quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Homem que Vomitava Estereótipos


O Homem que Vomitava Estereótipos acordou um dia sem qualquer percalço: sentia-se de tal maneira saudável que expelir pessoas pela boca era a última das suas preocupações. Abriu a janela, foi até à cozinha preparar um pequeno almoço nutritivo, entrou na casa de banho para preparar o duche e vomitou um bispo.


O bispo, coberto de gosma estomacal, levantou-se de um salto e benzeu-se de alto a baixo.

- Normalmente estou no outro lado do exorcismo, a ver a coisa a trepar pelas paredes – murmurou ele – mas hoje fui vomitado pelo demónio!

O Homem que Vomitava Estereótipos também se assustou; se calhar mais do que o bispo. Tinha razões para isso: ser cuspido por um tipo que se prepara para um duche é tão irreal como cuspir um bispo. É ela por ela, convenhamos. Mas o bispo tomou a palidez do Homem que Vomitava Estereótipos como sinal de Belzebu e meteu-se dentro da banheira, mergulhando na água a cruz e com ela beatificando-a energeticamente. Depois chapinhou como um menino, salpicando o Homem que Vomitava Estereótipos, e aguardou pacientemente que ele começasse a deitar fumo.

Em vez disso o Homem que Vomitava Estereótipos abriu a boca e deixou sair uma tia que Cascais, também ela coberta de gosma. Levantou-se de um salto, toda muito possidónia, e dirigiu-se ao outro lado da casa de banho.

- Mas que vem a ser isto? – anasalou a tia de Cascais.

- É Belzebu – informou o bispo.

- Sô Bispo, que prazer voltar a vê-lo!

- Oh, cara Pipita, como vai?

Conheciam-se; a tia de Cascais ajudou o bispo a sair da banheira e o Homem que Vomitava Estereótipos, entretanto esquecido, saiu a correr a caminho da sala. Pretendia ligar para a polícia. A corrida foi interrompida por um arroto. O Homem que Vomitava Estereótipos lá teve que abrir a boca e deixar deslizar uma funcionária das Finanças, carregando impressos e carimbos.

– Olhe para isto, sujou-me as petições todas de refluxo gástrico. Agora vou ter de efectuar um pedido formal dirigido à sede para me mandarem mais cópias. Tem um telefone?

O Homem que Vomitava Estereótipos ainda tentou escondê-lo mas a funcionária das Finanças abarbatou-se dele e começou a marcar números. Entretanto o bispo e a tia de Cascais tinham regressado da casa de banho e discutiam o colégio do Zé Maria a caminho da cozinha.

- Tem canapés? – perguntou a tia de Cascais, abrindo o frigorífico.

O Homem que Vomitava Estereótipos deu por si a tentar responder e, em vez disso, a trazer cá para fora um intelectual de esquerda.

- Este é um atentado às minhas liberdades individuais – disse ele, erguendo-se cheio de cuspo – Exijo o fim do Capital.

Enquanto o bispo enfardava um resto de borrego, a tia de Cascais procurava gelo para um granizado, a funcionária das Finanças efectuava uma encomenda de 100 cópias do impresso 45-B e o intelectual de esquerda citava Marx, o Homem que Vomitava Estereótipos correu até à porta e tentou sair sem ser visto; mas o vómito de um adepto de uma equipa de segunda divisão, a mastigar tremoços, interrompeu-lhe as intenções.

Empurrado pelo violento adepto, que se dirigiu à cozinha em busca de cerveja, o Homem que Vomitava Estereótipos reentrou em casa, foi sentar-se no sofá e produziu uma brasileira de mini saia e sotaque nordestino.

- Auê! – disse ela, animadíssima, aninhando-se junto ao Homem que a Vomitara segundos antes. Era uma mulher precisada de carinho; mas o adepto da equipa de segunda divisão aproximou-se e apalpou-a no rabo sem qualquer sensibilidade. O intelectual de esquerda, gritando que as liberdades individuais da brasileira nordestina tinham sido apalpadas, agrediu-o com uma cópia da obra completa de José Saramago enquanto a tia de Cascais regressava à sala bebendo um copinho de licor Beirão.

Entretanto o Homem que Vomitava Estereótipos vomitou um cirurgião giraço e com barba de três dias, que salvou a brasileira nordestina do confronto entre o punho do adepto e a cabeça oleada do intelectual de esquerda e conduziu-a para o quarto. O bispo, de cruz na mão, soltava apelos pela paz em latim; e o Homem que Vomitava Estereótipos, nervoso por ter sido abandonado pela brasileira e confrontado com a possibilidade de levar também ele um murro na cabeça, abriu a boca e vomitou um labrego de Trás-os-Montes, um mafioso siciliano e um stripper vertido de bombeiro.

Em pleno caos lá conseguiu afastar-se e foi até à casa de banho: a  banheira transbordava já de água, e talvez por isso o Homem que Vomitava Estereótipos não tivesse outro remédio senão dirigir-se à torneira para a fechar. Colocou mal o pé, escorregou na cruz previamente abandonada pelo bispo e, em pleno voo, vomitou um informático apreciador de Star Trek e um rapper de boina e correntes douradas.

