sábado, 27 de agosto de 2011

As lebres e as tartarugas


Oh, as dores nas patas, o peso da carapaça, o calor sobre o alto da cabeça! Mas era preciso continuar, pensou a tartaruga. Há umas horas atrás tinha virado uma esquina e dado de caras com a lebre a dormir sossegadamente debaixo do chaparro. Nem parou para rir, continuou em frente; mas agora, longe do chaparro e perto da meta, reflectia longamente sobre a sua própria perseverança, e sobre como teria finalmente a oportunidade de ensinar algo de útil aos outros animais do charco. Coragem. Determinação. Trabalho árduo. Aproveitamento total e meritório das capacidades, ainda que limitadas. Eram estes os seus ideais. Uma pata de cada vez, arrastando pela estrada de terra batida o seu corpo pesadão.

- Oi – disse uma voz atrás de si. Virou o pescoço para trás. Era a lebre.

- Ah. Olá – disse a tartaruga sem grande entusiasmo.

- Reparei que me tinhas ultrapassado ainda há pouco. Ufa, está um calor…

A tartaruga disse que sim com a cabeça, mantendo o ritmo. A lebre caminhou descontraidamente ao seu lado durante uns segundos e depois disse:

- Temos aqui um sério problema.

- Ai sim? – respondeu a tartaruga. Ao longe, sobre uma colina verde, surgia a fita vermelha da meta e um grupo de animais à espera.

- É verdade. Trata-se de decidir o vencedor da nossa prova.

- Pensei que era quem chegasse primeiro – disse a tartaruga, ingénua. A lebre soltou uma gargalhada, apanhou um punhado de relva do chão e engoliu-a.

- Eu também, e parece-me justo à primeira vista. Porém, é algo que te ultrapassa completamente. Eu tenho todas as condições para te ultrapassar, dar uma corrida, e ganhar a corrida. Assim, sem mais nem menos.

- Isso – disse a tartaruga, resignada – é bem verdade.

- Trata-se portanto de um dilema moral ao qual tenho dedicado algum tempo – continuou a lebre – Senão vejamos. Chegando eu primeiro, terei todo o mérito em receber o título de vencedora. Afinal, cheguei primeiro! Porém, tu tens sido uma concorrente meritória. Ainda não paraste. E eu, preguiçosa como sempre fui – a lebre riu-se de si própria como quem fala de alguém muito engraçado que conheceu no café – aproveitei a tua desvantagem física para me estender à sombra do chaparro. Isso faria de ti uma justa vencedora da corrida!

- Ambas as hipóteses têm o seu mérito – disse a tartaruga, de olhos na meta.

- Como assim? Não acharias muito mais justo seres tu a ganhar?

- Depende.

- Do quê?

A tartaruga olhou a lebre nos olhos.

- Depende do prémio.

- Do prémio? Ora, o prémio é só um. É ganhar a corrida.

- Talvez – a tartaruga voltou a olhar em frente, agora com um ligeiro sorriso na cara – Se estamos a fazer uma corrida para ver quem chega primeiro à meta, então quem chega primeiro à meta é a vencedora. Mas vence porque corre mais rápido que a concorrente, só por isso. Ou porque tem as pernas maiores, como tu. Ambas podemos percorrer o mesmo caminho, só que tu tens a vantagem biológica de ser uma corredora natural e eu não.

- O que só torna a situação ainda mais humilhante para ti – concluiu a lebre – Aliás, devo dizer-te que nunca percebi muito bem por que é que aceitaste este meu desafio.

- Porque não haveria de aceitar?

- Ora, porque está-se mesmo a ver que…

A lebre calou-se.

- Sim? – perguntou a tartaruga – Ias dizer que está-se mesmo a ver que serás tu a vencedora?

- Isso não é verdade – resmungou a lebre, começando a mastigar a relva.

- O que faria de ti uma batoteira, porque já sabias o resultado da corrida antes de ela ter começado. Aliás, admite-me lá uma coisa… - a tartaruga olhou para os olhos da lebre e o seu sorriso estava mais aberto que nunca – tu só me convidaste para esta corrida para me poderes ganhar, não foi?

A lebre parecia ligeiramente irritada.

- Ou – disse a tartaruga – talvez... possivelmente… Me tenhas convidado para uma corrida para que me deixasses ganhar, e assim dar uma forte lição aos teus filhos e aos outros animais da floresta: uma lição de modéstia, de mérito, de igualdade para todos os animais. Perder uma corrida com uma tartaruga! Tu, a mais veloz da floresta! Se fosse o caso, cara lebre, penso que é de inegável justiça seres tu a vencedora; nem que seja porque te tornarias num mártir e melhor ainda, num exemplo!

A lebre estava sem palavras. A meta parecia agora mais próxima.

- Estás a chantagear-me – acusou a lebre, mastigando a relva com mais força.

- Não – disse a tartaruga, mostrando-se quase ofendida – Estava simplesmente a reflectir sobre o dilema que me colocaste. Afinal, quem deve ganhar?

A lebre mordeu o lábio, irritada, e deu um rápido pontapé à tartaruga, que se virou com um salto e ficou de barriga para cima, esperneando no meio da estrada. A lebre largou a correr, veloz como sempre, com os olhos na meta.

Anoiteceu. As tartarugas pequeninas vieram ajudar o pai a virar-se, e acompanharam-no a casa. Ficaram com ele no charco, ajudaram-no a tirar os grãos de areia dos olhos e da carapaça, e depois deixaram-no dormir. A mãe explicou-os que o pai tinha ganho uma corrida muito importante nesse dia, e precisava de descansar. E lá fora, por entre as árvores da floresta, todos os animais festejavam mais uma vitória da lebre mais veloz do mundo. 

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Samora 47


- A nossa capacidade de identificar algo como original é a medida da nossa ignorância – sentenciou Samora, enquanto visitávamos uma livraria de autores contemporâneos – Observe-me todos estes jovens talentos. Não passam de imitadores de outros que vieram antes deles e que, por viverem num mundo onde as coisas andavam a rastejar e não a correr, nunca chegaram a prémios e menções honrosas e exposições internacionais. Você olha para um livro destes e pensa, Que frescura narrativa, que ideia brilhante, que estrutura invejável, que  tem este? que toma ele de manhã para escrever assim? Pois quanto mais vezes repetir isso, meu caro, maior  a garantia de que é ignorante. Porque não sabe, nem deseja saber, que outros antes desse tiveram e aplicaram as mesmas ideias. Hoje já não há invenções.  

domingo, 21 de agosto de 2011

Samora 46


Samora era um pouco mais alto que eu e o seu corpo possuía a forma de uma pera gigante: pelo ventre, barriga e coxas um tanto inchadas, pelo afunilar da medidas à medida que se sobe até ao pescoço, e finalmente pelos dois queixos e pela cabeça oval. Cabelo claro, levemente suave, que Sara afagava com afrodisíacos movimentos do indicador. Olhos arredondados, nariz grego, bocarra em concordância com os enormes pedaços de carne que por vezes consumia. Tez pálida pela falta de exposição solar, e uma crónica e impenetrável camada de suor desde o couro cabeludo, atravessando a testa, e chegando à orla das sobrancelhas espeças: camada essa que limpava com assiduidade utilizando o lenço branco que transportava sempre consigo. Sempre houve em Samora uma presença notável, um andar pesado mas consciente, uns movimentos estudados, educados mas rudemente orgânicos, como se a sua constituição física moldasse continuamente o tecido do espaço-tempo e assim obedecesse ao mais alto desígnio da alma que transportava: o de desafiar todos os Homens e todas Coisas a compreenderem que lhe eram inferiores.  

O Patinho Horroroso


Era uma vez um espetacular Charco de 5 estrelas onde vivia a elite dos animais mais afortunados e as grandes personalidades do mundo animal.

O Charco era onde grandes empresários, como o Sapo Castro-Mayor, se dedicavam a oferecer vários carros, casas, brinquedos, póneis e idas as estrangeiro aos seus filhos, com o intuito de lhes demonstrar o quanto o dinheiro custa a ganhar; era onde figuras incontornáveis da vida pública, como a Cobra Pipita, se bronzeavam, escolhiam os seus vestidos, maquilhavam, preparavam-se para festas e, no geral, se fartavam de trabalhar; e onde famosos como a Libelinha Martinha garantiam que continuavam a ser modelos para as novas gerações, publicitando marcas de roupa, champôs e festas nas Tocas mais in da floresta.

Mas a nossa história centra-se numa família muito particular do Charco de 5 Estrelas: a Família Patto.

O pai Patto, um empresário de sucesso na área dos cogumelos exóticos, era um pato gordíssimo, com fatos dispendiosos de marca, que transportava sempre um maço de notas no bolso caso fosse preciso pôr gasolina ou exibi-lo a algum vizinho.

A mãe Patto, por seu lado, não ligava absolutamente nada ao dinheiro; prova disso é que não trabalhava, e preferia muito mais andar com o cartão de crédito do que com notas e moedas no bolso. Senhora respeitada em todo o Charco, participava em festas, cocktails e outros eventos de enorme importância cívica e social. Além disso, partilhava a lida da enorme casa onde a família Patto habitava com cinco emigrantes totalmente legalizadas e o cisne-jardineiro, musculado e atraente: enquanto as empregadas lavavam, esfregavam, cozinhavam e passavam a ferro, a mãe Patto supervisionava as operações, garantindo a coerência cromática das almofadas, a suavidade dos toalhões turcos, o tempero dos canapés; tudo isto sem deixar que o verniz das suas penas estalasse ao sol!

E, para afastar as más línguas que a acusavam se ser superficial, a mãe Patto costumava dizer que as aparências, para ela, eram pouco importantes quando comparadas com uma série de coisas das quais, assim de repente, não se conseguia lembrar.

Os pais Pattos tinham cinco filhos, todos eles com dois nomes próprios e uma personalidade individual e desenvolvida. Acompanhavam a mãe a todos os acontecimentos sociais, gostavam se sair com os amigos (mas só, claro, se fossem animais de bom gosto!) e, principalmente, de ler e desenvolver as suas capacidades cognitivas. Por isso, adquiriam, liam e decoravam todas as revistas cor-de-rosa e ficavam só ligeiramente felizes quando apareciam fotografados em alguma delas. “Nós defendemos muito a nossa privacidade”, declarou até a mãe Patto numa das muitas entrevistas que deu em sua casa.

