segunda-feira, 21 de maio de 2012

Nada é inocente: metáfora na obra de Quim Barreiros




Barreiros como paradigma artístico popular

Nada mais significativo aconteceu no panorama musical português do último século que o surgimento de um grupo de artistas especializados num tipo de expressão musical mais simples e popular. Um deles, sem dúvida um dos mais bem sucedidos, reúne em si características físicas que o tornam familiar a todo o português: o sorriso maroto, o chapéu, a estrutura encorpada mas de reduzido tamanho, o profuso bigode: Quim Barreiros, mais que um criador musical, é uma persona.


Mas como explicar o sucesso deste artista? Neste texto argumentaremos que a riqueza artística de Quim Barreiros, e na verdade aquilo que o torna bem sucedido, reside exactamente no facto de não se tratar de um letrista e músico comum; mais especificamente, a sua utilização da metáfora é não só rica, como atribui às suas canções uma profusão de significados e camadas que as tornam divertidas para uns e motivo de estudo para outros.

Que características permitem estudar a obra de Barreiros como um “todo” homogéneo?

- O sujeito poético é normalmente um homem, sendo que Barreiros canta na primeira pessoa do singular (o que por sua vez oferece várias leituras: Barreiros identifica-se com as personagens que cria, ou as suas canções são de facto auto-biográficas?)

- Referência a tradições portuguesas facilmente reconhecíveis (O nome “Maria” em “Bacalhau à Portuguesa”, o brioche e as rabanadas em “O Brioche da Sofia”)

- Fascínio pelo genital masculino e feminino, e seu encontro

- Romantização da prática sexual, normalmente reduzida ao coito mas, por vezes, obtendo características mais exóticas (“O Brioche da Sofia”), sempre pressupondo a satisfação masculina.

- Utilização de trocadilhos (“Ela estava contusa”; o verso “bater por letra” em “Curso de Dactilografia”) todos eles perfeitamente justificados no contexto da narrativa que está a ser contada

Vejamos alguns casos práticos:

O masculino encontra o feminino: “A Garagem da Vizinha”


Numa primeira leitura, “A Garagem da Vizinha” é a história de um homem que encontra na garagem da vizinha o lugar ideal para estacionar o seu veículo de trabalho. Mera narrativa sobre a cooperação na vida do interior? Barreiros estabelece um paralelo claro entre a cooperação Sujeito Poético / Vizinha e a actividade do coito mas não se fica por aqui.

Símbolo do futuro, do progresso e da velocidade, o estatuto fálico do automóvel não é uma coincidência. O verso “Mas teu carro vai gostar” atribui ao pénis sensações que são humanas, retratando-o como elemento principal da mentalidade masculina. É o universo varonil reduzido ao falo? De facto; mas não é por acaso que a canção se intitula “A Garagem da Vizinha”; sem ela o “carro” de Barreiros não teria onde estacionar. É em relação à “garagem” da vizinha que o “carro” ganha significado e a metáfora se constrói.

 “Que garagem apertadinha / que doçura de mulher”: a garagem é equiparada à vagina da mesma forma que o carro é equiparado ao falo. Barreiros busca, acima de tudo, a redução do Homem e da Mulher ao seu genital e, unindo-os, resume com a imagem do estacionamento a profunda ligação sexual estabelecida entre os dois géneros. O estacionamento de um automóvel simboliza o encontro físico entre o Homem e a Mulher, e a mudança de óleo a troca de seus fluidos: em meia dúzia de versos, a ligação homem-máquina, homem-mulher e homem-amor é explorada em simultâneo.

Numa análise mais profunda, a canção não nos oferece uma razão realista para que o carro não possa ser estacionado ao ar livre, e no entanto colocá-lo na garagem parece uma necessidade de última ordem. De certa forma, a protecção da “garagem da vizinha” é uma expressão clara da necessidade de encontrar um espaço maternal e seguro, pressupondo que o protagonista do poema não encontra esse conforto no seio da sua família.

A troca de fluidos é simbolizada pela mudança de óleo, que por sua vez simboliza a necessidade de transformação masculina do sujeito poético, e que por seu turno é indicadora de uma mais abrangente necessidade de satisfação emocional. Tal profusão de camadas de significado não está de todo presente noutros poetas de menor gabarito.

