terça-feira, 16 de março de 2010

Creatiologista no Saldanha


Abri o Blogger para escrever mas como não me saiu nada fui para a cama mais cedo. Há semanas que não escrevo nada, nada que se veja, nada de criativo ou minimamente satisfatório para oferecer a mim próprio. Leio bastante, um pouco de tudo, mas há algo que está terrivelmente mal com a minha glândula criativa. Assim, consultei um médico. Havia vários anúncios para creatiologistas na Internet, mas como estou mal de trocos fui-me pelo mais barato; ainda por cima era perto, com consultório no Saldanha. Fui.

Cheguei. A sala de espera estava repleta de escritores sem inspiração, um pintor com tinta no nariz que choramingava e uma senhora gorda a tricotar uma peça horrenda com gatinhos a saltar e letras do alfabeto grego. Vi que a senhora também chorava, e percebi que a sua glândula criativa também estava em baixo. Todas as revistas de moda de 2004 que estavam na mesinha junto às cadeiras pareciam demasiado lidas para poderem ser manuseadas sem apanhar alguma constipação, pelo que fiquei a olhar de um lado para o outro.

- Tão novo e já no creatiologista? - perguntou-me a senhora.

- É verdade - respondi eu, brincando com o Cartão de Utente por entre os dedos, não querendo parecer simpático para não despertar uma daquelas conversas intermináveis sobre problemas de saúde que as pessoas de mais idade tanto gostam de ter. A última vez que tal me aconteceu foi com a minha porteira, uma mulher chata, que sempre que me encontrava no elevador se punha com uma infinita descrição de todas as suas idas ao médico por causa da rótula. A rótula, a rótula, a rótula. Um dia, sem ninguém ver, fechei-a em casa arrastando-a pelos cabelos e fui à cozinha buscar uma espátula. Sentei-a numa cadeira, atei-lhe as mãos e colei-lhe a espátula à rótula magoada, como os mafiosos da televisão fazem só que com pistolas. Pensei em ameaçá-la assim, mas vi que com uma espátula pouco resultaria e além disso a mulher estava a gritar descontroladamente. Dei-lhe com a espátula na cabeça, e ela adormeceu. Onde poderia comprar uma arma a esta hora? Já sei; no Pingo Doce. Deve haver. Se até já têem aquelas refeições pré-feitas, e fornadas de pão quente a partir das 18 e trinta da tarde, porque não revólveres? Achei que fazia todo o sentido e sai de casa a correr, deixando a porteira adormecida no centro da minha sala. Olhei para o relógio, e só aí reparei que estava atrasado para uma aula importantíssima. Tinha mesmo, mesmo de ir. Fui.

Cheguei à aula e o professor faltou. Os meus colegas ficaram felicíssimos, talvez por não terem mais que fazer, talvez por não terem uma porteira inconsciente à sua espera em casa para ser torturada. Corri ao Pingo Doce, e o segurança à entrada olhou para mim com ar suspeito. Devia saber que estava a preparar alguma. Dei uma volta pelos corredores, procurando os revólveres, mas não havia nenhum. Estranhei. Perguntei a uma das meninas da caixa onde vendiam as armas, e ela olhou para mim com uma cara de pânico que não compreendi e depois chamou o segurança. O segurança já me tinha topado à entrada, e por isso seguiu-me enquanto atravessei o corredor dos queijos a fingir-me indeciso entre queijo fatiado ou para barrar. O segurança aproximou-se de mim e vi nele a oportunidade perfeita. Agarrei num queijo da serra, enorme e gordo, e atirei-o contra o segurança. Não percebo porque é que achei que ia deixar um segurança inconsciente com o queijo, e agora que olho para trás parece-me realmente uma ideia ridícula; na altura pareceu-me óptimo, pronto. Não me desculpo.

