domingo, 20 de maio de 2012

As mulheres


Bateram à porta e soube logo que era ela, a sacana. Tinha saído a chorar com a mala ainda meio aberta, de cuequinhas cor de rosa a arrastarem-se ao vento para dramatizar a arrumação apressada e uma fungadela para resumir, com o ranho sorvido, aquelas emoções todas à flor da pele e que agora queria interiorizar. Deixei-a ir; fiquei obstinadamente quieto e de olhos na janela enquanto ela se vitimizada e enfiava a roupinha na mala. Ouvia-a chorar e suspirar banalidades, quem sabe um pedido de desculpas todo muito sincero.



Começou com floreados:

- Entende de uma vez por todas que se o fiz foi sem querer. Não tinha controlo sobre o meu próprio corpo, não sei o que me deu. Não estava lá; estava, mas não estava.

Ao cabo de umas horas entendeu com perspicácia que eu a ignorava à grande, sem rancores e muito menos só para chamar a atenção. Ignorava-a porque já a conhecia bem demais. Ignorava-a mesmo; pensava na vida, nos pombos, na temperatura e na humidade, nas botas que tinha a secar na varanda. Nisto avançou para a bruta simplicidade, de olhos húmidos e pregados nos meus, mãos quase brancas da força com que agarravam:

- Eu amo-te. Eu quero-te.

E coisas assim. Ficara com a ideia, à conta de todas as cantiguinhas pop que costumava ouvir alto demais, que a exteriorização das emoções mais complexas poderia ser resumida numas sílabas apenas; e pior, conhecia-me mal ao ponto de achar que me conseguia desviar com essas balelas.

Prossegui com a minha cuidadosa observação: que ângulo descreveria a chuva ao cair sobre a janela da cozinha? Procurei medi-lo com um transferidor mental e cheguei aos trinta e poucos graus. Mais coisa menos coisa. Ainda a vi de soslaio: a tal mala por fechar, a tal fungadela; já não tinha palavras nem argumentações, fungou apenas para deixar ainda mais claro que tinha estado a azucrinar-me a cabeça durante as últimas três horas. Bateu com a porta selvaticamente.

E depois, silêncio.

Levantei-me e fui à porta. Certifiquei-me que o elevador tinha descido mesmo. Parti para a varanda. Lá em baixo, vi-a entrar num carro que arrancava.

Fui à cozinha. Tirei uma colher de sopa da gaveta e o gelado do congelador. Fui até à sala. Sentei-me de frente para a televisão e liguei-a, um pouco alto demais. Chorei enquanto comia todo o gelado. Quando acabei, rapei o recipiente com a língua e depositei-o sobre um monte de revistas ao meu lado. Desliguei a televisão. Silêncio, outra vez. Limpei as lágrimas e o ranho com um lenço e fui-me deitar.

Sonhei com cenas de puríssima pornografia: ela deitada com um monte de homens diferentes nas posições mais abjectas, fazendo contorcionismo e gemendo como um animal. Acordei várias vezes e quando voltava a adormecer regressava sempre ao mesmo sonho. Por volta das seis levantei-me de vez e fui dar uma caminhada.

A vida arrastou-se desta maneira, comigo entre a negação e a luxúria: assim que num momento de fraqueza sentia a sua falta pela casa ia ao jardim apanhar miúdas com os olhos, observá-las com aquela intensidade toda que julgava fazer parte integrante de um jogo ao qual nunca ganhara coisa nenhuma. Depois voltava a casa e aguardava as horas seguintes. Até ao dia.

Bateram à porta e soube logo que era ela, a sacana. Fui abrir a porta de chofre, querendo assustá-la, e dei de caras com um tosquíssimo indiano, lingrinhas, cabelo negríssimo penteado para o lado e aspecto geral de engenheiro informático.

- Boa tarde – disse-me ele.

- Que deseja? – perguntei, desapontado. Aquele indiano ia sofrer injustamente com as minhas frustrações. Melhor ele que eu próprio. Ia mastigá-lo.

- Isto é bastante constrangedor, mas... – o indiano passou a mão pela testa limpando um suor psicológico – eu vinha buscar umas coisas da Carla.

Umas coisas da Carla! Foi o suficiente para projectar na minha cabeça as mais aborrecidas cenas de sexo entre aquela mulher que em tempos apreciara e aquele minúsculo exemplo do sexo masculino. Imaginava-o com a força de uma sardinha, com a ganância sexual de um caracol, com uma magreza ossuda, desprovida dos músculos com que segurar uma mulher. Fiz-me de parvo:

- Umas coisas da Carla?

