terça-feira, 19 de outubro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 23

Previamente, em Smith e as Sereias, Namor muda-se para o palácio e apresenta-se em público como amante de Poseidon. O Profeta Salmão, oficial religioso da corte, está indignado. Ainda mais previamente do que isso, foi introduzido o poderoso Império Atlante, o supra-desenvolvido e glorioso antagonista de Poseidon e a sua corte.

- Deixa-me ver se percebi bem – resmungou o Rei Atlante com o seu forte sotaque açoriano, no topo do seu glorioso trono hidráulico movido a hidrogénio, e à volta do qual se distribuía um grupo de criados semi-nus, segurando folhas de palmeira, jarros de fruta, colares de ouro e fragrâncias exóticas – O meu filho Namor está neste momento a viver no Palácio do meu inimigo mais desprezado?

- E dormem com certeza na mesma cama, ofendendo a tradição ancestral, caro Rei – disse o Profeta Salmão. Segurava numa barbatana a sua cópia do Evangelho da Pescada, e na sua boca gorda e olhos brilhantes percebia-se a sua enorme frustração e terror; uma quase tristeza e desapontamento. Tinha a cabeça e as guelras enfiadas numa espécie de aquário cheio de água, uma vez que no Palácio Atlante, enorme construção no centro do Império Atlante, respirava-se pelo ar e não pela água; aliás, respirava-se pelos pulmões, isso sim, e não pelas guelras. Uma maravilhosa conquista da engenharia atlante tinha permitido criar uma bolha de ar gigante que envolvia a cidade e permitia aos seus milhões de habitantes viverem harmoniosamente nas profundezas oceânicas, e ainda assim respirarem o mais puro e fresco ar atlântico.

- Inacreditável – comentou o Rei, mexendo nas suas longas barbas – Uma uva, imediatamente.

Um dos criados ao seu lado dobrou-se todo numa complexa e ágil imitação de uma árvore ao vento e levou um cacho de uvas à boca do Rei. O Rei arrancou cinco uvas com os dentes amarelados e mastigou-as incessantemente.

- É uma afronta para mim e para a minha corte – rosnou o Rei Atlante, com um murro no trono – Uma humilhação.

- E uma ofensa perante a Pescada, recordo-lhe! – acrescentou o Salmão.

- Sim, e isso. Obrigado por ter vindo até aqui avisar-me dessa depravação.

- O prazer foi meu, caro Rei.

- O Império Atlante procurará uma vingança à altura.

- Com certeza que a Pescada, na sua infinita benevolência, o ajudará a esmagar Poseidon e as suas sereias depravadas da forma mais esmagadora possível – comentou o Salmão.

- Sábias palavras, profeta. Sábias palavras. Junta-se a mim para jantar?

***

Mais de dez mil anos antes, um outro Rei Atlante, também ele de barbas, também ele com cara de poucos amigos, ergueu uma lança afiada no ar e gritou:

- Atlantes! Hoje é o dia da nossa absoluta conquista! O mundo helénico cairá aos nossos pés!

A sua voz foi ampliada por um complicado sistema digital, e, multiplicada várias centenas de vezes, saiu de centenas de megafones espalhados à volta do navio real. Ecoou pela superfície do Atlântico, e foi chegar a todos os 3 mil navios de guerra atlantes, estacionados como pequenos carros num supermercado. As embarcações cobriam a água até ao horizonte, todas elas enormes construções verticais cheias de canhões, espingardas, lanças, espigões, binóculos, visões telescópicas e centenas e centenas de guerreiros atlantes, jovens, violentos e impressionáveis, empilhando-se nas janelinhas dos barcos e agitando as armas com uma satisfação infantil. As 3 mil embarcações esperavam em silêncio, escutando o seu rei.