A família Patto tinha uma existência calma e pacata; até ao dia em que uma notícia esmagou o bem estar generalizado e a possibilidade de a mãe Patto usar aquele vestido vermelho maravilhoso para a festa do Sapo Castro-Mayor: ela estava à espera de patinho!

Um dia, estava o pai Patto a preparar-se para sair mais cedo do escritório, o telefone tocou:

- Estou? O quê, já nasceu? Sim, vou já para aí!

O pai Patto desligou o telefone, pediu à secretária que cancelasse a noite no hotel, onde iriam discutir alguns pormenores estratégicos e técnicos sobre a empresa, e dirigiu-se ao hospital.

Mas a notícia de um novo rebento, inicialmente recebida com alegria, transformou-se em pesadelo. O pai Patto entrou no quarto da sua esposa e esta, a chorar, recebeu-o de braços abertos:

- É terrível!

- O que aconteceu ao patinho? Falta-lhe uma asa?

- Não!

- Faltam-lhe duas asas?

- Pior!

- Faltam-lhe duas asas e o bico?

- Quem me dera! – a mãe Patto, destroçada, limpou as lágrimas e gemeu: - Ele é horrível!

O pai Patto dobrou-se sobre o berço e soltou um grito. Lá dentro estava um grande naco de carne com meia dúzia de penas, uma cabecinha torta e distorcida, dois olhos estrábicos, e duas asinhas deslocadas e mortiças.

- É... é...

- Um desastre de viação! – gritou a mãe Patto – O que vou mostrar à revista Bicos quando me pedirem uma sessão fotográfica?

De facto, o Patinho era mesmo muito feio; aliás, era horrendo! Mas depois de muito apoio das suas trezentas amigas íntimas e de algumas palavras bonitas do marido, a mãe Patto concordou em levá-lo para casa sem o dar para adopção; e o Patinho, apesar de horroroso, cresceu junto dos seus irmãos como se fosse um pato normal.

Mas não pensem que o Patinho teve uma vida fácil! Chamava a atenção de todos os outros animais por causa do seu coxear, por ter os olhinhos tortos e por não ser campeão em nenhum desporto. Até os irmãos brincavam com ele, utilizando-o para treinar tiro ao alvo, como desculpa para terem más notas na escola, ou como forma de despertar a compaixão nos seus amigos mais populares!

O Patinho Horroroso teve, por isso, uma infância difícil. Cresceu na arrecadação (onde os fotógrafos nunca chegavam) e, sem amigos, foi-se entretendo sozinho. Parecia fazer de propósito para aborrecer os irmãos patinhos e os colegas de escola! Gostava de ler, de ver as notícias, de estudar e, pior do que tudo... ter opiniões!

Mas a situação conseguia ser ainda pior para o solitário Patinho Horroroso: a única pata de quem ele gostava no Charco, conhecida como Pata Patuxka, era tão, mas tão bonita e popular que nunca quereria sequer ser vista a falar com ele!

- No outro dia – disse um insecto chique, amigo dos irmãos do patinho horroroso, no recreio da Escola Privada do Charco – apanhei o teu irmão sentado num banco. Fui lá e nem lhe fiz mal nenhum, só lhe dei um empurrão e perguntei “O que estás a fazer, seu esquisito”? E ele respondeu-me: “Nada, estou a pensar!”

Os animais no recreio riram com gosto e uma lontra perguntou até o que era isso de “estar a pensar”. Os irmãos do Patinho Horroroso juntaram-se à festa e contaram aos amigos, por exemplo, que o patinho lia livros sem ilustrações, que não tinha o mínimo jeito para pentear as penas e que (imaginem!) preferia ficar em casa a estudar a ir à inauguração de uma discoteca nova!

O Patinho Horroroso, escondido a um canto, ouviu tudo e ficou muito magoado! Enquanto limpava as lágrimas do bico abaulado tomou uma decisão. Foi a casa, encheu a mochila da escola com livros, a escova de dentes e uma bússola e, sem dizer nada a ninguém, fugiu do Charco de 5 Estrelas!

- Estou cansado de ser maltratado! – dizia o Patinho Horroroso, caminhando pela estrada – Porque é que não me podem aceitar por aquilo que sou?

Caminhou durante muitos dias até chegar a outro charco, mais pequeno e pobrezinho, onde esvoaçava uma família de patos bravos.

- Olha, mamã! – disse uma patinha brava – Está ali um visitante!

Os patos bravos aproximaram-se todos do Patinho Horroroso e deram-lhe as boas vindas.

- De onde vens? – perguntou um dos patos bravos.

- Do Charco de 5 estrelas – respondeu o Patinho Horroroso.

- Uau! – disseram os patos bravos, surpreendidos; e começaram a fazer imensas perguntas ao Patinho Horroroso: quem era a sua família, se era rico, se conhecia a Libelinha Martinha, se tinha uma toca com vista para o mar... Até o convidaram para jantar!

E o Patinho Horroroso, educadamente, teve de recusar:

- Desculpem, mas tenho outros compromissos...

Como sabem, o Patinho Horroroso não tinha compromissos nenhuns, até porque nunca fora convidado para nada na sua vida. Ele só estava era triste por ninguém perguntar nada sobre ele, mas sim sobre os seus vizinhos! Foi aí que o Patinho Horroroso percebeu uma coisa muito importante...

- Já que não posso ser amado por aquilo que realmente sou, posso ser amado por aquilo que os outros vêm em mim! – disse o Patinho Horroroso, cheio de esperança – Tenho de regressar ao Charco de 5 Estrelas!

Mas primeiro o Patinho Horroroso dirigiu-se a um edifício enorme que tinha à entrada uma tabuleta que dizia:

DERMOLASER: Sinta-se bem consigo mesmo!

- Senhor doutor! – disse o Patinho Horroroso, cheio de vontade de chorar - Preciso urgentemente de auto-estima e só o conseguirei quando for bonito e atraente para as outras pessoas! Isto com personalidade não vai lá!

O médico olhou para o Patinho Horroroso e deu um passo atrás:

- Pela tanga de Mogli... Você é um caso extremo! Mas fiquei comovido pelo seu mau aspecto e, claro, pela sua força interior. Vou operá-lo!

- Não tenho é dinheiro para pagar a operação... – murmurou o Patinho Horroroso.

- Não se preocupe, Sr. Patto – disse o médico com um sorriso – A sua mãe tem conta aberta aqui na clínica!

Durante duas longas e penosas semanas o Patinho Horroroso foi submetido a uma profunda transformação pessoal. Fez um tratamento de hidratação para as penas, ginástica localizada, solário e, finalmente, uma bicoplastia.

- Parabéns, senhor Patto! – disse o médico, no final do processo – Está um pato diferente! Quer ver o resultado final?

O Patinho Horroroso, nervoso, disse que sim; e quando se viu reflectido pelo espelho nem queria acreditar nos seus olhos (que, a propósito, estavam direitos e azuis)! Tinham-no transformado num belíssimo cisne com asas simétricas, um bico dourado, penas branquíssimas e um pescoço comprido e elegante.

- Agora sim tenho orgulho no pato que sou – disse para consigo o ex-Patinho Horroroso, comovido.

O seu regresso ao Charco de 5 Estrelas foi glorioso: a mãe Patto aproveitou os restos da festa que dera em honra da fuga do seu filho horroroso e celebrou, felicíssima, a chegada daquele cisne lindo. Os irmãos, também contentes, quiseram ser fotografados ao lado do irmão, e no dia seguinte sairiam na capa da Bicos como uma família verdadeiramente unida. Todos os animais do Charco quiseram meter conversa com ele e todos lhe elogiaram a inteligência, os estudos, a postura e a atitude confiante!

E a Pata Patuxka, o amor de infância do Patinho Horroroso? Veio convidá-lo para ir com ela a uma festa de Verão!

- Eu sou o mesmo pato que tu negaste há uns tempos atrás! – disse o ex-Patinho Horroroso, envergonhado.

- Sim, mas agora posso ver o quanto és realmente especial! – respondeu a Pata Patuxka, abraçando-o a tempo de ser apanhada pelo flash de um fotógrafo. 

Foi assim que o Patinho Horroroso aprendeu que a aparência não é tudo num pato, mas o pato deve fazer tudo pela aparência! O Cisne em que se transformou foi finalmente aceite no Charco de 5 Estrelas... e viveram todos muito belos (e felizes) para sempre.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Samora 45

Com os simples há que falar de forma a corresponder às suas capacidades – defendeu Samora, enquanto esperávamos que um dos funcionários enrolasse o presunto que acabáramos de comprar - A interacção social entre desconhecidos que partilhem uma temporária circunstância em comum parece, infelizmente, obrigatória. Quantas vezes não encetei já intermináveis diálogos com funcionários de gasolineiras, senhoras na fila do supermercado, ou com a empregada doméstica? Não chegarei nunca ao pé deles perguntando qual a sua opinião sobre Locke ou o que pensam dos epicuristas; ao invés, direi: “Como tem passado? Ontem choveu. De facto, os combustíveis estão mais caros. Ainda ontem tive de sair de casaco para a rua”, ad infinitum. Uma interminável lista de lugares-comuns que a mim me aborrece mas aparentemente faz as delícias destas pobres almas. Não há que culpá-las mas sim compreendê-las, da mesma forma que comunicamos com um cachorro com uma festa na cabeça. Lá porque somos mais inteligentes que o cachorro e lhe afagamos o pêlo não significa que estejamos a ser condescendentes; significa apenas que estamos cientes do enorme abismo que nos separa, e por isso descemos às catacumbas onde habitam os pobres animais.
 

No Correio da Manhã de hoje:

Renato Rocha, detido na passada Terça-feira, foi hoje libertado após um curto e desinteressante julgamento. Rocha foi acusado de desobediência civil na sequência de declarações sobre a praia e sobre os portugueses.