- Yo – disse o rapper.

Desesperado, o Homem que Vomitava Estereótipos soltou um grito. A porta da casa de banho abriu-se de rompante: uma equipa de resgate aproximava-se, liderada pelo cirurgião giraço e pela brasileira nordestina com o batom todo borrado.

- Não vejo outra hipótese senão sacrificar a minha vida pessoal pela minha profissão e salvar este pobre homem – declarou o cirurgião giraço, provocando o fascínio da brasileira nordestina, da tia de Cascais e da funcionária das Finanças, que tinham chegado entretanto.

Atirando-se de joelhos ao chão, o cirurgião despiu a camisola, revelando soberbos músculos abdominais, penteou para trás o cabelo pantene e tapou o Homem que Vomitava Estereótipos com a sua camisola, preparando-se para o reanimar com respiração boca a boca. O Homem que Vomitava Estereótipos abriu a boca para gritar mas, em vez disso, expeliu um terrorista de barbas e turbante, que iniciou uma complexa gritaria em árabe e iniciou o artilhar de uma bomba-relógio.

Procurando impedir a desgraça, o Homem que Vomitava Estereótipos seguiu o terrorista até à sala, que por sua vez estava dividida num confronto sanguinário. De um lado, o mafioso siciliano liderava o stripper vestido de bombeiro e o adepto da equipa da segunda divisão contra as forças do intelectual de esquerda e do labrego de Trás-os-Montes; e o bispo, perdido no meio das duas trincheiras, recitava São Mateus. O terrorista correu para o meio da sala, agitando a bomba, o adepto da equipa da segunda divisão fez uma piada qualquer com turbantes e o intelectual de esquerda, certo de que tudo não passava de uma ofensa à identidade religiosa do pobre terrorista, atirou com um candeeiro que acertou por engano na tia de Cascais que por ali passava, e que por sua vez derrubou o terrorista com a sua mala Louis Vuitton. A bomba-relógio, armadilhada, esvoaçou para trás do sofá, e o Homem que Vomitava Estereótipos, mais nervoso que nunca, cuspiu um cientista de bata, um político corrupto e um crítico de moda com óbvias tendências homossexuais. O bispo, ofendido pela presença do crítico de moda e respectivas cuecas de cabedal, iniciou uma acesa discussão com o intelectual de esquerda sobre a natureza do Homem; e o mafioso siciliano, que até simpatizava com a tia de Cascais agora falecida, desatou a dar tiros nas rótulas de quem encontrava pelo caminho. Quem também contribuiu para a desgraça foi a funcionária das Finanças que, habituada a lidar com confusões, gritava que todos deviam tirar senha antes de se matarem mutuamente.

O Homem que Vomitava Estereótipos decidiu-se pela fuga (não sem antes expelir um gótico com botas de vinte cinco centímetros e um neo-nazi tatuado e careca): correu para a porta, que entretanto ficara desimpedida, e preparava-se para fugir quando se sentiu agarrado pela brasileira nordestina, choramingona. O cirurgião giraço estava perdido em combate, já que sacrificara mais uma vez o momento de amor com a sul-americana para ir restituir as rótulas às vítimas do mafioso siciliano. Sentindo que no fundo tudo aquilo era da sua responsabilidade, o Homem que Vomitava Estereótipos entrou cheio de bravura na zona de combate, encontrou e puxou dali para fora o cirurgião giraço, que entretanto o reconheceu, agradeceu-lhe a boa vontade e transportou ao colo dali para fora.

Já no hall de entrada do prédio, o Homem que Vomitava Estereótipos ainda conseguiu ouvir a enorme explosão da bomba-relógio, e pôde ver (do colinho do cirurgião giraço) pedaços de turbante, páginas de Marx e um chapéu chamuscado de bombeiro a cair sobre os carros estacionados à entrada. A brasileira nordestina começou a sambar, sempre cheia de alegria de viver, e o cirurgião giraço pousou o Homem que Vomitava Estereótipos no chão e disse:

- O trabalho é imprescindível, e salvar vidas é a minha grande virtude; mas a família é igualmente importante. Graças a ti aprendi esta enorme lição.

Como agradecimento retirou a camisola, penteou para trás o cabelo pantene e operou logo ali o Homem que Vomitava Estereótipos, arrancando-lhe com profissional dinamismo o estranho tumor que lhe crescia na barriga e dentro do qual, em fase embrionária, começara já a formar-se uma empregada de limpeza ucraniana; e finalmente, sob o olhar aliviado do Homem que Nunca Mais Vomitou Estereótipos, o cirurgião giraço tomou a brasileira nordestina pela mão, abandonou com ela o hall de entrada e caminhou pela rua fora, enquanto sobre eles desciam resquícios queimados dos impressos 45-B e a calorosa luz do sol posto.

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