sábado, 27 de março de 2010

O dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar

O dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar foi um dia normalíssimo. Cosmos começou por desligar o despertador e seguir com as rotinas habituais. Constatou mais uma vez que estar mais cinco minutos na cama, apesar do sono, não lhe resolveria o problema do cansaço. Constatou ainda que se lavava sempre na mesma ordem, de baixo para cima, talvez porque inconscientemente fazia sentido começar nos pés e terminar na cabeça, dando prioridade ao mecanismo de locomoção humano e terminando com alguns momentos dedicados à cabeça capaz de pensar. Cosmos constatou também que não tinha cortado as unhas dos pés; isto logo no início do banho, está claro. Reflectiu sobre se seria uma boa ideia perder alguns minutos a cortá-las, e decidiu que não. Usava sapatos no emprego, que lhe escondiam as unhas por cortar e a ocasional meia rota junto do dedão.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar o céu parecia pesado e cinzento, como se os testículos gigantes de um enorme elefante pairassem sobre a cidade de Lisboa. Cosmos gostava destas comparações, pois eram uma boa forma de começar o dia. Cosmos tinha pouco dinheiro, porque a sua carreira estava a começar. Esperava, portanto, pelo autocarro na esquina da sua rua, empoleirado nos seus sapatos engraxados e escondendo o seu escanzelado corpo atrás de uma camisa às riscas verticais e uma gravata pálida e sem personalidade. Cosmos penteara o cabelo para o lado, como era costume, porque em pequeno era o que a mãe lhe fazia e sempre achou que parecia elegante penteado daquela forma. Ninguém concordaria, mas ninguém o diria à frente de Cosmos, pelo que cá está ele mais um dia penteado da mesma forma.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar o autocarro atrasou-se uns minutos, e vinha cheio. Cosmos empoleirou-se entre uma senhora de idade, cuja dentadura parecia perigosamente solta e prestes a saltar dos seus alicerces escorregadios, e um jovem alto e com cara de cavalo, com o cabelo lambido ao lado, as calças pelos joelhos e os boxers à vista desarmada. Cosmos aproveitou aquela visão para repensar o seu aspecto geral, e puxou a camisa para dentro das calças com todo o rigor e meticulosidade.
O dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar decorreu normalmente. Cosmos chegou ao emprego, subiu o elevador até ao 21º andar, atravessou o corredor branco, ladeado por pequenos cubículos brancos e coberto por um teto falso branco, e foi sentar-se no seu cubículo, minúsculo, ao lado da casa de banho das senhoras e demasiado longe da máquina do café para tornar uma viagem até lá minimamente prática. Cosmos sentou-se e rapidamente começou a trabalhar, segurando as folhas com densas colunas de números e ligando a sua calculadora. Começou por somar cada número com o seu colega respectivo, na coluna oposta, e por aí adiante, registando os resultados numa terceira coluna que ia sendo preenchida soma a soma.
Às treze hora do dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, Cosmos já terminara as suas somas e completara 23 colunas de números, pelo que estava satisfeito. Sorrindo, encostou-se na sua cadeira e retirou o tupperware com bacalhau com natas que trazia na sua mala. O tupperware tinha uma tampa rectangular e cor de rosa, e fazia parte de um conjunto de tupperwares a condizer entre si que a sua mãe lhe tinha dado no último Natal. Cosmos retirou o pequeno saquinho de plástico onde trazia os talheres e o guardanapo, e alinhou-os paralelamente uns aos outros em cima da secretária. Quando se ia levantar, viu o garfo e a faca começarem a tremer a um ritmo definido e constante. Toda a sua mesa tremia, em pequenos solavancos. A parede à sua direita tremia, empurrando a cada solavanco a mesa e o que nela se apoiava. Cosmos sabia do que se tratava, pelo que esperou apenas que passasse. Ao seu lado, na casa de banho das senhoras, decorria um encontro fugaz entre a rapariga bonita da contabilidade, a única que não ria do penteado de Cosmos nas suas costas e sem ele saber, e um enorme homem que as mulheres consideravam atraente e que conduzia um carro desportivo. O encontro costumava ser discreto, pelo que apenas Cosmos, com a sua secretária a tremer, sabia da sua existência. A mesa parou de tremer, e segundos depois a porta da casa de banho abriu-se e de lá saiu o homem e, cinco minutos depois, a mulher, alisando o cabelo.