- Marcharemos como uma chuva de balas e de flechas sobre a ridícula Atenas, e esmagaremos como a insectos aqueles animais! O que é o seu Parténon ao lado dos nossos arranha céus? O que são as suas togas ao lado das nossas roupas anti-transpiração? E o que raio fará Péricles que nenhum outro Rei Atlante antes dele não tenha já feito pela sua cidade? Está na hora! Que os seus musculados e antropomórficos deuses protejam a pérola da sabedoria europeia, se o conseguirem! Em frente, capitães dos mares! Em frente!

As 3 mil embarcações vibraram com os aplausos, os rufos, os risos, os bate-pés, os gritos entusiastas. O Rei Atlante levantou a lança outra vez e fez avançar o seu navio real, na frente na armada, através dos dois enormes Pilares de Hércules. O mar mediterrâneo esperava-os, como uma banheira tranquila. Os macacos de Gibraltar pararam de saltar e de catar piolhos para ver passar aqueles estranhos hominídeos com a mania das grandezas.

Foi aí que as águas se abriram, e os gritos entusiastas viraram outra coisa.

Um tridente gigantesco, feito do mais dourado dos materiais, irrompeu das ondas do mar; atrás dele, um punho com dez metros de altura. Atrás do punho, um braço musculado. Pela altura em que a cabeça de um homem barbudo e azulado saía das águas e olhava, com duas esferas brilhantes que eram os seus olhos do tamanho de um homem, para a enorme armada atlante, todos os previamente corajosos jovens de lanças na mão gritavam como meninas assustadas, tentando a todo o custo inverter a marcha dos seus tanques aquáticos. Alguns atiravam-se para a água, como se a nado tivessem melhores hipóteses que num barco cheio de munições. A figura de Poseidon ergueu-se até à cintura, e a sua cabeça parecia tocar os céus.

- Olá, Abrucanhéder – rosnou a voz do deus marinho. O Rei Atlante começou a suar.

- Afasta-te, deus helénico! Deixa-me passar! – gritou o Rei Atlante Abucanhéder. Sentiu-se estúpido ao dizer aquilo, porque no fundo quem exige a um gigante de sei lá quantos metros que se afaste não lhe devia ter de pedir autorização.

- Não entrarás do Mediterrâneo. Não destruirás a cidade de Atenas. Regressem às vossas casas, meus caros.

- Senhor, deixe-se disto… - implorou amedrontadamente um dos generais – Ande lá embora…

- Jamais! Quem pensa este tipo que é, para nos impedir a passagem?

- Eu sou o Rei dos Mares e dos Oceanos. A minha companheira de Olimpo Atenas pediu-me para vos pregar uma pequena rasteira, e cá estou.

- Canhões a postos! Uma salva! Pela Atlântida! – berrou o Rei para o seu megafone. Os guerreiros continuavam a gritar desesperadamente. Alguns barcos tentavam já fazer marcha atrás, e iam embater uns nos outros desordenadamente. Só meia dúzia de navios dispararam realmente uma salva. As balas atravessaram os céus e foram embater no peito azulado de Poseidon. Ele coçou-se no local da explosão e olhou para o Rei Atlante.

- Estavas a dizer…?

- Os atlantes nunca recuarão!

- Voltem para as vossas casas e deixem-se dessa ideia de conquistar o mundo…

- Senão o quê?! – berrou o Rei, furioso.

Poseidon levantou o tridente.

Uma onda formou-se, pequenina. Depois cresceu. Depois cresceu mais.

A alguns quilómetros de distância, uma criança atlante brincava com um aviãozinho na praia quando, parando para perscrutar o horizonte, perguntou:

- Mãezinha, é ali ao fundo que o papá está a defender o Império?

- Sim – disse a mãe com um sorriso, virando a página da sua revista sobre física de materiais – Porquê, meu querido?

- Então o pai está ali em cima daquela onda gigante?

A mãezinha tirou os olhos da revista e olhou para o mar. Depois gritou.


Todas as Terças e Quartas, novos episódios desta estimulante série (que agora começa a ficar cada vez menos novela mexicana. E isso é bom)

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