“O meu cliente foi condenado a fazer praia até ao final do mês de Agosto”, revelou à saída do Campus da Justiça o advogado de defesa, Paulo Marques. Segundo o despacho do juiz António Saraiva, Rocha está ainda obrigado pelo tribunal a cumprir mais de 30 horas de tradições de Verão, que incluem passear-se com uma marmita, aplicar protector solar a cidadãs gordas e consumir bolas de Berlim com creme. “As declarações do arguido inserem-se no campo da liberdade de expressão mas as suas repercussões sociais não podem ser ignoradas por este tribunal”, acrescenta o juiz.

“Parece-nos uma condenação demasiado leve”, declarou a Comissão de Utilizadores do Litoral Alentejano, que anteriormente tinha criticado Rocha. “Esse senhor merecia ser posto a servir a praia portuguesa, limpando beatas e garrafas abandonadas e distribuindo cinzeiros. Só assim estaria a Justiça a punir a verdadeira ameaça à nossa costa”.

Também Comissão Evangélica Portuguesa, crítica das comparações estabelecidas por Rocha entre a água do mar e o funcionamento do órgão sexual feminino, reagiu em comunicado: “O Sr. Rocha, um neo-ateu, escreveu no seu blog a palavra “lubrificação”, destruindo a inocência de milhares de bebés cristãos em todo o mundo. Só Jesus mesmo pode perdoar um acto de tão descontrolada liberdade de expressão”. Os responsáveis pela Comissão encontram-se neste momento reunidos para uma pesquisa global pela Bíblia em busca do correcto castigo para aquele que refere lubrificação vaginal em público.

A opinião pública, pouco solidária com Rocha, vira-se agora contra o juiz responsável pela decisão. Um grupo de utilizadores do Facebook chamado “Vamos mandar uma marmita cheia de marisco podre pelo correio àquele juiz corrupto de uma figa” conta já com mil e duzentos apoiantes, e promete reunir mais apoiantes nas próximas horas não por mérito próprio mas simplesmente por ter sido referido neste artigo.

Espera-se agora que Rocha se veja obrigado a dividir o seu tempo entre o seu desconhecido blog e o serviço comunitário a que foi condenado. Antes de se afastar a caminho de casa, Rocha declarou aos jornalistas: “Sinto-me de consciência tranquila, mas agora tenho mesmo de ir para a praia”.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Cento e vinte e quatro


O tempo é relativo: até os físicos contemporâneos, pelo menos alguns deles, duvidam da existência do tempo. Será ele uma dimensão material e calculável da realidade ou uma interpretação nossa, na tentativa humana e falível de compreender como as consequências seguem as causas e não o contrário?

Para Rodrigo, o tempo sempre lhe passara ao lado e fora consequência normal do tecido do cosmos; mas neste momento, em que corre pelo corredor do hospital afastando macas e enfermos do caminho, sente o tempo como nunca sentira antes: parece-lhe não só material, mas quase sólido. O tempo que demora a descer o corredor, pé ante pé, salto após doloroso salto, estica-se, enrola-se e impede-lhe o movimento como um muro. Se até os maiores físicos discutem o assunto, quem é ele, Rodrigo, para correr desta maneira e assim alterar o tempo, moldá-lo ao seu gosto, e demorar menos a descer o corredor e a encontrar o filho?

O tempo que o leitor demora a ler um parágrafo não é o mesmo que o tempo que Rodrigo ocupa a descer o corredor; e ainda assim parece que os intervalos de tempo das duas acções se encontram e conspiram para dificultar a vida do personagem! Afinal que é uma narrativa senão a soma do que corre mal? Vejamos: se o tempo andasse à passada habitual e se tudo na vida corresse pelo melhor, Rodrigo nem estaria naquele hospital. Estaria sozinho, sentado, a beber uma bebida ou a ver um filme. Ligaria ao seu filho para saber como correra a viagem, e diria assim:

- Já chegaste? Como está a tua mãe? Manda-lhe um beijo meu.

Essas coisas entre um pai sozinho e um filho que não gosta de falar ao telefone.

Mas as coisas não são assim, as histórias são feitas para serem contadas e não para serem agradáveis. Na verdade, o avião que transportava o seu filho não aterrou calmamente no outro lado do país, junto à fronteira. Aliás, mal levantou voo. Deu de caras com a tempestade do século, assim a chamavam agora na televisão por causa de todos os acidentes, e foi de narigudo nariz ao lago. Quebrou-se em dois, toda a gente saiu de casa a ver as chamas e ouvir as sirenes. Também para aqueles passageiros azarentos o tempo se moldou mas não ao seu gosto: em vez de lhes acelerar a perda de sentidos ou a morte, demorou-se; e mostrou-lhes, em câmara lenta como nos filmes, cada pedaço de ferro quebrado a voar, cada rugido da estrutura a dobrar-se, cada golfada de água entrando e varrendo a classe económica.

O tempo caminha a seguir contra os bombeiros as lanchas de salvamento que se desdobram buscando sobreviventes. Uns nadam até à praia fluvial, onde encontram cobertores. Outros nadam perdidos e quando acham que estão quase, mesmo quase a chegar à superfície da água, descobrem que não só o tempo mas o mundo se virara ao contrário e nadavam afinal na direcção do fundo do lago. Esperemos que o filho de Rodrigo, nadador aliás exemplar, membro da equipa de natação escolar, medalha de bronze no campeonato do distrito, seja capaz de mais rapidamente se adaptar à água fria e ao som do avião enorme que, na escuridão da água, se afunda, dobra e contorce, levando consigo os mais incautos para as profundezas do rio. Mas já se disse e repete-se: numa história, qualquer que seja, as coisas boas não merecem atenção.

Rodrigo chega finalmente ao fim do corredor (só agora; mais uma vez o tempo moldando-se às necessidades deste narrador sádico), agarra num médico pelo colarinho:

- Onde está o meu filho?

O médico está num turno normal, já viu morrer muito miúdo e já viu muitos pais descendo aquele corredor para lhe fazer a mesma pergunta. Leva o braço à volta deste pai: não sabe o seu nome mas compreende a sua dor, e sente-se até mal consigo próprio porque será ele o portador da notícia. Naquele momento em diante a vida daquele homem será diferente. O tempo que antes se acelerava daquela maneira estúpida e cruel (num momento o miúdo nasce, no outro usa a sanita, no outro equilibra-se sem rodinhas, quando damos por ele vai à escola e cresce-lhe buço) irá agora estender-se de propósito e transformar a vida numa luta contra a lenta passagem das horas. Não quer demorar-se mais, este médico ingrato pela posição que ocupa. Diz:

- Lamento muito.

O pai não precisa de mais, lança-se num pranto, desce sobre uma cadeira e enterra a face na mão. Levanta-se outra vez, agarrado a uma esperança:

- Como sabe?

- Só ia uma criança a bordo – responde o médico quase seco. Arrepende-se. Foi como que dizer àquele homem que a sua criança era ainda mais única e importante do que ele achava anteriormente.

- Quero vê-lo – responde o pai, porque não acredita. Atravessa seguindo o médico metade do hospital. Aceleremos, então: um lance para cima, um corredor, vira à direita, vira à esquerda, duas portas de par em par, mais um corredor longo e em silêncio, este pai sente já estar mais perto do mundo dos mortos que do mundo dos vivos. Não há direito, conduzirem por aqui um pai esperançoso de chegar à maca e ver lá estendido e morto o filho de alguém que não ele.

Agora alteremos o tempo outra vez, depois de o termos acelerado para assim mostrar a angústia palpitante deste pai. Detenhamo-nos no momento em que Rodrigo recebe a pesada confirmação do seu pavor, e se dobra sobre uma maca de ferro fria numa sala branca sobre a cabecinha pequena e húmida de um menino. É ele, pensará. Enregelado, com a pele cinzenta e os lábios quase verdes e os olhos respeitosamente fechados por um par de dedos misericordiosos e anónimos. Rodrigo chora e o médico recua, sai da sala, encosta-se à parede do corredor silencioso e pela porta fechada ouve o soluçar daquele homem. Não sabe o nome da criança nem o nome do pai, e no entanto teve a responsabilidade de estragar a vida aos dois. Não conseguiu salvar o primeiro, causas puxam consequências e sem querer deixa morrer também o segundo. Põe as mãos nos bolsos da bata suada, lambe os lábios, baixa a cabeça. Interrompe aquele choro? Deixa-o a sós com o corpo? Que fazer? Despido de profissionalismo, o médico sente-se subitamente um homem.

Voltemos ao interior da sala para ver o que sucede ao mesmo tempo: assim se desdobra também o tempo à vontade do narrador e permite olhar para duas sequências de acontecimentos paralelos sem que o normal decorrer dos mesmos sofra qualquer inconveniência. Observemos agora o homem que beija a face do filho lavada em lágrimas gordas. Afaga-lhe o cabelo como sempre fez para o adormecer, lança-lhe palavras de conforto e inventa que culpa foi toda sua. Diz aquelas coisas que nunca disse por vergonha ou por inconveniência, todas aquelas coisas que nos ensinam a não dizer enquanto estamos vivos porque nos expõem a carne e as vísceras: que o ama muito, que sempre o amou, que o amará sempre, que é a pessoa mais importante da sua vida, que será dele sem o seu menino. Não percamos tempo, essa grandeza inestimável, a convidar lugares comuns. Eles estão lá, só são ditos nestas ocasiões e por ali os deixaremos. Despedimo-nos então deste pai com a certeza de que o tempo que teve não foi suficiente, e que o tempo que tem pela frente está a mais.

Afinal que é a vida senão a soma do que corre mal?


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Dicionário Rocha #2


Ligeira – eufemismo para “música de má qualidade”

Ché – cidade marroquina na qual viveu o Sultão Ché, conhecido disléxico e inventor de uma bebida apelidada pelo próprio de “chá” em honra de si mesmo.

Giganteu – nome próprio atribuído às crianças não desejadas pelos pais

Atroo – Deus africano possuidor de cento e cinquenta ossos de elefante espetados nas orelhas e controlador das secas, das savanas e das doenças digestivas.