Às catorze horas do dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, Cosmos prosseguia com a suas somas quando o homem enorme voltou a entrar na casa de banho das senhoras, seguido por uma mulher loura de pernas compridíssimas, que com certeza mal cabiam dentro da cama sem arrancar os lençóis de debaixo do colchão; isto foi o que Cosmos pensou ao vê-la. Segundos depois, a secretária de Cosmos começou a tremer, desta vez com mais violência do que há pouco. Cosmos estava surpreendido. Minutos depois o tremer acabara, e Cosmos pôde retomar os seus cálculos.
Às quinze horas do dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, a rapariga bonita da contabilidade veio ao cubículo de Cosmos pedir-lhe as somas que fizera até à hora do almoço, como era hábito. Cosmos deu-lhe os resultados das somas, enquanto suava ligeiramente por nunca se sentir à vontade com uma mulher bonita ao pé e por não ter bem a certeza se a sua calculadora ia ter pilhas suficientes para o resto da tarde. A rapariga bonita sorriu-lhe, amavelmente, e Cosmos esteve quase para lhe dizer que sabia do seu caso com o homem porque de cada vez que se encontravam o seu cubículo era abanado como que por um tremor de terra; mas procurou ser educado e não disse nada.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, a rapariga bonita ia sair do cubículo mas voltou para trás, perguntando:
- Eu chamo-me Azália, e tu?
Cosmos não sabia bem o que responder, porque nunca ninguém falava com ele, muito menos lhe perguntava o nome, e porque a última vez que tivera que assinar o seu nome tinha sido na segurança social, há mais de dois anos e meio.
- Cosmos – disse ele.
- Cosmos? É um nome bonito – disse Azália, sorrindo mais uma vez – Cosmos – repetiu ela.
- Azália é um nome bonito, também – disse Cosmos, recomeçando a suar.
- Não, não é. É horrível. Foi uma tia minha que o escolheu, e a minha mãe viu-se obrigada a chamar-me assim porque era essa tia que lhe pagava os anti-depressivos. É um nome terrível – disse Azália.
- Sim, é realmente medonho – disse Cosmos.
- Porque te chamas Cosmos?
- A minha mãe achava que eu ia ser uma menina, e queria chamar-me Cosmopolitan.
- Como a revista?
- Sim. Tenho uma irmã chamada Super Interessante.
Azália começou a rir-se, um sorriso belo e que a Cosmos pareceu dar-lhe arrepios.
- Ei, és engraçado, Cosmos – disse ela; Cosmos não percebeu. Tinha mesmo uma irmã chamada Super Interessante.
- Cosmos, gostarias de ir ali comigo a um sítio?
Cosmos não tinha bem a certeza; uma rapariga a convidá-lo para ir a um sítio parecia-lhe uma ideia demasiado radical para ser verdade. Cosmos olhou para a sua calculadora e começou a fazer movimentos circulares sobre o eixo da cadeira.
- Tenho algumas somas para fazer até ao fim da tarde, não sei se me dá muito jeito.
- Vá lá, são só cinco minutos – disse Azélia, sorrindo-lhe da forma mais simpática de sempre.
- Tem pilhas para calculadoras? – perguntou Cosmos. Já que uma rapariga lhe estava a dar conversa mais valia aproveitar a situação da melhor forma.
Azélia pareceu subitamente desinteressada.
- De quais?
- Daquelas cilíndricas, só que as mais fininhas – disse Cosmos.
- Acho que sim, na minha gaveta.
- Óptimo – disse Cosmos, e depois não acrescentou mais nada. Era terrível com raparigas, e já que a conversa estava a correr tão bem não queria acrescentar algum pormenor que o ridicularizasse.
- Ouve, queres ir comigo ou não? – perguntou Azélia, e Cosmos disse que sim, depois de ter a garantia que Azélia tinha mesmo pilhas para a calculadora.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, Azélia arrastou Cosmos para dentro da casa de banho dos homens e enfiou-os num cubículo pequeno, junto aos urinóis. Cosmos estava confuso, uma vez que Azélia era uma mulher. O seu lugar não era ali, na casa de banho dos homens.
- Esta é a casa de banho dos homens – disse Cosmos, e com razão.
