domingo, 18 de outubro de 2009

O vermelho fica-te bem

O top vermelho ficava-lhe bem. Não era bem pelo decote algo atrevido, nem por fazê-la parecer mais alta; era mesmo porque se gostava de ver com aquela cor.

As calças eram normalíssimas, de ganga azul. Não queria ir de pernas de fora até ao lar, logicamente. A mão dizia-lhe sempre a mesma coisa quando iam visitar a avó. Uma vez apanhara um senhor de idade a olhar-lhe para as pernas, e apesar de no momento ter achado piada mais tarde arrependeu-se. A avó era toda puritana, e não lhe ficava nada bem ir de mini-saia visitá-la.
Naquele dia, por acaso, não lhe dava muito jeito ir visitar a avó. Tinha combinado com umas amigas ir até ao centro comercial que abrira a alguns quarteirões de sua casa, onde abrira uma loja de roupa absolutamente fantástica. Paciência. Se despachasse o que tinha a fazer até às 4 ainda podia chegar a tempo ao compromisso.

Desceu até à sala de estar, onde o irmão estava sentado no sofá com a televisão aos berros. Uns bonecos extremamente violentos estavam a gritar numa língua oriental qualquer, enquanto se matavam uns aos outros. A mãe estava a passar a ferro, e assim que a viu largou o ferro de engomar e foi buscar um tupperware.

- Vais e voltas num instante, não te custa nada. Ainda por cima os bolos ainda estão quentinhos – dizia-lhe a mãe, enquanto tentava que o tupperware coubesse dentro de um saco de papel.

- Eu levo isso na mão, vá…

- Não levas nada, que senão arrefecem. Levas aqui dentro de um saco.

O tupperware entrou finalmente, e a mãe estendeu-lhe o saco.

- Espera só mais um bocadinho – disse ela, e desapareceu na cozinha.

- Ai, o que é agora… ?

- Espera só dois minutos, se fazes favor! – respondeu-lhe a voz da mãe detrás da porta do frigorífico.

No televisor, os bonecos orientais atacavam-se à machadada. Um deles, uma rapariga com uma mini-saia curtíssima, estava a gritar histericamente.

- Epa, põe isso mais baixo.

O irmão ignorou-a, concentrando as suas atenções na rapariga da mini-saia. A mãe voltou.

- Levas aqui também estes iogurtes que ela adora. Estão fresquinhos.

“Bolinhos quentinhos, iogurtinhos fresquinhos”, pensou ela.

- Porque é que vais com um top tão descapotável?

- Mãe, estou de calças e estão 28 graus lá fora…

- Estou a falar do top. Filho, põe isso mais baixo, por favor!

O rapazinho não ouviu.

- O que é que tem?

- Tem um decote um bocado exagerado, não achas? Se o teu pai te vê com isso…

- Posso ir andando ou não?

- Podes. Fica lá 10 minutinhos com ela, só para lhe fazeres companhia. Se ela começar a chorar tenta acalmá-la e depois diz-lhe que tens trabalhos da escola para fazer.

- Sim, mãe…

- Filho, põe lá isso mais baixo…

Já ela tinha saído de casa e ainda conseguia ouvir os berros da rapariga oriental.


O lar ficava muito perto dali, mesmo ao lado do jardim zoológico, mas não tardou a sentir-se arrependida por ter vindo de calças. Estava um calor sufocante, e o sol parecia furioso. Era um dia de praia perfeito. Todas as superfícies pareciam mais douradas e brilhantes. Os espelhos e as janelas dos carros reflectiam o sol. Toda a gente conduzia com as janelas puxadas para baixo, e com as mangas puxadas para cima. Metade das pessoas que passeavam pela rua ou estavam a comer um gelado ou a contar os trocos para o ir comprar. As crianças corriam de um lado para o outro, com bonés na cabeça.

