segunda-feira, 7 de maio de 2012

Deambulatório




Dei por mim numa rua longuíssima, aos ziguezagues, cheia de poças por entre os solavancos que as raízes das árvores davam ao chão. Procurei não molhar os pés: estava gelado. A chuva que caíra até há uns minutos atrás deixara o céu cinzento, abaulado; e viera gordíssima, a sacanear os transeuntes que não contavam com ela. Eu incluído. Mas segui em frente sem remorsos nenhuns: há qualquer coisa de melancólico mas belo em caminhar por uma rua molhada, ouvir o chapinhar das coisas e a mecânica dos carros transformada em salpicos transtornados.


Passei por uma praça pequena e cruzei-me com uma velhota magríssima, daquelas curvadas por um peso invisível, que me olhou como quem se defende de um leão. Desenhei um círculo à volta dela, mais para não a assustar que para me defender. Ela continuou a olhar-me nos olhos por momentos mas depois pô-los no chão, baços e tristonhos. Deve ter percebido que eu não era ameaça nenhuma e que não a ia atacar. Virou uma esquina e foi envelhecer para outro lado.

A praça dava para uma bifurcação: direita ou esquerda? Recordo-me da razão por que vim passear: não tomar decisão alguma. Fugir das obrigações com a descontração do irresponsável. Virei para a direita mas também podia ter virado para a esquerda. Vá-se lá saber como funcionam estas coisas.

A rua era escura e tive medo: do outro lado aproximava-se um homem vestido de negro, coberto com uma barba cinzenta e pastosa, com uma bocarra aberta a bocejar placidamente. Rua abaixo, rua acima, tudo cinzento e vazio: só eu e ele. As lojas estavam fechadas, havia lixo molhado na calçada e os carros estacionados estavam embaciados por dentro. Observei o homem enquanto pontapeava uma pedrita. Ele não me viu. Pontapeei a pedrita até ao fundo da rua e olhei para trás: o homem entrava por um buraco na parede. Decidi voltar atrás e esquecer a pedrita. Quando me aproximei vi que a abertura na parede dava para um espaço abandonado, cheio de plantas rasteiras molhadas e montanhas de tralha que prometiam ratos e cheiros. O homem desaparecera algures por ali. Procurei-o mas não o voltei a ver.

Meti-me no metro. A vida à superfície estava a adormecer-me. Queria alguma velocidade. Queria aquela sensação de poder ir de um ponto ao outro da cidade calmamente, sentado no meio de estranhos. Não precisava de andar: sentava-me e ia. Podia dar a volta, voltar para trás e atravessar a cidade as vezes que quisesse que ninguém me diria nada. Podia olhar para os outros e os outros poderiam olhar para mim e saber que só nos voltaríamos a ver graças a uma coincidência daquelas.

Sentei-me à espera. Nada mais solitário que uma estação de metro que faz eco. O zumbido do metro ainda vem distante. Faço cálculos: três pessoas dispersas, sabe-se lá há quanto tempo esperam. Pouco me importa. Entrei ali para andar sem pressas: sento-me, tiro um livro do bolso. O zumbido do metro lá está ao fundo. Uma coluna rouca cospe uns sons que são música segundo o critério de alguém; a mim soa-me a rádio desgastado. Levanto os olhos do livro que finjo ler e dou com um casal de namorados enrolado: beijam-se com uma sofreguidão badalhoca, uma urgência desesperada. Tanta luxúria por soltar, compressa debaixo das roupas pelo espaço público. Uma senhora observa-os, tímida: não sabe que a observo também.

Forma-se ali um triângulo voyeurista de esquisitíssimas potencialidades: os namorados puxam-se um para o outro, dizem coisas ao ouvido, riem com a discrição com que foram educados. A senhora, pudica, endireita o casaco comprido: tem collants, sapatos, uma saia longa, tudo em tons distintos de creme. Aquele espaço todo fica cheio de uma eletricidade fraca qualquer, a contenção daquela senhora toda muito séria a roê-la por dentro e a fazer com que mexa apenas os olhos arrebitados. Desce e sobe com o olhar o corpo dos namorados, incomodada com as roupas, com os movimentos, com a proximidade, com uma coisa qualquer indefinida que as gerações que a seguem devem ter e que ela já não reconhece em si. Ou sou eu que estou a meter-lhe coisas na cabeça sem saber o que digo? Dou por mim feito parvo a fitá-la nos olhos: topou-me em flagrante. Desço depressa para o meu livro, curvado de vergonha, sinto a pulsação toda nas têmporas e leio a mesma frase quatro ou cinco vezes antes de espreitar pela periferia. A senhora está a apertar o casaco e a ver as horas num relógio pequenino, e o casal de namorados parece querer resgatar qualquer coisa da garganta um do outro usando a língua. Que imagem.

Chega o metro. Entramos. A carruagem vai quase vazia: um gordíssimo lê um jornal, um homem corta as unhas para um canto e um cego, ao fundo, vem a descer o corredor tocando um instrumento e pedindo solidariedade com o metro a engolir-lhe as preces. A senhora senta-se toda erguida, procurando não encostar-se em sítio algum, mas deposita uma moeda no recipiente do cego quando ele passa por ela a cantarolar numa voz rouca. O casal de namorados está a rir sabe-se lá porquê, umas gargalhadas deslocadas daqueles sons todos. O metro chia. Paramos numa estação, não entra ninguém, sai o cego. O metro arranca, a senhora olha pela janela, o gordo atende o telemóvel e fala alto, o namorado troca de lugar e fica de frente para a respectiva, mastigam agora umas gomas amarelas e cor de rosa que deitam um cheiro a borracha, o homem que corta as unhas acabou e agora lima-as com a atenção do engenheiro, de repente estou enjoado de ali estar e saio a correr.

Acelero escada acima: lá fora está a chover outra vez, daquelas gotas minúsculas que não são água mas vapor. Aquilo respira-se, entra pela boca e faz-nos engolir em seco e respirar molhado. Por alguma razão começo a correr. As lojas estão fechadas e as pessoas que passam são corpos impermeáveis, equilibrando guarda-chuvas contra o vento. Tenho o livro amachucado dentro do bolso, quero guardá-lo noutro sítio e não posso. Procuro um café; não há nenhum aberto. Vou a correr. Mal consigo respirar, engulo ar aos solavancos mas continuo, não vá eu parar sem me dar conta.

Dou por mim numa rua longuíssima, aos ziguezagues, cheia de poças por entre os solavancos que as raízes das árvores davam ao chão. Mas sigo em frente sem remorsos nenhuns: há qualquer coisa de melancólico mas belo em correr por uma rua molhada, ouvir o chapinhar das coisas e a mecânica dos carros transformada em salpicos transtornados.

1 comentário:

Madalena disse...

Gosto mesmo deste teu "Deambulatório". Está muito bem escrito, descreves o essencial com um toque de humor que te é característico. Identifiquei-me com o texto e acho incríveis este tipo de experiências. Perdemos tanto de peculiar, de ordinário e maravilhoso quando andamos na rua enclausurados no nosso invólucro! Quando prestamos atenção entramos em verdadeiras aventuras. E no entanto rematas o texto tornando ao início. A rua é a mesma, mas já não é a mesma rua, a história repete-se mas de certo não com os mesmos contornos...
Já divaguei demais.

Madalena