Quadrissílado –nome próprio atribuído às crianças ainda menos desejadas pelos pais

Desértico – adjectivo atribuído aos espaços onde são projectados filmes portugueses

Apunhalar- acto de aleijar face alheia recorrendo ao punho fechado

Egocentricidade – teoria religiosa desenvolvida pelo povo Ego, oriundo da Mesopotâmia, e segundo a qual todos os seres vivos são secretamente o único criador do Universo conhecido.

Mima – mulher do Mimo

Nugacidade – grandeza desenvolvida por Alfred Nugah, cientista austríaco do início do séc. XIX, e que se relaciona com o grau de má educação apresentado pelo taxista comum. O máximo valor da escala de Nugah, 10 pontos de nugacidade, refere-se à estirpe “taxista de aeroporto”. 

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

No "Diário de Notícias" de hoje:

Fontes da Polícia revelaram ao nosso jornal que Renato Rocha, um desconhecido autor de um blogue a preto e branco, foi formalmente acusado de desobediência civil e preso preventivamente na passada Terça feira à noite. Ao que foi possível apurar, esta acusação surge no seguimento de declarações feitas por Rocha a alguns amigos e familiares que provocaram uma onda de contestação: o autor terá dito que não apreciava ir à praia, e que preferia dedicar o seu tempo a actividades como a escrita, a leitura de livros de qualidade e a visualização de filmes considerados pela acusação como “demasiado intelectuais para o mês de Agosto”.

Na casa do arguido foram encontrados uma série de DVD's de filmes estrangeiros, um computador com vários documentos Word de várias páginas e mais de dez livros que não são nem de Rodrigues dos Santos nem biografias de alguma rainha de Portugal: todos os indícios levam o Ministério Público a temer pelo equilíbrio mental do arguido, o que conduziu à sua prisão preventiva. 

“Estamos a falar de um típico caso de superioridade egocêntrica” defende Carlos Pires, psicólogo. “Renato Rocha tem claramente enraizada a crença de que é superior aos outros cidadãos, e por isso criou para si esta personagem que encarna. Todos os portugueses gostam de praia, toda a gente sabe disso. Ele só quer chamar a atenção e ser diferente dos outros”. O especialista acrescenta ainda que “As razões que levam o Renato Rocha a negar a praia desta forma tão apaixonada devem ser estudadas pelo tribunal. A sentença final deve ter em conta o estado psicológico do rapaz”.

A Comissão de Utilizadores do Litoral Alentejano, local onde Rocha se encontrava de férias no momento da sua detenção, já reagiu. Em comunicado, a Comissão diz que “O Sr. Rocha tem claramente algo contra a praia, contra a nossa costa, contra o Alentejo e consequentemente contra Portugal. É uma falta de patriotismo, nesta altura de crise, criticar desta forma selvagem as praias portuguesas e assim afastar os possíveis turistas”.

Dona Amélia, a porteira do arguido, encontra-se em estado de choque. “Confesso que quando ele chegou cá ao prédio me parecia alguém completamente normal. Um jovem simpático, que dizia os bons dias. Quando vi as notícias de hoje fiquei horrorizada. Uma vez tivemos um extremista de direita aqui no prédio, e depois disso nunca pensei encontrar-me uma situação semelhante mas ela aqui está”.

“O Sr. Rocha foi constituído arguido mas é só o que lhe posso dizer neste momento”, diz Paulo Marques, o advogado de defesa de Rocha. Marques não comentou os recentes posts publicados pelo seu cliente no seu blog, nos quais ridicularizava cidadãos em contexto de praia. Num deles, jovem compara as brincadeiras na água entre namorados ao processo de lubrificação antes do acto sexual: texto que a Comissão Evangélica Portuguesa já apelidou de “anti-cristão e muito, muito, mas muito ofensivo” e a Associação de Sexólogos Nacionais de “incitador de interpretações erradas sobre o fenómeno da lubrificações vaginal”.

A opinião pública não vê com bons olhos a tese defendida por Renato Rocha. “Eu senti-me ofendido”, diz um popular na praia. “Aquilo não se diz de ninguém. Um gajo não gostar de política é uma coisa. Agora, não gostar de praia é demais. Se até o Marcelo Rebelo de Sousa é conhecido por ir a banhos, quem é que esse Roberto Rocha pensa que é? Melhor que o Professor?”

Também nas redes sociais de move a onda de contestação. O grupo “Vamos enviar por correio um saco de areia com beatas para esse parvalhão do Renato Rocha para ele ver quem é que manda aqui” já conta com dois mil apoiantes.

“O blogue não vai parar”, garantiu Rocha a um minúsculo grupo de apoiantes à porta do Campus da Justiça. “Já pedi a um amigo que continue a publicar algumas coisas que tinha escrito antes de ser detido. Por agora estou concentrado em provar a minha inocência”.

O julgamento está marcado para a próxima Quinta feira.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Vinte e sete

Aviso: a história que se segue foi escrita no âmbito dos "creative promps" mas atingiu as 21 páginas e, portanto, o estatuto de "lombriga". O leitor ficou avisado. 





- De onde vem? – pergunto, olhando-o de frente. Perco a cerimónia: os meus olhos estão presos. O copo, transparente, amarelado, brilhante, responde-me resplandecente como uma mulher que pisca o olho do outro lado de um bar.

- Não sabemos – responde a mulher com maus modos e que tenta a todo o custo acelerar o processo.

- É fascinante... – digo. Esqueço a mulher; que me importa ela? Com aquela cara de cavalo e a farda a cheirar a mofo deseja a todo o custo dar por terminada a visita. Odeio isso. Odeio profissionais sem brio no que fazem, mesmo quando a sua actividade se resume a mostrar aos outros uma casa velha.

- Seguimos para a próxima sala? – diz ela, fingindo boa educação.

- Espere. Preciso de saber mais sobre o copo.

- Que copo?

O copo vazio está em cima de um monte de livro antigos e poeirentos empilhados sobre uma escrivaninha. A física dirá que está prestes a cair e a partir-se. Que amor súbito é este que sinto pelo objecto? Que vontade é esta de o enfiar no bolso da gabardine enquanto a mulher desprezível vira as costas? Não sou um ladrão. Nunca fui. Sê-lo-ei a partir de hoje?

- Item 3465B – diz a mulher, arrastando a voz com o entusiasmo de uma administrativa. Consulta um enorme dossier que carrega debaixo do braço e sentencia – Copo de origem desconhecida, datado do início do séc. XX. Valor calculado: insignificante.

- O que é “insignificante”? – pergunto.

- Insignificante é insignificante.

- Mas que significa isso traduzido em números? Um euro? Dois?

- Insignificante.

- Ouça, faça-me o obséquio de facilitar-nos a vida, por favor. Não tenho o dia todo; nem a senhora, a julgar pelo entusiasmo que a caracteriza.

Ela consegue um suspiro.

- Estes artigos não estão para venda.

- Porque não?

- Porque não.

A mulher mantém a cara de cavalo, estática. Uma profissional dos maus modos. Apetece-me esmurrá-la. Transformo-me lentamente num potencial ladrão e agressor de mulheres. Belo fado!

- Se tem um valor insignificante até deveria ser grátis.

- Não fazemos esse tipo de ofertas por aqui.

- Ouça –procuro por entre os bolsos da gabardine – Tenho aqui dez euros. Chega?

Os olhos de cavalo moribundo iluminam-se. O cheiro a notas acabadas de tirar de um bolso desperta nestes negociantes uma reacção automática.

- Penso que sim – responde a mulher. Meto-lhe as notas na mão, dobro-me sobre um dos armários velhos e atinjo o copo de vidro amarelo. Toco-lhe com os dedos: é de uma suavidade extrema. Agarro-o como se agarrasse uma mulher. Levo-o ao bolso, imediatamente, com um reflexo amedrontado: o copo é meu e não o quero perder nem partir. Não digo palavra à mulher negociante, que alisa as notas que lhe dei usando o tampo de uma mesa. Saio.

Perco algumas horas caminhando pela cidade. Paro num café, sento-me na esplanada, peço uma Coca-cola. Retiro o copo do bolso e coloco-o sobre a mesa. Há algo nele que resplandece e que desperta a minha curiosidade. Início do séc. XX? Parece-me mais velho. Não deveria ser mais valioso? Um copo de vidro destes sobrevive sem ser partido mais de cem anos e ninguém dá nada por ele. Perdido e poeirento no topo de uma pilha de livros rasgados. Triste sina.

Chego à conclusão que pertencerá a um conjunto maior, e daí valer quase nada. Retirado do seu contexto, é apenas um copo amarelo e velho; mas, ao imaginar uma mesa cheia de copos iguais, não deixo de sentir um arrepio agradável.

Chego também à conclusão de que é feio; aliás, horrível. Possui protuberâncias ritmadas a todo a superfície exterior, em forma de pequenos diamantes, o que lhe dá uma textura forte e torna-o fácil de segurar. Nem toda a gente iria gostar de tamanho pedaço de vidro amarelo. A mim, despertou-me tudo.

Pago a Coca-cola e desço a avenida. Não tenho que estar em casa senão às sete e meia, a tempo de preparar o jantar para a Marta. Paro num supermercado, compro um pacote de cajus, desço uma ruazita a comê-los. Ainda tenho o copo no bolso, bamboleando ao ritmo dos meus passos. De súbito sinto medo de o poder partir; tiro-o do bolso à pressa, agarro-o com ambas as mãos. Continuo a comer cajus mas agora com o copo amarelo na mão.

E questiono-me: é um copo normal ou haverá mais nele do que aquilo que parece? Compreendo subitamente que nunca me dediquei a aprender o mínimo que fosse sobre copos. Sempre os tomei como garantidos, como a água potável ou as gasolineiras nas auto-estradas. Gabo-me da minha curiosidade, da minha sede de conhecimento, da minha colecção de enciclopédias; e no fundo, que sei eu sobre este copo? Que sei eu sobre qualquer copo? Lição pessoal, aprendida hoje: aprender sobre copos não é menos importante que aprender sobre Locke, Sócrates ou a Revolução Francesa. Não devia ser. Que tipo de mundo é este em que vivemos, onde um copo é desconsiderado desta maneira? E quem sou eu para o desconsiderar? Viajou cem anos até chegar a mim, e meto-o no bolso, o mesmo bolso que recebe todos os dias um novo pacote de cajus. E o respeito?

