ler. - “3458…”… Qualquer coisa – Tentou focar a pequena mensagem, e finalmente conseguiu lê-la. Dizia “Prazo máximo de renovação”, e tinha uma data à frente. A data era extremamente fácil de reconhecer para Orlando: era a data do seu aniversário.
- Ouve, eu… - começou ele, subitamente distraído, e assim que olhou para Clara foi a tempo de ver o seu monitor rebentar numa onda de estilhaços afiados. O corpo caiu como um peso morto, cuspindo faíscas em todas as direcções, e Orlando precipitou-se para o outro lado da cama soltando guinchos assustados.

Clara era agora um boneco tresloucado, tremendo a uma velocidade impressionante à medida que fumo lhe saía pelas orelhas. Segundos depois abrandou e depois parou, quieta, com uma nuvem de fumo cinzento a inundar o quarto.

Orlando, envergando apenas as suas meias brancas, aproximou-se de Clara, despedaçada. Ajoelhou-se sobre ela. À sua porta batia um funcionário do hotel, perguntando se estava tudo bem. Não estava. Estava tudo muito mal mesmo. Para Orlando, a mulher mais perfeita do mundo tinha acabado de morrer à sua frente. 


Texto do Autor e ilustrações de Mariana Fernandes. 

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