Não resultou, mas o segurança desequilibrou-se e u consegui sacar-lhe a arma que trazia à cintura. Agarrei nela, dei um tiro para o ar, e toda a gente começou a gritar e atirar-se para o chão. Um senhor de idade retirou a carteira do bolso e começou a estender-me notas amachucada, implorando pela própria vida, choramingando mesmo quando lhe disse que só queria levar o revólver e um pacote de queijo fatiado. O senhor foi teimoso, insistiu, disse que amava demasiado os netos para poder morrer ali daquela maneira, e eu lá lhe fiz a vontade, agarrei nas notas e não lhe dei um tiro. Ele agradeceu-me, ficou a chorar, e quando sai a correr do Pingo Doce comecei a ouvi-lo gritar, chamando a polícia e dizendo que tinha sido roubado violentamente por um delinquente negro de 27 anos e tatuado no ombro.

Aquilo deu-me um jeitão, porque eu não era um negro de 27 anos com tatuagens no ombro, pelo que a polícia ia procurar um homem que não se parecia em nada comigo. Caminhei até casa, comendo fatias de queijo pelo caminho, e entretanto encontrei o meu professor, o faltoso, que me fizera ter furo ainda há uns minutos. Quis dar-lhe um tiro, sinceramente. Estava a beber café com toda a descontracção. Fui-me a ele, de revólver na mão, relembrando-lhe que era o dinheiro público que lhe estava a pagar a bica e o bolo de arroz, e ele colocou os braços no ar e começou a chorar. Quando vi que lhe apontava o revólver sem querer até me senti mal, deixei cair a arma no chão e procurei acalmá-lo. Estendi-lhe o seu bolo de arroz, ofereci-lhe queijo, mas nada. Estava inconsolável. Não percebo bem porquê, apesar de o professor ser sempre muito exagerado com tudo. Quando ia apanhar a arma no chão, vi que desaparecera.

- E depois? - perguntou a senhora, que entretanto interrompera o crochet e ouvia a minha história sentada na ponta da cadeira. Ganhou cor, parecia entusiasmada.

- Alguém me levou a arma. Não sei quem.

A assistente do consultório, uma mulher loura com pernas enormes e que pelos vistos as gostava de exibir sem medo de parecer uma oferecida do pior, aproximou-se de mim e declarou-me que o senhor doutor estava à minha espera.. Deixei a senhora do crochet desapontada com o fim da minha história, e entrei no consultório.

O médico era um homem bastante feio. Não conseguia bem olhar para ele, pois o meu almoço dava voltas e voltas dentro do meu estômago. Ele perguntou-me o que se passava para me sentir sem inspiração, e eu expliquei que o nariz dele não estava a ajudar. Ele corou, disse que já estava habituado, e perguntou-me porque o vinha consultar. Eu perguntei-lhe se a boca dele se mexia mesmo assim ou se era uma máscara, e ele pareceu levar aquilo muito a peito.

- Ouça... - ameaçou-me ele com um dedo, dedo esse que não vi, porque estava a tentar controlar-me para não vomitar.

- Não aguento - confessei. O médico pareceu à beira do choro. Abriu uma gaveta e retirou um revólver que, por alguma razão, reconheci muito bem. Levei sete tiros, dois deles mortais e os outros só pelo gozo. Caí no chão sem sentir nada, nadando no meu próprio sangue. Cuspi um líquido quente e vi o consultório andar à roda. Pedi para alguém chamar o 112, se fizessem favor, e segundos depois ouvia sirenes e conseguia, daquele ângulo, avistar o interior da saia da assistente do consultório, que olhava para mim a chorar do alto das suas pernas. Ia adormecer. Venham rápido, que morro aqui e hoje. Venham rápido.

A porteira, pensei eu no fim. Esqueci-me da porteira.

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2 comentários:

What disse...

Yeaaah!!! Uma das melhores de sempre!! Grande final!! :D

Paulo39 disse...

"Levei sete tiros, dois deles mortais..."

ROFTL