Perco-me em divagações e dou comigo na Baixa. Numa ruazita minúscula, a caminho da estação de metro, encontro um toldo velho e amarelecido que encima uma montra quadrada e baça. É uma loja de antiguidades das que vemos nos filmes. Aposto comigo mesmo outro pacote de cajus em como, ao entrar, darei de caras com um velhote desdentado e curvado, que me receberá com bons modos e me apresentará um cachorro de porcelana para pôr no hall de entrada, ou uma escrivaninha da qual perdeu a chave. Entro.

Lá dentro, uma perpétua nuvem de pó e de velhice flutua no ar estagnado. Consigo sentir os anos de todos os armários e bugigangas caindo sobre o meu peito como uma bigorna cronológica, bem como o mesmo respeito que sentira pelo copo amarelo que continuo a agarrar com as duas mãos. Tudo o que ali está já cá estava antes de mim, e com certeza viverá depois de eu morrer. Para coroar este esticar elástico do tempo, nada melhor que ver o velhote surgindo atrás de uma secretária, pousando a revista de palavras cruzadas e atendendo o único cliente da manhã.

Em vez disso, uma mulher absolutamente lindíssima põe a cabeça de fora de uma porta lateral e cumprimenta-me:

- Já vai, sim?

Volta a desaparecer. Pasmo. Acabo de perder um pacote de cajus. A rapariga reaparece e posso agora vê-la melhor. Todos os seus traços são antíteses perfeitas do universo velho e raquítico que a rodeia. Como se fizesse de propósito! É morena, de olhos enormes mas equilibrados e harmoniosos, corpinho pequeno mas elegante, e um pescoço suavíssimo pronunciado pelo rabo de cavalo preso junto à nuca. Vem até mim com um sorriso.

- Com certeza à espera de um velhote – diz-me com humor.

- Sinceramente...

- É normal, não é o primeiro nem será o último.

- Que faz você num sítio destes?

- Num sítio destes?

Abro os braços e enquadro as pilhas de móveis e de velharias.

- Herança de família. Feliz ou infelizmente.

- Uma rapariga tão bonita como...

- Oh, poupe-me a conversa – afasta-me com um aceno de mão e um sorriso – Que deseja?

Estendo-lhe o copo amarelo e a rapariga olha-o e perde o sorriso. A sua face corada empalidece e um soluço prende-se-lhe na garganta. O efeito do copo nela é claríssimo.

- Está bem? – pergunto. Também eu fiquei assim quando o vi pela primeira vez: um misto de desarmante surpresa e vontade de o possuir. Sentirá o mesmo?

- Onde encontrou isso? – pergunta-me ela baixinho.

- Estavam a vender o recheio de um casarão enorme. Passei por lá por acaso e despertou-me a atenção. Queria que me dissesse o que pensa dele.

A rapariga olha-me nos olhos. Os seus lábios estão organizados numa circunferência surpreendida e, confesso, bastante atraente.

- O que penso dele....

- Disseram-me que não valia nada.

A rapariga ri alto e regressa logo ao seu estado de surpresa paralisada:

- Não valia nada...! Deixe-me... Espere.

Precipita-se pela porta lateral e desaparece. Ouço gavetas a serem abertas e fechadas desordenadamente. Vou até lá. É um pequeníssimo estúdio escurecido e cheio de dossiers, pastas velhas e papéis amontados. Ela pesquisa por entre uma gaveta aberta.

- Está tudo bem? – pergunto.

- O meu avô contava-me histórias em pequena – disse-me ela. Fiquei à espera de mais, mas nada chegou.

- Histórias.

- Sim, histórias – ela interrompe a sua procura frenética e senta-se numa cadeira velha, segurando religiosamente uma folha de papel antiquíssimo – e um dia disse-me: Aurora (é o meu nome). Aurora, um dia serás a proprietária da minha pequena loja. Vais cuidar dela e trata-la bem e quem sabe chegue um momento muito especial. Depois...

Estende-me o papel. Eu seguro-o com cuidado, levando à boca os dedos sujos do sal dos cajus. É um manuscrito em latim, com uma caligrafia deselegante. Mal consigo distinguir letras.

– Posso vê-lo?

Estendo-lhe o copo e ela agarra-o, fascinada. Roda-o calmamente entre os dedos. Eu continuo com o manuscrito na mão.

- Que significa isto? – pergunto.

- O seu copo é uma espécie de mito na minha infância – Aurora sorri – Cresci a ouvir falar sobre ele e sempre pensei que fosse só mais uma história. Mas...

- Mas?

- O meu avô mostrou-me esse manuscrito e explicou-me que o copo aí descrito é o Santo Graal.

Sai-me um riso aberto, automático.

- Que disparate! – exclamo. Aurora olha-me com aspereza – Desculpe se a ofendi, mas... O Santo Graal?

- A mim não me soa melhor. Consegue ler o que aí está?

- Não sei latim.

- Não é latim, é português arcaico. Tem algumas semelhanças com o português moderno. Aí ao canto, em letras garrafais, diz: “O copo de onde o Senhor deu a beber aos seus...” qualquer coisa.

- Isto é um manuscrito velho, a confirmação de uma lenda e nada mais.

- Fosse só isso... O meu avô explicou-me que esse copo não é só o Graal. Dizem que é o copo de onde Sócrates bebeu a cicuta, que o seu fundo foi a inspiração para o telescópio de Galileu, que Carlos Magno bebeu dele nos seus banquetes, que Picasso olhou através da sua superfície irregular e teve a ideia de pintar As Meninas de Avignon... Alguns manuscritos defendem até que foi esse copo que caiu sobre o cocuruto de Newton e não a maçã!

Um sentimento de incredulidade assola-me. Olho para Aurora com outros olhos, de outra perspectiva: a rapariga doce transformou-se numa tarada. Que delírios são estes? Porque os ouço?

- Isso é fascinante. Suponho que esteja interessada nele...? – pergunto; mas arrependo-me de seguida. Lucrar com uma lunática? Financiar os seus desvarios? Com que mérito vou recuperar os meus sete euros (ou, já que o copo é assim tão importante, lucrar com a transação) aproveitando-me de uma rapariga inocente? Tento corrigir-me – De qualquer forma...

- Interessada nele? –Aurora levanta-se de um salto – Se estou interessada no objecto de maior importância da História? Isso é pergunta que se faça? Acha-a legítima?

- Bem...

- Mesmo que quisesse não o poderia comprar – diz-me, sentando-se outra vez – É demasiado valioso.

- Não me custou por aí além...

- Porque o comprou a quem não sabia o que estava a vender. Dirija-se a um especialista e garanto-lhe que tem uma reforma generosa mais do que garantida.

- Ai sim? – olho para o copo nas mãos de Aurora e suspiro. Tentarei manter-me sério, como se acreditasse nela. Não há outra coisa a fazer; de qualquer forma, gostaria mesmo de ficar com o copo – Sabe então indicar-me algum colega que...

- Preferencialmente um museu. O Museu de Arte Mundial, junto ao rio. Conhece?

- Conheço.

- Pois bem. Mas pelo amor de deus não ande com o copo assim na mão, de um lado para o outro! – Aurora agarra num jornal velho e enrola o copo com ele. Estende-me o embrulho. Agradeço e saio da loja com a cabeça zonza, como se acabasse de visitar outra dimensão. Que loucura! Consumo meia dúzia de cajus de uma vez e desço a rua, com o copo embrulhado num jornal velho debaixo do braço. Procuro um relógio e encontro-o na parede de um barbeiro: são sete e quarenta. Marta estará a chegar a casa.  

Nos dias que se seguem observo o copo amarelo sobre a minha mesa do escritório e penso em Aurora. Há em toda esta história algo de fantástico. Como pode aquela vendedora de antiguidades ser tão honesta comigo? O que deveria ter feito era simples: fingir que o copo era desinteressante mas suficientemente valioso para mo comprar por uma quantia sumária e depois recuperar o seus investimento multiplicado por milhões num leilão de Arte. Isto, claro, se houvesse algo de credível em toda a história. Com o passar dos dias, Aurora- louca dá lugar dentro da minha cabeça a uma Aurora- actriz. Deduzo que se não se comportou como imaginei, os seus propósitos eram outros. O copo é, de facto, um horrendo pedaço de vidro amarelo do início do século e sem qualquer valor monetário; e Aurora, sabendo-o melhor que eu, inventara toda a história para se divertir à minha custa. Sinto quase pena de mim próprio, vítima da minha própria superioridade: enganado por uma jovem presa dentro de uma loja de antiguidades, e mortinha por se divertir!

Num desses dias quentes, que anunciam uma tempestade, desço a pé a Avenida e vou até à Baixa. Dou num instante com a ruazinha e com o toldo amarelecido. Como cajus, mastigando com violência. Tenho de me acalmar antes de entrar. Tomara na noite anterior a decisão de entrar na loja desvairado de felicidade, dizendo que estava milionário com a venda do copo e que desejava oferecer a Aurora uma módica quantia pela ajuda prestada. Ver-se-ia apanhada de surpresa, sem lugar por onde fugir. Tiraria o meu livro de cheques, preenchê-lo-ia com uma quantia significativa e estendê-lo-ia a Aurora. Sairia, agradecendo uma última vez. Crendo que me tinha realmente enganado, iria ao banco tentar levantar o dinheiro apenas para descobrir que o cheque não tinha cobertura. Isso iria ensiná-la a não brincar com as pessoas.

Orgulhoso do meu plano, mastigo uns últimos cajus e entro na loja de um salto.

- Aurora! – chamei; mas interrompo-me. A loja parece ter sido revirada do avesso e há papéis e vidros partidos no chão. Paralisado, corro os olhos até à porta lateral do pequeno escritório a tempo de ver surgiu um tipo entroncado, pesadão e de feições pouco simpáticas. Empalideço.

- Que deseja? – pergunta o entroncado com maus modos.