- Sim – disse-me ele, e esperou – Posso entrar? Não demoro mais que cinco minutos.

Dei-lhe passagem. O indiano entrou para o hall e olhou em volta.

- Bela casa.

- Sente-se ali, por favor – indiquei-lhe uma cadeira. O indiano lá foi, obediente, e soube que estava a lidar com um traste. Deixei-o sentar-se e observei-lhe a postura: pernas quietas e coladas uma à outra, mãozinhas sobre as rótulas, olhar atento. Só me restava urinar para cima dele.

- Queres alguma coisa?

- Agradeço, mas não. Vim só mesmo...

Interrompi-o:

- Um minuto.

Desapareci corredor fora, deixando-o de boca aberta. Fui ao quarto e reuni os dois sacos de tralha que Carla esquecera: molduras com fotografias, roupa que entretanto fora lavada, uns livros, tudo coisas que estiveram muito perto de desaparecer pela conduta do lixo. Regressei à sala e depositei os sacos à frente do indiano, para ver como reagia.

- É tudo?

- É tudo, é. Se quiseres ajudo-te a levar isso lá para baixo – ofereci-me, cordial.

- Não é preciso.

- Pois claro que não – fui à janela e espreitei como quem não quer a coisa: lá em baixo um carro estava estacionado em segunda fila; um daqueles estacionamentos à imbecil que não sabe o que é o civismo rodoviário. Seria com certeza obra de Carla, de mãos no volante, provavelmente espreitando cá para cima a ver se me apanhava, a mim ou ao pobre indiano que parecia tratar como seu criado.

- A Carla sente-se bastante mal com tudo isto, e eu também – disse-me o indiano de dentro da sala.

- Quê?

- Digo que a Carla se sente mal, e eu também.

- É azia?

- Azia? – surpreendeu-se ele – Não, não.

- Queres uma água das pedras?

- Não me referia a isso, expliquei-me mal.

Explicou-se mal! Que absoluto estorvo. Vi-o quase pedir desculpas por estar a ser gozado daquela maneira e recompôs-se sempre muito educado:

-  É uma situação deveras constrangedora.

- Para quem, para ti?

- Sim. E para a Carla. Ela queria ter subido e falado consigo, mas não teve coragem. Pediu-me que viesse. Espero que não haja problema.

- Oh, problema nenhum. Eu compreendo absolutamente: ela ficou amedrontada com a ideia de me voltar a ver.

- Exactamente.

Fiquei a olhar para ele como quem não acredita nos seus olhos.

- Sabes – continuei, aproximando-me dele – gostariam muito de te dar algo a beber.

- A Carla está lá em baixo à minha espera, mas obrigado.

- Ela pode esperar um pouco. Dizes que eu tinha as coisas dela espalhadas e ainda as estive a arrumar, que achas?

Ele encolheu os ombros como quem diz “Sim, sou um imbecil que não percebe estar a ser usado para teu belo prazer”.

- Cerveja?

- Uma água fresca.

- Uma água fresca – repeti eu, procurando, sem sucesso, imitar a mariquice. Fui à cozinha, enchi um copo com água, abri uma cerveja e trouxe as bebidas para a sala. Estendi-lhe o copo de água e fui sentar-me no sofá, de Sagres na mão.

- Felicidades – ergui a cerveja. Ele levantou a água e deu um gole curto e snob.

- Devo mesmo ir.

- Há pouco disseste uma verdade.

- Hum?

- Que era uma situação deveras constrangedora.

- Oh, sim.

- Tu pareces-me ser um tipo porreiro.

- O senhor também. 

- És novo, és bem falante.

Ele olhou-me meio de lado, bebericando da água fresca.

- Não te passou pela cabeça que me pudesse sentir ameaçado?

- Ameaçado?

- A minha ex-namorada, ou melhor, a minha namorada, que era isso que ela era na altura, inicia uma relação que deduzo ser de carácter emocional e sexual com um rapaz bem parecido como tu – e com isto fi-lo corar como um tomate – e eu recebo, dias depois de o descobrir, a visita do mesmo tipo com quem ela me traiu sabe-se lá em que circunstâncias, sabe-se lá se na minha própria casa e na minha própria cama. Não achas que tenho razões para me sentir ameaçado?