Ela seguia apressadamente pela rua, com o seu top vermelho e o saco de papel cheio de bolos e iogurtes para avó. Queria despachar-se. Não ia perder uma tarde de Verão por causa daquilo. O lar era já naquela esquina. Atravessou com o sinal já vermelho e chegou à porta do lar ao mesmo tempo que alguém saía de lá a correr. Entrou.

A recepção tinha uma decoração muito simples e relaxante, cheia de plantas em vasos enormes e tapetes de cores alegres. O ar condicionado e a música ambiente estavam ligados. Havia um recipiente com rebuçados em cima da bancada da recepção, que estava vazia. À esquerda havia uma porta, à direita umas escadas. Não se via ninguém.

Ela foi até à recepção, olhou em volta, ainda esperou um bocado mas não apareceu ninguém. Agarrou em meia dúzia de rebuçados e meteu-os no bolso.

Subiu as escadas em direcção aos quartos, passando por estátuas e pequenas árvores em vasos. Havia um silêncio estranhíssimo pelas escadas acima, como se estivesse a entrar num prédio vazio. Subiu até ao segundo andar sem encontrar ninguém, e partiu para o corredor principal.

Os quartos dos dois lados tinham as portas fechadas. Num dos quartos alguém estava choramingar, com a voz meio apagada pela porta fechada. As solas dos sapatos dela faziam um barulho estridente no linóleo à medida que avançava. “Onde estarão as enfermeiras?”, pensava ela. Foi então que virou uma esquina e encontrou a enfermeira do piso; e depois ela gritou, e o saco dos bolinhos caiu ao chão.

A enfermeira estava a alguns passos de uma cadeira tombada, de costas para cima. Havia uma enorme poça vermelha ao lado da cabeça dela, e o seu uniforme branco estava manchado com os mesmos tons de vermelho. A meia dúzia de metros, mais ao fundo no corredor, estava uma parte do seu braço direito.

Ela levou as mãos à boca e gritou, mas o grito foi abafado pela palma da mão. Ficou a olhar para o corpo mutilado da enfermeira até se dar conta de que aquilo era demasiado forte para aguentar, e por isso fechou os olhos e desviou a cabeça. Permaneceu quieta por momentos a gemer, recompondo-se. Só depois começou a pensar no que podia ter provocado aquilo e aí é que ficou mesmo assustada.

“Anda um maluco aqui à solta”, pensou.

Calou-se logo. Dobrou os joelhos com alguma dificuldade, pois tremiam incontrolavelmente. Apanhou o saco dos bolinhos, como se fosse algo realmente importante naquele momento, e voltou a levantar-se. Desviou o olhar da enfermeira despedaçada, e contornou-a pelo maior trajecto possível e que mesmo assim lhe pareceu curto demais. Contornou também o braço abandonado, e aí começou a correr. As solas voltaram a chiar, e ela parou subitamente. Silêncio absoluto. Continuou pelo corredor, só que com muito mais cuidado.

O quarto da avó era a apenas algumas portas de distância, mas uma delas estava aberta. Espreitou quase involuntariamente. Atrás de uma cama tombada distinguiu a forma de duas pernas deitadas, com um dos pés descalços e o outro ainda com a pantufa equilibrada em cima dos dedos. As pernas não se mexiam. Os lençóis estavam estendidos pelo chão, com enormes marcas a vermelho, e desde os lençóis até à entrada do quarto corriam duas filas de marcas vermelhas, em fila indiana. Ela seguiu as marcas desde a cama até à entrada do quarto, mesmo ao lado dos seus pés. As marcas faziam depois uma curva e seguiam pelo corredor fora, desaparecendo mais à frente. Vistas de perto, reconheceu-as.

“O que é que um cão anda aqui a fazer?” pensou ela. Mas seriam mesmo de um cão? Pareciam; mas nesse caso o cão seria enorme.

Com o coração na garganta e o suor a escorrer-lhe pela testa, ela continuou corredor abaixo, cuidadosamente, com o saco de bolinhos numa das mãos. Queria sair dali, e queria sair dali rapidamente; mas não podia deixar a avó. Não se podia ir embora sem saber onde ela estava, e se estava bem.