- Enganei-me na porta, desculpe – saio, fingindo andar distraído. Desço a rua a passo largo. Não quero correr já. Quando sinto que ultrapassei o ângulo de visão da montra da loja atiro-me para a frente a correr. Que faço? Deixo-me de cobardias, entro na loja e exijo saber onde está Aurora? Disparate; a loja foi assaltada, e o entroncado era provavelmente um dos responsáveis. Talvez nem esteja sozinho lá dentro. Chamo a polícia? Perco-me em reflexão quando sinto alguém atrás de mim. Olho de soslaio: o tipo entroncado desce a rua atrás de mim. Meto-me numa rua perpendicular e corro mais. Já sinto os pulmões a queimar, e relembro que Marta sempre me recomendara algum exercício físico. O entroncado vira a mesma esquina que eu e agora corre também; não há dúvida que me segue. Entro noutra rua, à esquerda, e logo de seguida num beco à direita. Enfio-me numa taverna de bairro, minúscula e escura. Vou para a mesa do fundo, sento-me, olho para a porta. Nada.

- Que vai ser? – pergunta-me uma rapariga de buço.

Sinto a minha pulsação acelerada ecoando dentro da cabeça.

- Uma coca-cola.

A rapariga traz-me uma coca-cola quente e uma tigelinha velha com tremoços. Sem ninguém ver, meto cinco cajus na boca e mastigo. Continuo a olhar para a porta, mas o entroncado não há meio de aparecer. Estou a salvo. Abro a coca-cola, provo-a. Caramba, está mesmo quente. Olho para a porta, vejo o entroncado entrar e a olhar em volta. Ele dá comigo no meu canto e os seus olhos prendem-se nos meus. Sinto-me a suar em bico. Levo a coca-cola à boca, sem saber mais que fazer. O entroncado atravessa a taverna e senta-se à minha frente. Tira um tremoço da tigelinha.

- Salgadinhos – diz ele.

Não digo nada. A rapariga de buço está a mirar-me do outro lado do balcão e já percebeu que se passa alguma coisa.

- Ouça, eu... – começo, mas o entroncado interrompe-me.

- O senhor conhece a Aurora? – pergunta-me ele.

- Qual Aurora?

- Entrou na loja aos gritos a chamar por uma Aurora.

- Ah, essa Aurora – simulo um sorriso – Só de vista, só de vista.

- Só de vista – o entroncado tenta intimidar-me e mete outro tremoço na boca. Do outro lado do balcão, a rapariga de buço está a trocar segredinhos com o dono da taverna, que me observa de soslaio.

- Eu e os meus companheiros estamos à procura da Aurora.

- Não lhe sei dizer nada, mal a conheço...

- É cliente da loja?

Pergunto-me porque estou a falar tanto. Devia ficar calado. Devia armar um escarcéu, fingir que o entroncado se está a meter comigo e chamar a atenção do dono da taverna, que continua a olhar para a minha mesa desconfiado.

- Só lá fui uma vez – respondo.

- E como sabe o nome dela?

- Dela quem?

- Você não brinque comigo – diz o entroncado, metendo-se sobre os cotovelos na mesa e aproximando a sua cara da minha – Se sabe onde ela está é boa altura de abrir a boca.

- Amigo, estou aqui a tomar uma bebida por isso faça o favor de me deixar sossegado – surpreendo-me a mim próprio. A responder na mesma moeda a uma provocação deste tipo!

O entroncado tranca os olhos nos meus, agarra-me na coca-cola e bebe-a de um trago. Pousa a lata sobre a mesa.

- O senhor está a meter-se em sarilhos.

- Não vejo porquê.

- Porque segundo sabemos, você foi o único cliente a aparecer pela loja no dia em que a Aurora desapareceu. O que é que lá foi fazer?

Empalideço. E agora?

- Você é da polícia? – pergunto.

- Posso ser.

- Ou é ou não é; e se não for não tenho de lhe responder a pergunta nenhuma. Aliás – procuro fazer sinal ao dono da taverna – vou é seguir caminho porque...

- Você não vai a lado nenhum.

- Cavalheiros – é o dono da taverna que se aproxima – tudo jóia?

- Tudo jóia – responde o entroncado, encostando-se para trás na cadeira – Eu e aqui o meu colega estávamos a trocar algumas ideias mas já vamos sair.

- Eu não sou seu colega – respondo eu, levantando-me bruscamente. Atrás do entroncado, dois clientes regulares olha-nos com maus modos e parecem preparar-se para intervir. Exactamente o que eu quero: armar confusão e conseguir sair dali. Lanço achas para a fogueira – O senhor só me está a incomodar com perguntas idiotas e eu não tenho que aturar isso.

O entroncado abre-se num sorriso. O dono da taverna percebe que há ali qualquer coisa:

- Vamos lá a ter calma aqui. Não quero mal entendidos no meu estabelecimento.

- Não há mal entendido nenhum – diz o entroncado. Percebeu o meu jogo e não vai entrar nele: levanta-se, arruma a cadeira educadamente, sai porta fora.

Suspiro. A postura dos clientes regulares descontrai-se e a rapariga de buço molha os lábios.

- Que raio foi isto? – pergunta o dono da taverna.

- Importa-se que faça um telefonema?

Uso o telefone. Marta atende.

- Estou? Quem fala?

- Marta, sou eu.

- Que número é este?

- Escuta-me. Preciso que me venhas buscar.

- Buscar? Onde?

- À Baixa.

- Não vou para a Baixa a esta hora de carro, estás doido. Apanha um táxi.

- Não apanho táxi nenhum. Vem me buscar por favor.

A urgência na minha voz produz em Marta a sensação de que não lhe estou a pedir uma boleia por qualquer razão.

- Que se passa? Podes falar?

Olho para o dono da taverna, que me mira desconfiado.

- Nem por isso.

- Onde estás? Que se passa?

- Sim, à Praça Central parece-me perfeito – veio-me à cabeça sem saber bem porquê; talvez por ser um local público, sempre com muita gente, seguro.

- Daqui a meia hora estou aí. Encontras-me?

- Até – despeço-me e desligo.

O beco está deserto. Vou devagarinho até à esquina e olho com cuidado para os dois lados da rua: nada. Desço a rua meio a correr, em direcção à Praça.

Deduzo: Aurora desapareceu. Isso não é facto consumado, mas suponho que o entroncado estaria à sua procura e se a tivesse raptado não viria atrás de mim a fazer-me perguntas. Se desapareceu e o entroncado a persegue é porque tem algo que ele deseja; e se ele me seguiu e sabe quem eu sou, é porque estava interessado em saber a minha ligação com Aurora. Pior; como saberia ele que eu era o cliente? A loja não parecia ter câmaras de vigilância. Dedução: trata-se de alguém com poder.

E a razão por que se interessaria por mim é óbvia: pensa que eu sei onde está Aurora, ou que tive algo que ver com o seu desaparecimento. E se pensa isso e é poderoso o suficiente para saber que eu entrei na loja e só conheci Aurora naquele dia, saberá também que a única coisa que nos liga é ele. O copo.

Subitamente a dedução parece ficção. O copo! Será o entroncado outro crente na fantasia partilhada por Aurora? Demasiado exagerado. Provavelmente Aurora deve dinheiro a alguém, ou envolveu-se com as pessoas erradas. Eu não tenho nada que ver com esta história, nem eu nem o copo.

Começa a chover: primeiro uma chuva miúda e pingada, depois uma carga de gotas gordíssimas. Puxo a gabardine para cima da cabeça. Chego à Praça Central e olho em volta. Estacionado junto à paragem dos autocarros, com os quatro piscas ligados, está o carro laranja de Marta. Dificilmente passaria despercebido. Corro até lá, olhando em volta.

Chego ao carro, entro para o lugar de passageiros e fecho a porta.

- Obrigado por teres vindo. Como vês, não queria apanhar chuva.

Olho para Marta à espera de reacção e em vez disso encontro-a a chorar. Atrás da sua orelha direita encontra-se o canudo de uma arma preta.

- Olhos para a frente – diz uma voz grossa no banco de trás. Levanto os braços estupidamente, a medo. Marta chora. Não quero provocar o dono da arma.

- Arranca – diz a voz; e reconheço-a. É o entroncado. Marta mal consegue ligar o carro. As mãos tremem-lhe e começa a choramingar.

- Arranca! – repete a voz.

- Ela não consegue – digo eu – Deixe-me guiar.

- Quieto.

- Eu não vou fazer nada, só conduzir. Por favor afaste a arma da cabeça da rapariga – tento manter um tom casual, não quero que Marta me veja em pânico. Trocamos de lugar. Ela encolhe-se no banco do passageiro e olha para mim de lado. Como dizer-lhe para não se preocupar? Como dizer que vai ficar tudo bem?

- Arranca.

- Para onde?

- Arranca, foi o que eu disse.

- Estou no meio da Praça, preciso de saber se viro já aqui à esquerda ou se vou em frente.

- E eu preciso que te cales e faças o que eu digo – responde a voz – Arranca.

Sinto o canudo da arma na minha orelha e tenho uma vontade esquisita de comer cajus. É o que faço quando estou nervoso. Arranco.

- Leva-me a vossa casa – diz a voz.

Mordo o lábio.

- A nossa casa – digo eu, e Marta recomeça a chorar.

- Sabemos onde moram – diz-me a voz – Por isso não inventes já alguma estratégica para fugir. Se tudo correr como eu quiser podem ir jantar sossegados.

A viagem é feita em silêncio. Reparo, apesar da chuva, que um carro negro nos segue constantemente. Conduzo devagar com a desculpa da chuva mas aproveito para reflectir. Acredito plenamente que as situações de maior stress pedem uma análise cuidada. Estamos a lidar com um grupo perigoso e armado. Com certeza acham mesmo que eu sei onde está Aurora; mas porquê fazer de nós dois reféns? Porquê a ida para minha casa? E mais uma vez a resposta que nego com todas as minhas forças reaparece na minha mente: o copo. Correção: sabem onde está Aurora. Encontraram-na, e ela contou-lhes que sou eu quem ficou com o copo. É o copo que desejam e mais nada. Há que conduzir até casa, dar-lhes o copo e esperar que nos deixem em paz. Mas algo me diz que isso não vai acontecer. Marta talvez não, mas eu vi a cara do entroncado. Há testemunhas na taverna. Se...