Azélia começou a remexer na blusa, e olhou para Cosmos com atenção.
- Tu não tens muito jeito para mulheres, pois não?
Cosmos não percebeu o porquê daquele comentário.
- Porque estás a tirar a blusa?
- Adivinha lá – disse Azélia, agora empoleirando-se no autoclismo, de soutien à mostra, e levantando a saia. Encostou-se contra a parede e olhou para Cosmos com uma cara desafiante.
- Anda – disse ela.
Cosmos percebeu do que se tratava aquilo. Não estava à espera que a sua primeira vez fosse na casa de banho dos homens no seu local de trabalho; a ideia parecia-lhe perigosa e eticamente repreensível. Por outro lado, sempre ouvira falar que estar com uma mulher era uma experiência agradável.
- Tem contracepção disponível? – perguntou Cosmos, lembrando-se de um anúncio que vira na televisão.
Azélia pareceu frustrada.
- Estás a brincar? Importas-te de saltar para cima de mim tipo agora?
Cosmos começou a trabalhar no seu cinto, retirando-o com cuidado. Dobrou-o num pequeno rolinho e colocou-o em cima do papel higiénico ao seu lado.
- É preciso tirar os sapatos? – perguntou. Não queria, uma vez que estava com as unhas dos pés por cortar. Azélia começou a agitar-se em cima do autoclismo, batendo com força com as palmas das mãos na parede da casa de banho. Cosmos podia imaginar como aquele homem enorme, o do carro desportivo, que tinha o escritório mesmo ali ao lado, estaria a ouvir tudo o que ali se estava a passar.
- Anda lá – disse Azélia em voz baixa, puxando-o para si. Começou a gemer em voz alta, e a forçar o autoclismo com o rabo de maneira a produzir um barulho ensurdecedor. Cosmos não sabia muito bem o que fazer, porque não conseguia desapertar o botão das calças mas não queria estragar o momento de Azélia. Deixou-se ficar encostado a ela, mantendo uma distância cuidada entre as suas calças e a borda da sanita que costumava estar toda pingada. Não queria sujar as calças.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, o homem enorme entrou na casa de banho dos homens vermelho de raiva, abriu a porta do cubículo, puxou Cosmos pelo colarinho e encheu-o de pancada. Azélia pareceu satisfeita.
- Como foste capaz de fazer isto com este lingrinhas? – perguntou o homem enorme, enquanto amassava com eficiência a polpa vermelha em que se transformara a bochecha esquerda de Cosmos.
- Quem te mandou vir para aqui com a loura dos Recursos Humanos? Hum? – perguntou Azélia, fingindo-se estafada depois de toda a actividade. Cosmos, na sua condição de esmurrado, permaneceu quieto no chão sem se mexer. Vira um interessante documentário sobre um certo animal que se fingia morto quando um predador passava, de maneira a desviar a atenção do mesmo. Não se conseguia lembrar que animal era esse, mas decidiu imitá-lo.
- E quem é este, afinal? – perguntou enraivecido o homem enorme, segurando Cosmos pela gravata.
- É o Cosmos, que é um homem trabalhador e muitíssimo bem equipado. Ele sabe como satisfazer uma mulher. Ele é um homem com O grande, Bruce.
Cosmos estava surpreendido. Satisfazer uma mulher parecia, no fundo, mais fácil do que todos aqueles filmes vulgares que via aos Sábados à tarde deixavam transparecer. A sua prestação, apesar de nem ter conseguido desapertar o botão e tirado as calças, parecia ter sido fantástica. O homem enorme, que pelos vistos se chamava Bruce, esmurrou Cosmos mais umas vezes, deixando-o sem grande energia para se levantar e com uma vontade preocupante em adormecer. Depois, largou-o no chão da casa de banho e saiu a correr.
No dia seguinte ao dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, Cosmos regressou do hospital para o emprego, um pouco atrasado por causa de todas as radiografias. Tinha que adiantar as somas que deixara por fazer no dia anterior, depois de ter sido levado pela ambulância. Surpreendeu-se ao chegar à sua secretária e encontrar um par de pilhas cilíndricas e finas, as pilhas certas para a sua calculadora. Sorriu, apesar do maxilar deslocado. Agora sim sabia o que era o amor de uma mulher.
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