quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Cartas para Andrómeda #5


Querida Tia,


Já sinto saudades do seu Hyu assado no reactor nuclear e ainda agora regressei à Terra! Não sei como vou aguentar outro ano sem ir a casa...

Por falar em casa: foi curioso ver os primos a sacrificar aquele Etu em minha honea assim que cheguei. Sabia que os humanos também possuem os seus próprios rituais de boas vindas?

Li sobre isto numa aula de Hábitos Humanos. Em vez de matarem seres vivos em honra uns dos outros, eles gostam muito de partilhar comida. É uma espécie de jogo social, em que buscam a aprovação dos outros oferecendo-lhes garrafas de vinho, queijos e aperitivos salgados.

Então é assim: os humanos convidam outros humanos para partilhar uma refeição. Quando os Visitantes chegam a casa já devem trazer uma oferenda. Normalmente é uma garrafa de vinho (um líquido asqueroso mas que os humanos bebem em demasia e graças ao qual têm acidentes rodoviários), porque enquanto o Visitante fornece o alimento para mastigar, o visitante deve trazer o líquido para beber. Convenções! O professor diz que não se sabe bem de onde vêm.

Os Visitantes são recebidos pelos Anfitriões, que são os donos do território visitado. Ao contrário do que lhe possa parecer, os Visitantes não urinam nas paredes para marcar território; aqui na Terra isso é considerado um acto de má educação! Em vez disso, os Visitantes devem limpar os sapatos antes de entrar no território alheio, cumprimentar todos os Anfitriões e ofertar a garrafa de vinho como símbolo de paz e união.

Depois os Anfitriões mostram o território aos Visitantes, quando estes não o conhecem. Um território com muitas divisões e adornos dispendiosos é sinal de superioridade. O Visitante deve, nessa altura, mostrar-se surpreendido, e elogiar o território e a forma como está adornado. Os humanos recorrem a sentenças socialmente aceites como: “Adoro o que fizeram com esta divisão”, “Esse quadro é maravilhoso!” e “O quarto dos miúdos está muito giro”, sem as quais os Anfitriões ficariam ofendidos. Os Anfitriões gostam de arrumar e lavar o seu território antes de receber os Visitantes, para se apresentarem com virtudes que na verdade não possuem.

A seguir, os Anfitriões e os Visitantes sentam-se no centro do território, chamado “sala”, e consomem aperitivos ou conversam sobre banalidades. A troca de informação entre os humanos nunca é sincera nem interessante. Os temas a evitar incluem política, religião, economia, sexo e necessidades fisiológicas, uma vez que se tratam de tabus sociais e nem os Anfitriões querem deixar os Visitantes desconfortáveis, nem os Visitantes desejam mostrar-se inferiores perante os Anfitriões.

Por esta altura entra a divisão de tarefas entre o macho e a fêmea: enquanto ele entretém os Visitantes na “sala”, a fêmea está noutro local do território, chamado “cozinha”, a preparar o alimento a ser compartilhado. Uma fêmea que saiba “cozinhar” (ou seja, manusear com agilidade os utensílios da “cozinha” e com eles preparar doses de alimentos saborosos) é altamente bem vista na sociedade humana.

Quando a comida está pronta, ela é servida em recipientes preferencialmente quentes. Os humanos odeiam comida fria! Dar comida fria a um Visitante é ainda pior do que urinar no território de outro humano... e até para comer os humanos têm rituais estranhos! Usam três objectos principais: garfo (com que levar o alimento à boca), faca (com que cortar o alimento) e prato (onde depositar o alimento enquanto não é consumido). Para dificultar a vida aos Visitantes e testar se pertencem à mesma casta social que eles, os Anfitriões procuram decorar com vários adornos as suas mesas, incluindo três tipos diferentes de garfos e facas, vários pratos, vários copos (local de onde se bebem líquidos) e alimentos de difícil consumo: com cascas, com peles, com superfícies rijas, com superfícies arredondadas e difíceis de espetar com o garfo, etc.

Os Visitantes devem fazer um esforço por se adaptar aos rituais próprios dos Anfitriões: alguns comem “sopa” (um líquido semelhante em textura e sabor ao pus que o Tio deita das guelras quando está doente), outros consomem alimentos comprados previamente em lojas, onde outras fêmeas cozinham para que as fêmeas Anfitriãs possam receber os louros sem terem trabalho algum. Os Visitantes devem também elogiar o alimento, independentemente da sua qualidade, utilizando mais sentenças socialmente aceites como “Está muito bom”, “Que delícia!” ou “Está muito bem temperado”.

É de bom tom que os Visitantes peçam a receita (modo de preparação de determinado alimento) à fêmea Anfitriã, com o intuito de a elogiar e de demonstrar a sua inferioridade alimentícia. A fêmea Anfitriã não deverá revelar que retirou essa receita de nenhum órgão de comunicação social. Respostas como “A minha avó já cozinhava isto assim” ou “Assim de repente nem te sei dizer como se faz, já me sai naturalmente!” são demonstrações de superioridade esperadas por parte da fêmea Anfitriã.

No entanto, os Visitantes não devem nem pedir mais que uma receita (normalmente pedem a da sobremesa, porque os humanos são viciados em açúcares) nem repetir demasiadas vezes uma dose de alimentos. Isso seria visto pelos Anfitriões como uma ofensa! Os Visitantes devem comer pouco e de preferência ficar com fome mesmo depois da refeição acabar.

Depois da partilha de comida, os humanos podem conversar mais um pouco, evitando, claro os temas tabu. O grau de proximidade da conversa é proporcional à proximidade social entre os Anfitriões e os Visitantes. Os temas proibidos, particularmente o sexo e a vida privada de outras pessoas, são os favoritos entre Anfitriões e Visitantes que se conhecem há mais unidades de tempo. É socialmente recomendável que os Visitantes critiquem e ridicularizem as mesmas pessoas que os Anfitriões, demonstrando assim que concordam com eles e fortalecendo as ligações entre os dois grupos com um mútuo sentimento de superioridade em relação aos outros.

Depois disso, os humanos despedem-se. É de bom tom que a fêmea Anfitriã, por esta altura, ofereça aos Visitantes um recipiente com comida, para que os Visitantes possam assim lembrar-se da sua inferioridade alimentícia quando regressarem aos seus territórios. Os Visitantes devem aceitar de bom grado, mesmo que depois ofereçam aqueles alimentos ao seu cachorro (animal de estimação que come restos).

No final da visita, o Anfitrião deve ainda disponibilizar o seu território para nova visita. “Voltem quando quiserem” é uma frase socialmente recomendável, apesar de nem os Anfitriões estarem a ser sinceros (não desejam visitas inesperadas ao seu território, porque senão não o poderiam ornamentar a tempo de enganar os Visitantes) nem os Visitantes estarem dispostos a “voltar quando quisessem”, o que seria rude.

Enfim... Vou-me habituando a estas loucuras! O Professor diz que um dia destes poderemos ir disfarçados a uma festa humana, e ver como se comportam eles em situações de pressão social. Oh, isso seria fascinante! Como eles sua, como eles se sentem nervosos a mastigar em público, como a presença de fêmeas ou machos atraentes lhes põe as glândulas aos pulos!

Cumprimentos aos primos (ainda não regressaram a Sirius, pois não? Desejo-lhes uma boa viagem!) e ao Tio. Ainda tenho alguns Frtyuiu aqui ao meu lado, e de vez em quando mato um e sangro-o para o lanche. Que maravilha, os sabores da terra natal...

Com carinho,

O Seu Sobrinho

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