A porta do quarto da avó estava aberta. Aproximou-se. Espreitou.

O quarto estava escurecido, com as persianas para baixo; apenas um pequeno raio de sol atravessava o quarto na diagonal. A cama não estava revirada, mas os lençóis sim. O candeeiro em cima da mesinha de cabeceira estava tombado, e havia vidros pelo chão. No canto mais escuro estava uma sombra pesada e quente, a mexer-se tranquilamente. Ela teve o cuidado de não fazer barulho absolutamente nenhum. A sombra estremeceu mais uma vez, e ela ouviu um som molhado e pegajoso de mastigação. Tentou dar um passo atrás para sair dali, finalmente poder respirar e gritar por ajuda. Pôs um pé atrás, trocou o peso do corpo de uma perna para a outra. A sola das sandálias chiou no linóleo. A mastigação parou.

A sombra contorceu-se, e do meio daquela forma indistinta surgiram dois pequenos pontos amarelos e brilhantes. Um ronronar ameaçador substituiu o silêncio do quarto, e por baixo dos pontos brilhantes apareceu uma fileira de dentes brancos e afiados. A sombra mudou de posição e ganhou forma, com os olhos brilhantes fixados nela. O vulto avançou, enorme, escuro e entroncado. Ela deu um passo atrás muito, muito devagar. O vulto deu um passo em frente e atravessou o raio luminoso. Ela não deu por nada, mas uma lágrima pequena e acelerada desceu-lhe pela bochecha e foi cair no top vermelho.

A cabeça do lobo era inacreditável. A fila de dentes parecia agora mais brilhante, mais real. O seu focinho estava cheio de uma matéria vermelha que lhe sujava também as patas; e os olhos, aqueles olhos amarelos e brilhantes, pareciam querer… devorá-la. Sim. Devorá-la era a palavra certa naquela situação.

O ronronar começou a aumentar de volume, até se transformar num rosnar constante. As patas avançavam com toda a confiança, deixando marcas a vermelho atrás de si. E os olhos… Ela recuava lentamente, pé ante pé. O lobo avançava, pata ante pata. Aquele jogo de recuos e avanços durou o suficiente para ela perceber que se ali ficasse ia acontecer uma tragédia, e se começasse a fugir não iria demorar até que aqueles dentes lhe fizessem o mesmo que àquela enfermeira.

- Não se mexa. – disse uma voz atrás dela.

Claro que ela se mexeu, revirando os olhos e tentando espreitar por cima do ombro sem mexer a cabeça.

- Eu disse, não se mexa – repetiu a voz, mais áspera. Ela parou completamente.

O que quer que estivesse atrás dela fez o lobo rosnar ainda mais, e arreganhar a boca para mostrar a dentição afiada. Começou a dobrar as patas, a baixar a cabeça, e pregou os olhos nela outra vez. Era agora. Ela fechou os olhos e esperou.

Houve um silvo atrás de si e o lobo parou de rosnar. Ela abriu os olhos. Um dardo cilíndrico e amarelado estava pendurado pelo pescoço do lobo. Os dentes pareceram maiores, o lobo ladrou violentamente, furioso, cedendo sobre as próprias patas. Continuou a ladrar activamente como se estivesse ofendido, e finalmente tombou para o lado.

- A senhora está bem? – perguntou a voz atrás dela. Duas mãos agarraram-na e puxaram-na para fora do quarto, enquanto três figuras de uniformes vestidos entravam no quarto e agarravam o lobo estendido no chão.

- A senhora está bem? Consegue ouvir-me? – perguntou a pessoa que a segurava. Ela não respondeu. As suas bochechas eram duas auto-estradas de lágrimas grossas e apressadas, que iam cair no top vermelho. Atrás do lobo reconheceu um pijama desfeito, e deu por si a largar o saco com os bolinhos no chão: a avó já não os ia comer.

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