sábado, 2 de junho de 2012

Viagem Surrealista a Xabregas


O dia estava claro: as nuvens pareciam pequenos pedaços de algodão doce a esvoaçar ao vento, e o sol brilhava forte através de uma fina camada de água vaporizada. Havia, portanto, sombras definidas e suor na pele, e as crianças que brincavam na rua faziam-no de boné e protector solar. Mas isso agora não interessa nada.


Nesse dia atravessei uma passadeira pondo-me à frente de um taxista. Eu sei; erro crasso. O taxista obedeceu ao código da estrada buzinando-me com pressa, e eu atravessei tranquilo e nas calmas, só para lhe mostrar quem mandava ali. O tipo, furioso, pôs a cabeça de fora e mandou-me ir dar uma curva. Eu dei; virei-me para trás, atravessei a passadeira no sentido contrário e dei outra meia volta para atravessar outra vez. Entretanto o tipo saiu do táxi e preparava-se para me mandar a um sítio, algo que eu só poderia concretizar de cócoras, quando um enorme, verde, azul, vermelho e amarelo portal se abriu sob os meus pés e me atirou deste para Outro Mundo.

Caí de rabo sobre uma pista de pedra polida e olhei em volta. Havia dragões por todo o lado, pequenos como moscas, e cuspiam uma labareda equivalente à de um fósforo. Um dos sacanas ainda me conseguiu queimar e portanto levantei-me, pisei-o com força, e só aí me apercebi que estava de cabeça para baixo. A gravidade tinha sido invertida e eu estava de pé no tecto de uma enorme sala. Lá em baixo, por entre uma nuvem de infestantes dragões, podia ver uma modesta mesa feita de água e uma cadeira construída à base de conceitos filosóficos. Saltei, na esperança de cair de nuca lá em baixo e acordar do terrível pesadelo, mas saí levitando como uma Alice a descer o buraco e comecei a gritar como a menina inocente que me sentia. Aterrei sobre a mesa de água e, em vez de ficar molhado, apercebi-me que estava a ficar era seco. Confuso, procurei gritar segunda vez mas um dragão entrou-me pela boca aberta e não tive outro remédio senão engoli-lo sem querer.

- Pára tudo! – berrou uma voz. Olhei para a minha direita e a minha cabeça virou-se para a esquerda. Aproximava-se um enorme cachorro, de cabeça e focinho absolutamente enormes coroando um corpinho pequeno e que vestia um manto verde repleto do que me pareceram ser dedinhos decepados de bebés. Enojado, disse ao cachorro:

- Afasta-te!

E ele:

- Primeiro é “afaste-se se faz favor”, que não me conheces de lado nenhum para me falares assim. E segundo.

Fiquei à espera do segundo.

- Então? – perguntei.

O cachorro aproximou-se de mim, com todos os dedinhos de bebés bamboleando ao sabor do vento.

- Engoliste um dos meus dragões e isso é coisa que eu não – disse o cachorro.

- Que tu não quê?

- Que você não quê.

- Que você não quê?

- Que eu não tolero nem ao meu mais íntimo – respondeu o cachorro.

- Quero sair daqui.

O cachorro encolheu os ombros.

- Está.

Todos os seus pequeninos dedos de bebés estalaram uns nos outros ao mesmo tempo, como uma psicadélica marcação de ritmo numa música de outro mundo. Desapareci e voltei a existir num enorme descampado. Um homem malcheiroso observou-me enquanto mastigava um pedaço de pão.

- Onde estou? – perguntei-lhe, à espera de o ver cuspir um submarino russo ou qualquer coisa parecida.

O tipo abriu a boca e disse.

- Xabregas.

Levantei-me. Vi um autocarro da Carris e uma família de classe baixa a discutir aos altos berros por causa do ranho da criança. De volta a Lisboa, pensei, satisfeito. Foi um alívio daqueles. Começara a procurar um caminho para casa quando o vagabundo abriu a boca e cuspiu um submarino russo.

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