quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A Senhora Indignada


Ela habita em todas as repartições de Finanças, em todos os balcões, em todas as Lojas do Cidadão. Ela está habitualmente mal vestida, um pouco mal lavada e fala sempre alta demais. Ela observa quem a rodeia com a atenção do predador, uma águia na planície observando com que outro ser vivo partilhará as suas desgraças; com a diferença que as águias não resmungam tanto. Ela é licenciada em retórica popular, uma mestra na má conjugação do ver “haver”, uma doutora na arte do arrelio. Ela tem muitas formas e muitos nomes, mas como qualquer bom arquétipo possui um carácter universal e um nome unificador de todas as suas personificações: ela é A Senhora Indignada.


Hoje fui fazer o Cartão do Cidadão e tive a imensa sorte de me sentar ao seu lado. Não a identifiquei de imediato: pareceu-me mais uma dona de casa de vestido cor de rosa e cabelo grisalho e comprido apanhado por um elástico do chinês. Só passado alguns minutos me apercebi da minha péssima decisão de ali buscar pousio; e por ironia do destino procurava concentrar-me na minha cópia de “Hamlet” no momento em que A Senhora Indignada, tomando conta daquele corpo flácido e suado que ali estava à minha direita, encetou conversa com um casal de borbulhentos namorados a fim de os informar que toda aquela situação era um escândalo.

E explicou, em bom vozeirão, para que todos os funcionários do serviço a escutassem: aquilo era um escândalo porque a contagem ia na senha nº90 e os funcionários estavam a trocar de turno. Uns iam almoçar e terminavam a manhã, outros regressavam para os substituir, e isso criou ali cinco minutos de senta-te e levanta-te que A Senhora Indignada apelidou imediatamente de “vergonhosos”. E repetiu pela décima terceira vez:

- Faltam onze pessoas para até chegar a mim – e, levantando a voz, com um sorriso comprometedor de avozinha ingénua, amiga dos netinhos, incapaz de alguma vez conduzir qualquer campanha de má língua – isto somos atendidos hoje ou é só amanhã, hein?

Lá procurei prosseguir a leitura enquanto as senhas avançavam a uma velocidade imparável (quando analisada segundo os critérios que normalmente se utilizam para avaliar a eficiência dos serviços públicos); e, ao meu lado, interrompendo os monólogos do pobre Hamlet, A Senhora Indignada levantava-se, ia circular pela sala, analisando de nariz empinado e flácida personalidade o trabalho dos vários funcionários, e depois regressava ao lugar para poder incomodar o casal de namorados por mais uns minutos. Descrevia-lhes as suas doenças, a sua vida “de artista”, as suas conquistas, o detergente com que lavava a loiça; e de vez em quando regressava à escandaleira que era o serviço que naquele momento a vitimava.

E apostei comigo próprio: “Chamarão pelo número dela e a imbecil nem se aperceberá”.

Podia ser profeta: um funcionário com traços de indiano carregou no botãozinho três ou quatro vezes, a sirene monocórdica anunciou a mudança de senha, o número 101 brilhou branquinho nos vários ecrãs da sala; e A Senhora Indignada, indignando-se cada vez mais, procurava compreensão e carinho junto de uma mulher mais nova e mais bonita que ela. E eu fiz o que qualquer cidadão decente faria naquela situação: observei a estúpida senhora a ser humilhada publicamente, já que, de tanto se indignar junto da grande maioria da população que ali aguardava a sua vez, toda a gente já se dera conta de que chegara a vez Dela; e Ela, indignada com o facto de nunca mais chegar a sua vez, não deu por isso.

Vi a coisa desenrolar-se com um sorriso interior: o funcionário a passar para a senha 102, A Senhora Indignada a erguer-se momentos depois, de senha levantada como Camões erguendo o manuscrito acima das águas, o seu rebolar em chinelos baratos até ao balcão de atendimento, o seu barafustar, chocado, resmungando que não tinha tirado os olhos do ecrã por um segundo que fosse, que o indiano se tinha enganado, que tinham passado o número dela e aquilo era um escândalo.

Lá foi atendida, e eu também; quem quer que controle o karma d’A Senhora Indignada achou que seria bonito ela estar a ser atendida ao mesmo tempo que eu, que tinha uma senha três números acima.

Ironia final, porque o dia não estava a ser já suficientemente divertido: ergue-se o funcionário indiano, um pouco corado, e caminha até ao balcão onde eu estava a ser atendido por um indivíduo bastante cordial, provavelmente o mais experiente da sala. E disse-lhe ao ouvido, apontando para A Senhora Indignada com um dedo discreto:

- Aquela senhora não sabe onde nasceu.

- O que está escrito na certidão de nascimento? – perguntou o “meu” funcionário.

O indiano:

- Asteriscos.

- Então a senhora não sabe em que freguesia nasceu?

O indiano encolheu os ombros:

- Diz-me que foi ali perto de Guimarães.

E sem deixar de escutar o diálogo pus-me de soslaio a observar A Senhora Indignada, que graças à compreensível falta de dados autobiográficos conseguira não só atrasar o seu atendimento mas também o meu: curvada, encostara o ombro gordo e bafiento ao balcão, remexia num brinco de plástico com o erotismo de uma foca, e olhava em volta de olhos meio esbugalhados, perpetuamente surpreendidos com a demora de um serviço claramente incompetente.

O indiano lá se afastou, com a promessa de que romaria pelos programas informáticos à procura de um lugar de nascimento mistério; e o “meu” funcionário pediu-me desculpas e continuou o meu atendimento.

Já de cartão encomendado e papelinhos arrumados, levantei-me da cadeira e dei uma última espreitadela à Senhora Indignada: dez minutos passados lembrara-se entretanto que A Sua Mãezinha tinha vindo com ela.

- Oh mãe, onde é que eu nasci? – perguntava agora, quase em berro, atirando gafanhotos na direcção do outro lado da repartição.

No ecrã chamavam pela senha 107. 

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