Uma paragem brusca do carro à minha frente obriga-me a travar.

- Que houve? –murmuro, impaciente. O canudo da arma toca-me na nuca.

- Contorna – diz-me a voz. Preparo-me para virar o volante quando uma mancha se materializa ao lado da minha janela, escondida pela chuva. Batem-me no vidro. Consigo distinguir um uniforme de polícia por entre o vidro embaciado. Sinto a arma a recuar.

- Despacha-o – diz-me o entroncado. Abro a janela.

- Senhor guarda – digo eu, suspirando.

- Houve um acidente mais ali à frente e estamos a pedir às pessoas que desviem pela Rua 4.

- Oh, isso é muito aborrecido – digo eu ao polícia. O policia fita-me:

- É a vida. Siga.

Vou arrancar mas o polícia mete a cabeça dentro do carro e olha para Marta.

- Está tudo bem, minha senhora?

Marta chora desconsoladamente.

- Morreu-lhe o avô, senhor guarda – diz o entroncado atrás de mim, ocupando o intervalo entre os dois bancos da frente.

- Ai foi? – pergunta-me o polícia. Leu algo na minha expressão. Tento escondê-lo? Não tento?

- Levou um tiro – sai-me.

- Era taxista e estava em serviço – intervém o entroncado atrás de mim - Um caso terrível. Infelizmente não é  único.

- Acontece muito disso hoje em dia, é verdade – pausa. O polícia não para de olhar para mim – Portanto, de certeza que está tudo bem – é quase uma pergunta.

Com os lábios digo: “Não”. Com a voz, digo:

- Está tudo, senhor guarda.

-Importa-se de sair do veículo? – o polícia percebeu. Eu percebo que percebeu. Preparo-me para sair mas sinto o canudo da arma no meu cotovelo, escondido dos olhares do polícia. Num segundo apenas, penso: ele não me vai dar um tiro. Não pode. Houve um acidente, haverá mais agentes além deste polícia sinaleiro. Vou sair. Vou sair. Saio? Saio.

Tiro o cinto no momento em que um carro negro passa por nós e trava mesmo atrás do polícia. Ele vira-se. Outros agentes aproximam-se, gritando ao carro negro que se imobilize. O carro acelera, os pneus patinam no meio das possas de chuva. O polícia sinaleiro afasta-se e um segundo depois tenho a arma apontada à cabeça.

- Arranca.

- Não arranco – engulo em seco. Ao meu lado, Marta solta um grito. Tem a arma apontada ao ombro. O polícia desapareceu no meio da chuva.

- Vai dar uma curva – digo eu. Não sou asneirento, não o quero deixar furioso, apenas provocá-lo para que faça exactamente o que estou à espera: aponta-me a arma, afastando-a da Marta. Levo a mão ao manípulo da porta e atiro-me para fora do carro o mais rapidamente possível.

A chuva atinge-me e ouço um grito de Marta. Começo a correr, e espero que ela perceba que é suposto fazer o mesmo. O entroncado sai do carro, esconde a mão armada atrás das costas e vem atrás de mim.

Procuro um polícia. O carro negro entretanto acelerara dali para fora, seguido por um carro de polícia. A alguns metros, dois carros chocaram e três pessoas assinam documentos debaixo de dois guarda-chuvas. O polícia sinaleiro está lá. Corro rua abaixo. Quero gritar. Grito? Caramba, grito mesmo:

- Ei! – berro. O polícia olha em volta, à procura da origem do ruído. Sou empurrado para o meu lado direito, desapareço atrás de um carro e vou ao chão. O entroncado agarra-me com uma mão grossa e puxa-me pela gabardine.

- Muito engraçado – diz-me ele, arrastando-me. Contorna o carro parado e coloca-nos fora do ângulo de visão do polícia, que entretanto se concentra outra vez na papelada.

Sou enfiado dentro do carro, encharcado, mas constato com felicidade que Marta desapareceu. O entroncado entra no banco de passageiros, fecha a porta atrás de si e atira-me a arma contra o nariz. Uma dor incrível e um monte de sangue escorre-me até à boca. Está quente.

- Arranca! – rosna ele. Arranco, agora de nariz partido. Continuo com vontade de comer cajus.

O desvio pela Rua 4 atrasa-nos. Tenho de dar uma volta enorme pela cidade. Chego finalmente à minha rua e reparo que o carro preto está lá estacionado, à espera. Estaciono num lugar vago.

- Sai.

O entroncado caminha atrás de mim, perto o suficiente para sentir a arma apontada às minhas costas. Do carro negro não sai ninguém. Abro a porta da rua, subimos as escadas como dois gémeos siameses. Preparamo-nos para chegar ao meu patamar quando um cão desce as escadas e passa por nós a correr. É o cão do meu vizinho de cima. O cão imobiliza-se, olha para nós e começa a rosnar.

- Ena, cá nos encontramos! – diz-me o vizinho, descendo as escadas. É médico, um tipo novo e sempre bem vestido – Boris, tem calma!

Boris continua a rosnar para o homem entroncado. Ele pressiona a arma contra as minhas costas e nem chego a parar a subida.

- Boas tardes, até logo! – digo eu.

- Tudo bem com a Marta?

Se está tudo bem com a Marta? Não faço a mais pequena ideia.

- Claro, tudo fino – respondo. Boris e o dono continuam a descida e eu e o entroncado chegamos ao meu patamar. Abro a porta. Entramos.

Alguém está na cozinha a lavar a louça. Alguém ligou a televisão. Alguém abriu a janela para arejar a casa, e por momentos temo que Marta tenha sido ingénua o suficiente para regressar a casa; mas mesmo que o fizesse, com certeza não se iria pôr a lavar a louça...

Marta aparece vinda do quarto. Esteve a chorar. Vem na esperança de que seja eu e eu só. Vê-me, a mim e ao entroncado, e abre a boca para gritar. O entroncado pede-lhe silêncio com um dedo nos lábios.

- Marta? Quem é? – pergunta uma voz vinda da cozinha. Reconheço-a. Olho para Marta, incrédulo. Porque estaria a mãe dela na cozinha?

 - Vai buscar o copo – diz-me o entroncado.

- Qual copo? – pergunto automaticamente, tentando ganhar tempo. As minhas suspeitas confirmam-se e deixo de saber se suo e tremo por ter uma arma apontada às minhas costas ou porque um copo amarelo me colocou nesta situação. De que será capaz um louco como este?

A mãe de Marta surge vinda da cozinha, limpando as mãos a um pano. É uma mulher desinteressante e enrugada, com a personalidade de uma dona de casa frustrada que sente sempre que ninguém lava, esfrega, cozinha ou vai às compras tão eficientemente como ela. O seu marido e pai de Marta vem atrás dela, um indivíduo simpático e gordo que anda sempre a sorrir, apesar da dentição irregular e de um hálito pavoroso. O pai de Marta perde o sorriso e a mãe de Marta imobiliza-se ao ver o nosso “convidado”.

- Que se passa? – pergunta a mãe de Marta – Quem é este cavalheiro?

Quem é este cavalheiro, pergunta ela! O entroncado decide abrir o jogo. Com um ligeiro empurrão, afasta-me de si e levanta a arma. Marta grita, o seu pai perde a cor e a sua mãe deixa o pano cair ao chão.

- O copo – diz-me o entroncado.

- Não sei que copo é esse, já disse – insisto. O copo está em cima da minha secretária, no meu pequeno escritório. Vou fingir que não sei onde está, que não lhe dou a mínima importância e que por isso não sei o ser verdadeiro valor. Logo, não sou nenhuma ameaça para o entroncado. Ele poderá levá-lo e deixar-me em paz.

O entroncado retira um telemóvel do bolso, carrega num botão e diz:

- Sou eu. Sobe.

Desliga-o. Pouco depois entra um segundo entroncado, mais baixo mas mais musculado. É com certeza um dos seus companheiros do carro negro.

- Vigia-os – diz o primeiro entroncado. O segundo entroncado leva-nos para a sala, indica-nos o sofá e as cadeiras, e encosta-se a uma enorme coluna de som. Olho em volta: o pai e a mãe de Marta estão de mão dada, impávidos e hirtos. Marta choraminga a um canto, cansada de chorar. Lá dentro, algures, o entroncado parte, busca e remexe no quarto de Marta. Vejo-o no corredor: entrou no meu quarto. Algo se parte, umas gavetas são abertas. Vejo-o no corredor outra vez: entra na meu escritório. É agora, penso. Tudo vai acabar.

O entroncado desce o corredor e chega à sala, mas vem de mãos vazias. Levanta a arma na minha direcção e agora percebo que fala a sério. Comporta-se com ma frustração interior que lhe dilata as veias da testa.

- Só vou perguntar uma vez. Onde está o copo?

- Mas não estava... – começo; mas a mãe de Marta interrompe-me.

- Qual copo? – pergunta ela.

- Um copo amarelo – responde o entroncado.

- Há vários cá em casa. Lavei pelo menos três – responde ela. Consigo imaginá-la a entrar no meu escritório, bisbilhoteira como é sua tradição, agarrando no copo amarelo e levando-o para lavar.

O entroncado desce o corredor, entra na cozinha, regressa com três copos amarelos nas mãos. Um deles é  meu copo, é o copo. Coloca-os em cima da mesa e volta a erguer a arma.

- Qual deles? – pergunta-me.

- Já disse que não sei de que copo está a falar – respondo.

- Pelo amor de deus, leve a porcaria dos copos e deixe-nos em paz! – diz o pai de Marta.

- Vamos manter a calma – diz a mãe de Marta, respirando fundo. Olha para mim – Parece-me que ficou com um copo que pertence a estes senhores. Qual deles é?

- Você saberá melhor que eu – respondo automaticamente – Foi a senhora que entrou no meu escritório e o levou para lavar – tenho de manter a calma a todo o custo, mas a sua provocação irritou-me.