O pobre indiano queria esconder-se atrás de qualquer coisa.

- Garanto-lhe que nada do que imagina aconteceu realmente...

- Nunca foste para a cama com a Carla?

Ele corou ainda mais violentamente.

- Não me sinto nada confortável...

- Isso é estranho – respondi-lhe, levando a Sagres à boca e deixando deslizar a conversa para um silêncio constrangedor.

- Por que seria estranho?

- Ora – sorri-lhe; aquele sorriso de bocarra aberta, à portuguesa, que identifica a ligação subconsciente entre dois homens que apreciam a mesma mulher na rua.

- A Carla e eu... - parou – Não me sinto confortável para entrar em detalhes sobre a minha relação com a Carla.

- A tua “relação”? – exclamei eu. Ele tremeu. Havia qualquer coisa de ingénuo naquele rapaz que quase me despertava pena. Caso não fosse ele o co-autor dos chifres que ostentava, com certeza despertar-me-ia um sentimento protector, quase paternal, que só dedico aos novatos mais inexperientes que encontro pela vida. Não fossem aquelas circunstâncias, estar a atraí-lo para a boca do lobo, quase sentiria pena do indiano; e se me visse a mim próprio retratado em filme pensaria que era um verdadeiro explorador de mentes ingénuas. Mas naquele dia não me sentia mal, sentia-me maravilhoso. Uma sensação de controlo absoluto consumia-me desde que abrira a porta e me apercebera que tinha em casa o protagonista de todos os filmes pornográficos que imaginara pelas madrugadas; e ao saber agora que, ao invés de um musculado cavalheiro com sotaque e bronze encontrava um promissor funcionário de call-center, passei de espectador de um filme de terror para realizador de um western. O pistoleiro experiente depara-se com o inocente cowboy que não sabe ter o revólver descarregado e as amarras do cavalo por apertar.

- A tua “relação”... – repeti – Conta-me mais sobre ela. Como se conheceram?

- Não acho que seja...

Puxei-me para a frente e pus os cotovelos em cima dos joelhos.

- Deixa-me dizer-te o que já sei sobre ti.

O indiano ganhou força de peito e alguma frieza.

- Não sabe nada sobre mim.

- Sei pois – contei pelos dedos - Sei que conheceste a minha ex-namorada há pouco tempo. Sei que foi ela a seduzir-te a ti e não o contrário. Sei que foi ela que te abordou, provavelmente pedindo-te ajuda para qualquer parvoíce que qualquer mulher adulta seria perfeitamente capaz de fazer, como apertar os atacadores. Sei que te vergaste perante o comprimento das suas pernas e, claro, claro, perante a força da sua personalidade. Sei que ela te deixou a andar de perna aberta durante umas horas depois dos vossos primeiros encontros, e sei que és tu quem cozinha o jantar, e sei que já a viste ser observada e observar outros tipos dez vezes mais capacitados do que tu em praticamente tudo, e sentes-te portanto a lutar por um lugar na cadeia alimentar.

Através dos olhos do indiano vi desabarem sete ou oito paredes, cada uma mais frágil que a outra, até sobrar apenas um passarinho caído do ninho. Agarrou na água fresca e bebeu-a de um trago.

- No entanto, há coisas que não sei sobre ti, ou sobre vocês. E há coisas, oh, muitas coisas que sei sobre a Carla. Percebes? – agitei entre nós um dedo maroto, “tu e eu, eu e tu”.

O indiano levantou-se, foi à janela, voltou a sentar-se.

- Não sei bem o que quer saber...

- Onde se conheceram?

- Num ciber-café. Estava a terminar um trabalho para a faculdade quando a Carla veio ter comigo e me pediu – o indiano engoliu em seco – me pediu para a ajudar a encontrar a fivela dos sapatos, que se tinha desapertado.

- Ui – varri aquilo com a mão, como nada fosse novidade. E não era; só queria que o puto percebesse – Isso foi quando?

- Há dois meses atrás.

- Hum – tentei manter-me granito por fora, mas lá no interior apetecia-me esmurrá-lo já. Com uma semana contava, quem sabe até um mês. Com dois meses, nunca.

- Eu não sabia que ela tinha namorado. Ela nunca me tinha contado – gemeu logo o pobrezinho.

- Eu soube logo – respondi, à homem.

- Como?

-  Soube – encolhi os ombros. Ele olhou-me com veneração.

- O retrato que faz da Carla, é...

- É, é – acenei.

