quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Polémica: José Saramago tem opiniões!

A notícia do dia é esta mesmo: Saramago tem uma opinião. Numa entrevista (e, mais tarde, numa conferência de imprensa dada hoje ao início da tarde), José Saramago opinou sobre Deus no contexto do seu novo livro, “Caim”. Chamou-o vingativo e “má pessoa”, e disse que a Bíblia é um catálogo de maus costumes.

Claro que o país está em alvoroço, cheio de gritos de ofensa contra José Saramago. Um eurodeputado, infelizmente eleito pelos processos democráticos que deviam enviar para Bruxelas aqueles que melhor nos representam, disse mesmo que José Saramago devia mudar de nacionalidade; o que é um conselho engraçado, especialmente quando falamos de uma figura tão micheruca do panorama da literatura portuguesa.

Os programas de opinião pública da tarde deram largo espaço de emissão a esta discussão, convidando teólogos e padres a se pronunciarem. Todos eles deram a típica desculpa de que Saramago não percebe nada do que está a falar. Todos os participantes nestes fóruns aproveitavam o tempo de antena para pregar uns quantos minutos, e um dos espectadores disse mesmo com toda a calma que o senhor Saramago vai parar ao Inferno (e, implicitamente, que é muito bem feito).

Falo aqui disto porque, como já devem saber, sou um grande fã de discussões sobre este tipo de coisas, e há meses que espero por algum tipo de “escândalo” religioso no nosso país. Ele aí está. Permitem-me que opine (se isso não ofender ninguém, claro).

José Saramago pode ter a opinião que quiser. Pode dizer o que lhe apetece, e tem direito não só às suas opiniões como também a expressá-las da forma que mais gostar; mesmo quando essas opiniões vão contra a maioria dos seus compatriotas. José Saramago, por acaso, até tem bastante razão naquilo que diz. Não só concordo com ele, como desafio qualquer dos ofendidos a ler as primeiras cinquenta páginas da Bíblia e encontrar-me mais concelhos morais do que descrições de mortes ou chacinas generalizadas. Mas a questão aqui não é se Deus é vingativo, egocêntrico ou cruel ou não; a questão está em que toda a gente está ofendidíssima com aquilo que Saramago disse pensar do seu Deus.

Lembro-me agora com bastante gozo a questão já passada dos cartoons dinamarqueses, em que Alá aparecia com uma bomba no turbante. Lembram-se? Qual foi o problema nesse caso? Foi um dinamarquês com a mania das grandezas ter criticado um Deus? Não senhor; foi a reacção desproporcionada da comunidade islâmica, com as típicas ameaças de morte e queima de bandeiras pelas ruas.

E agora, meus amigos? Neste caso, o que se passa? Não terá Saramago direito a fazer o seu cartoon, sem se preocupar com o que alguns de vós possam achar ofensivo? Estão ofendidos; e depois? Isso está acima da liberdade de expressão? Um dos comentadores escolhidos por um dos programas da tarde dizia mesmo: “Saramago não tem o direito de criticar as crenças dos outros, nem de os ofender”. Ai não? Quem disse? A mim ofendem-me as pipocas no cinema. Juro (por Deus) que me ofendem. Se pudesse, proibia-as; mas não o faço. As outras pessoas têm todo o direito de comer pipocas, e se vou ao cinema tenho de ter em consideração as regras que regem os cinemas. Por isso não ponho os pés em cima das cadeiras, nem deixo lixo no chão; e se a liberdade que os outros têm de comer pipocas me ofende a sensibilidade, não tenho outro remédio senão aguentar-me e apreciar o filme, ou voltar noutro dia com uma sala mais vazia.

Estou ofendido; e depois? A mim pouco me importa que para os crentes Deus seja perfeito e incriticável; para mim não é, e para Saramago também não. Não seremos os únicos, aliás. Há muito boa gente que concorda com Saramago, mas a esses não os ouço. Ouço, sim, os crentes ofendidos, fazendo lembrar a estúpida polémica à volta do “Código DaVinci”. Ouço os teólogos em delírio, dizendo disparates como “A Bíblia é um livro que se pode ler às crianças”. Desafio qualquer destes teólogos a deixar-me ler umas quantas passagens da Bíblia à frente dos seus filhos pequenos. Passagens cheias de amor e moralidade, como (é a primeira que me vem à cabeça) aquela em que dois ursos chacinam 42 crianças por terem chamado careca a um homem; ou a história em que duas filhas fazem sexo com o seu próprio pai depois de o embebedarem, para darem continuidade à família.

Ouço, sim, a Igreja Católica, sempre avançada e coerente, cujas declarações e comentários irão multiplicar as vendas do livro em vez de as reduzir. Chamar “golpe publicitário” à opinião de Saramago é dar-lhe ainda mais publicidade do que ele alguma vez poderia arranjar com as palavras que proferiu sobre Deus (aliás, é uma teria que faz todo o sentido; se há alguém que precisa de vender mais livros é José Saramago).

Espero que esta situação aumente as vendas dos dois livros, quer do “Caim” quer da Bíblia. Afinal, um romance histórico com genocídios, perseguições, apedrejamentos, incestos e uma personagem principal omnipotente com uma estranha tara por circuncisões tem um potencial enorme em termos de vendas. Desejo todo o sucesso ao livro de Saramago, e a ele também. Se este Deus for verdadeiro, lá nos encontraremos no Inferno. Até lá, por este mundo, vamos continuando a dizer aquilo que quisermos que é para isso que inventaram uma coisa chamada liberdade de expressão.

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