Marota simplicidade: “O Brioche de Sofia”


Mas se em “A Garagem da Vizinha” o paradigmático macho lusitano busca profundas emoções, também há canções nas quais a sua veia mais sexual e pungente lidera a reflexão. É o caso de “O Brioche da Sofia”, a história de uma pasteleira chamada Sofia que anima a clientela com as suas capacidades. 

O brioche da Sofia é “mesmo bom”: o minimalismo da descrição, a contenção nos adjectivos, a clareza da mensagem, o elogio às capacidades femininas de Sofia em relação à satisfação do “freguês”; tudo contribui para que Quim Barreiros consiga, num verso, resumir os temas que explora em toda a sua obra.

De destacar é ainda a relação entre o erótico e a gula: “Até eu vou lá comer / O Brioche da Sofia” não fará sentido se visto na perspectiva meramente simplista segundo a qual este “brioche” é uma referência ao sexo oral praticado por Sofia aos clientes. “Comer” o brioche estabelece um paralelo entre o prazer luxuriante e o consumo de pastelaria popular: como sempre, Barreiros descobre no popular e mundano algo de exótico e de luxuriante.

A eterna presença de Maria: “Bacalhau à Portuguesa”


Mas não só no quotidiano descobre Barreiros o combustível para o seu cantar: é, acima de tudo, um utilizador profuso das tradições e paradigmas portugueses. Em “Bacalhau à Portuguesa”, quiçá o seu maior sucesso até à data, Barreiros interpela “Mariazinha” e pede-lhe para avaliar a qualidade do bacalhau que esta guarda na cozinha. Esta ode não é um elogio a qualquer mulher: Barreiros canta a mulher portuguesa e suas capacidades culinárias, especificamente na área do bacalhau. Será redutor colocar Mariazinha na cozinha? Talvez; mas não obedecerá a uma imagem que se enraizou no imaginário popular português deste o tempo do Estado Novo? A rima fica facilitada e a mensagem adquire clareza e direcção: nada é inocente em Barreiros.

O aroma ganha em “Bacalhau à portuguesa” o lugar de mecanismo favorito de identificação sensorial, o que por sua vez contrasta com o típico contacto físico entre o sujeito poético e as mulheres com que se costuma relacionar. Nesta cantiga, Barreiros não pressupõem imediatamente uma “mudança de óleos”, acto físico e de contacto directo, mas sim um contacto sensorial mais sensível e abstracto. É um Barreiros romântico aquele que pede a uma mulher para a farejar? É a busca por um pequeno grau de subtileza que contraste com a brutalidade típica do coito simplificado?

“Quero cheirar teu bacalhau” é seguido de “Mariazinha, deixa-me ir à cozinha”: vejamos como o machismo inerente a toda a obra de Barreiros dá lugar, na verdade, a um pedido de autorização. O sujeito poético reconhece o valor do “bacalhau” da Mariazinha e realça o seu território (a cozinha), não se atrevendo a violentá-lo sem antes o elogiar longamente (“Teu bacalhau é mesmo uma beleza”).

Há em Barreiros uma catalogação progressiva da mulher como um objecto utilizável sem, no entanto, lhe negar as honras merecidas: o tratamento do genital feminino não pressupõem uma inferiorização da mulher (como já o tínhamos visto em “A Garagem da Vizinha”) mas sim, pelo contrário, uma ode ao seu poder sobre o homem que a procura. A mulher e seu genital encontram-se, fundem-se, são indissociáveis em Barreiros: e do encontro entre eles surge uma Mariazinha, uma Portuguesa-Total, que dá prazer aos homens sem recorrer ao coito e usando apenas e exclusivamente a fragrância das suas partes baixas.

Que relações poderemos estabelecer entre o “cheiro do bacalhau” e a forte identificação que os recém-nascidos estabelecem com o aroma materno ao nascer? É o mito da fecundidade elevado ao extremo e levado com inocência aos ouvintes que não o compreendem mas identificam intuitivamente. Neste sentido, Barreiros trata um tema de apelo universal e complexas repercussões com a disposição de uma piada marota: sintetizar os grandes sentidos e sentimentos em versos simples não é, convenhamos, o objectivo da poesia desde Homero?

Em suma: que é Barreiros senão o mais actual e intemporal dos poetas; o mais solto nos tabus e o mais corajoso na abordagem; o mais claro na mensagem e complexo na temática? Ninguém cantou como ele a glória da cópula lusitana nem carregou o genital lusitano de tamanhas camadas de significado metafórico. 

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