Ele caiu para dentro de si próprio mas voltou a levantar-se:

- É errado.

- Ela é uma mulher especial – disse-lhe eu, como se com aquilo o elogiasse também, como se lhe vendesse um carro descapotável.

- Inteligente, carinhosa, romântica... E compreendo tudo isso, também eu senti que havia nela um quê de mulher-aranha, mas agora que a conheço melhor e ela me conhece a mim sinto que cresceu entre nós uma cumplicidade... – ganhava fôlego mas interrompi-o, erguendo as mãos.

- Vamos lá ter calma. Como deves imaginar, sei perfeitamente que tu sabes perfeitamente que me estás a tentar mentir.

O rapazola engoliu a palavra que dali vinha, não por ter sido apanhado em flagrante mas por (senti-o) acreditar efectivamente naquilo que estava a dizer. E que fazer se Carla estivesse, de facto, uma mulher transformada? Que dizer sobre a possibilidade de a mulher que conheci se ter fartado do selvagem que sei ser, e procurando (e encontrado) num imberbe um novo fôlego para uma nova vida?

- A Carla é a Mulher com letra maiúscula – continuei em voz baixa e grave - Os olhos seguem-na quando passa na rua, parece coberta de merda num mundo de moscas. No entanto, há coisas nela que a tornam humana, frágil e confiável.

O indiano sentou-se na berma da cadeira, de costas muito direitas, um bom aluno vergado perante a apoteótica lição de um mestre.

- Ela teve um problema qualquer com o pai quando era pequena. Ficou pírulas, deixou de confiar nos homens. Nada, digo-te, nada a deixou mais embasbacada comigo quando lhe disse que não queria filhos. Que queria sexo, drogas e rock and roll, mas nada de descendência – garanti-lhe eu, mentindo com toda a eficácia. 

O indiano acenou afirmativamente com a cabeça, devagarinho, absorvendo cada palavra. Segui uma lista bem definida de terríveis mentiras; nada preparado, nada ensaiado. Relembro: desconhecia a existência de tão crédulo amante até há alguns minutos atrás. Ainda assim, uma maldade qualquer fez-me debitar, com a escorreita diligência de um homem que só pode estar a dizer a verdade, as maiores fraudes que fui capaz de inventar naquele momento sobre a mulher que possuíamos em comum. E terminei com algo irresistível mas arriscado, que sabia ser incapaz de quebrar a ilusão tal era a forma como atingira o meu interlocutor:

- Além disso: chamussas. Nada a derrete como um jantar, sei lá, indiano, ou nepalês. Fritos são um afrodisíaco para ela – rematei, relembrando todas as noites de agonias e problemas de refluxos gástricos.

O indiano assistiu à minha palestra sem me interromper. Levei o resto da Sagres à boca, refrescando-a, e com isso anunciei o final da aula. Observei-o: havia nele uma transformação qualquer, os seus olhos reflectiam uma promessa num futuro cintilante que só os parvos sentem genuinamente. Levantou-se, agradeceu a água, agarrou nos sacos e saiu, de olhos toldados e cabeça ausente. Permaneci sentado sem me mexer durante muito tempo, até ouvir o som do elevador desaparecer pelo prédio abaixo e, algures na rua, o carro estacionado em segunda fila arrancar lenta e respeitosamente.

Dou por mim a pensar muitas vezes na Carla e no seu indiano. Tenho uma curiosidade mórbida qualquer. Por exemplo: quando era pequeno costumava atrair as miúdas de quem gostava para junto de um poço. Dizia-lhes que vivia um monstro ali em baixo e que se elas não acreditavam apostava um beijinho em como era verdade. Atraía gordas e feias, e raras vezes alguma menina bonita. Bastava-me dar a volta até uma segunda entrada que conhecia e, com um ferro, dar umas pancadas fortes num tubo enferrujado. A estrutura tremia toda; e escondido atrás de um arbusto podia ver a grade do poço a tremelicar, as meninas lá em cima a gritar que nem parvinhas, assustadas, a dizer que iam cair e morrer afogadas, e que a culpa era do monstro do poço, do monstro do poço! Depois ia para casa com o jogo ganho. Porque faria eu aquilo às pobrezinhas? Seria para ganhar o beijo? Não que valesse a pena, sabiam-me todos a mentira. Mas voltava lá de tempos a tempos e repetia a proeza, se calhar na esperança de encontrar uma rapariga que topasse a armadilha e me desse um estalo.

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