- Vocês não precisam de nos fazer mal – quase grita Marta – Vão-se embora. Se descerem a rua e virarem logo à esquerda dão com a Avenida junto ao Rio, ao pé do Café Cipreste. A partir daí ninguém vos apanha. Por favor. Levem os copos e vão.

- Vai buscá-la – diz o primeiro entroncado ao segundo, que se desencosta da coluna, desaparece pela porta da casa e regressa um minuto depois. À sua frente caminha uma rapariga morena e pequena, assustada e pálida: é Aurora. O entroncado agarra em Aurora pelo braço e trá-la para o meio da sala.

- Quem tinha o copo? – pergunta ele. Aurora choraminga – Quem tinha o copo?! – Aurora não consegue falar. Tenho de intervir:

- Era eu – digo. O entroncado olha para mim.

- Qual destes copos é o que os interessa? – pergunta.

- Larguem a rapariga – peço.

- Qual destes copos é o que nos interessa! – grita o entroncado. Agita Aurora, encosta a arma à cabeça dela. Estou cansado de ver armas serem apontadas de um lado para o outro. Deixam-me doente.

Paro durante uns segundos para reflectir. A lógica  é clara, penso: este grupo pretende apoderar-se do copo por adivinhar as suas propriedades quase sobrenaturais. Ao possuir um copo que, por definição, faz História quase sem querer, o grupo tem nas suas mãos um verdadeiro catalisador de acontecimentos, o combustível imprescindível a quem deseje mudar a História. E, muito provavelmente, para seu belo proveito. A julgar pela sua atitude são criminosos profissionais, perigosamente perto de atingir o seu objectivo. Nem eu nem Marta nem os seus pais sairemos vivos desta sala. Essa certeza forma-se com a clareza que só uma situação-limite impõe a um organismo cheio de adrenalina. Parece-me claro que, apesar de profissionais, não sabem o aspecto do copo. Estariam com certeza à espera que eu confessasse, ou Aurora. Ela parece demasiado nervosa para falar, e eu tenho nas minhas mãos uma decisão. Tomo-a rapidamente:

- Nenhum deles – respondo – Eu vendi o copo verdadeiro.

Aurora olha-me, surpreendida, por entre os cabelos caídos. O entroncado abre muito os olhos. Está furioso. Vai matar-nos, com certeza; ou então sai porta fora a buscar o copo a Museu. Sim, estou a jogar a minha vida e a vida de outras quatro pessoas; mas por agora tento é afastar o entroncado, tirá-lo de minha casa.

- Há dois dias atrás fui ao Museu de Arte Mundial, junto ao rio, e vendi-o – completo.

- Ele mente – diz o segundo entroncado. O primeiro entroncado lê-me a expressão, ofegante. Furioso, agarra numa almofada e na arma.

- Vamos –empurra Aurora pelo corredor. Encosta a arma à almofada. O segundo entroncado esboça um sorriso e, com o pé, liga a aparelhagem e as colunas atrás de si. A estação favorita de Marta soa, despreocupada e com o volume quase no máximo. O entroncado desaparece pelo corredor. Aurora grita. Fecho os olhos.

Das colunas vem um trepidar electrónico característico: titiri, titiri, titiri... Abro os olhos. O segundo entroncado já não sorri. O primeiro entroncado regressa à sala, com a almofada numa mãe a arma na outra. Olham para nós. Olho em volta. Quem tem um telemóvel? Que acabou de assinar a nossa sentença de morte?

O segundo entroncado desliga a aparelhagem e as colunas. O primeiro entroncado caminha até nós num passo de predador.

- Quem tem o telemóvel?

Por alguma razão olha directamente para Marta. Ela começa a chorar e eu compreendo: é ela.

O entroncado desce sobre Marta no mesmo momento em que todas as outras figuras na sala se movem: o pai de Marta tenta atingir o primeiro entroncado e proteger a filha; a mãe de Marta levanta-se, encosta-se a uma parede e grita; o segundo entroncado procura tirar uma arma no coldre e, ao mesmo tempo, é atingido na cabeça por um prato em movimento. Olho: é Aurora. Atinge-o na cabeça e ele cai sobre as próprias pernas, inconsciente. O entroncado berra com Marta, puxa-a para si, tenta tirar-lhe o telemóvel que a rapariga segura a todo o custo nas mãos pequenas. Atiro-me para a frente, chego à mesa. Isto acaba agora.

- Oi! – chamo. A confusão acaba. O entroncado vira a cabeça e vê-me, de copo na mão, de braço levantado. Não é parvo. Percebe tudo.

- Larga-o – diz-me ele.

- Podes crer que o largo mesmo se não tirares as mãos de cima dela.  

É o jogo da corda: cada um puxa para seu lado. Qual vai ser o primeiro a ceder?

- Deixe de ser parvo, ele tem uma arma apontada à cabeça da minha filha! – resmunga o pai de Marta.

- Parte-o – diz-me Marta – Parte-o! – o entroncado puxa-a pelos cabelos, amachuca-os, pressiona a arma contra a bochecha dela mas Marta não desiste – Parte-o!

Ao longe, ouço-as: as sirenes. O resultado de um espectacular sangue frio por parte de Marta. Agora resta-me não estragar tudo. Resta-me ser a antítese do herói: não tentar nada arriscado. Ganhar tempo. Ganhar tempo!

De súbito, um tiro: num momento olho em volta, à procura de ver Marta desfeita no chão, um grito longo e agudo da sua mãe. Mas não: todos os olhos da sala caem em mim. O entroncado larga Marta, caminha na minha direcção e por alguma razão não me consigo mexer. Ele leva-o: o copo. Arranca-o da minha mão, sai correndo da casa. Caio para trás, sobre uma cadeira, e levo as mãos ao peito. Quente. Molhado. Tudo está lento, mais lento, muito lento: Aurora, incrédula, ainda com o prato na mão. Marta a cair sobre mim, chorando desesperada. A mãe de Marta olhando-me estupefacta. O pai de Marta aproximando-se, tirando-me a camisa com um rasgão, olhando a ferida. Não há som. As sirenes desaparecem, e os gritos, e os passos apressados. Não há nada senão sombras: a de Aurora, a de Marta, a dos seus pais, a sombra de dois copos vazios e amarelos sobre a mesa.

Muitos minutos, muitas horas, um espaço escuro e um tempo infinito.

Depois, um som: um gotejar, um pi pi pi electrónico, um burburinho respeitador. Abro os olhos. Que é feito de mim?

Depressa os sinais se transformam em certezas: estou deitado numa cama de hospital. Ao meu lado está Marta, com papos debaixo dos olhos e um sorriso apagado mas sincero.

- Acordaste – diz ela.

- Evidentemente – respondo, sem saber o que dizer.

- Ias morrendo.

- Foi por pouco?

- Foi por pouco.

- Um tiro – digo a mim mesmo em voz alta.

- No ombro, quase junto ao coração. Tiveste sorte, a polícia estava mesmo a chegar.

- E depois?

- Depois de quê?

- Depois de cair.  

- Não te lembras de nada?

- Só do tiro. Agora percebo que foi um tiro.

- Ficaste com os olhos abertos e baços. Juro-te que pensei... – ela morde o lábio inferior e agarra-me na mão com mais força. Sinto a minha consciência espalhar-se pelo meu corpo e a sua pele junto à minha – A polícia e o INEM chegaram logo. Foste assistido. Trouxeram-te para aqui, foste operado durante, sei lá, umas oito horas. Até a minha mãe não foi dormir a casa. Ficou cá comigo. O meu pai foi à esquadra prestar declarações. Depois virá um agente para falar contigo, mas só quando estiveres melhor.

- Suponho que o entroncado tenha fugido.

- Supões bem.

- E levou o copo.

- Levou.

Sorrio.

- De que te rir? – pergunta-me ela.

- Nada – respondo. Consigo levantar um braço e dou-lhe a minha mão. Ficamos a olhar-nos muito tempo.

Horas depois tenho outra visita: é Aurora. Tem um enorme adesivo na testa e cara de quem não dorme há duas semanas. No entanto, assim como Marta, sorri. Porque me vê vivo ou porque afinal estamos todos vivos e podemos sorrir uns para os outros. Aproxima-se e senta-se na cadeira ao lado da minha cama.

- Julgo que me deves algumas explicações.

-  Não lhes falei de ti em nenhuma altura – diz-me, muito séria – Eles sabiam. Não sei como, mas sabiam. Tinham a loja vigiada; ou então vigiavam o copo e chegaram a ti.  

- É o mais provável – recordo-me que sabiam onde morava, sabiam quem era Marta, e de repente volto a ficar assustado.

- De qualquer forma – diz Aurora, não contendo um sorriso – Não estava à espera daquela manobra.

- Qual manobra? – pergunto.

Aurora abre a mala e retira um copo amarelo: o copo amarelo.

- Engano honesto – brinco.

- Foi de propósito?

- Claro que foi! – digo, heroico. E foi mesmo; mas por alguma razão sinto a necessidade de brincar ao lado de Aurora, de lhe parecer engraçado, de a fazer rir.

- Continua a ser teu – diz Aurora, estendendo-me o copo. Afasto-o com a mão.

- É para ti.

Aurora endireita-se na cadeira.

- Impossível. Não posso aceitar, eu...

- Quem quer que ache que tem o copo verdadeiro, acha que tem o copo verdadeiro. Poderá desconfiar, e tu poderás correr perigo outra vez; por isso, o que tu fazes com o copo é lá contigo. Esconde-o, vende-o, parte-o e deita-o fora. É como quiseres.

Não tenho a coragem de lhe perguntar se acredita mesmo no que me tinha contado sobre ele; de qualquer forma isso já não importa. Aurora segura o copo com as mãos e roda-o devagar sobre os dedos: é para ela uma relíquia divina, um símbolo de uma infância passada e de um avô velhote e desdentado que viveu numa velha loja de antiguidades e que lhe contou histórias para adormecer. Bem vistas as coisas, penso, o copo sempre mudou a história de alguém....

Ainda assim, a curiosidade e o fascínio que despertava em mim desapareceram. É só um copo.